ENTREVISTAS
Rodrigo Amado
O jazz e a cidade
· 16 Fev 2009 · 22:44 ·
Rodrigo Amado é um dos músicos mais activos do jazz nacional. Nos últimos anos o saxofonista construiu um corpo de trabalho que o colocou em posição relevante dentro do género não só assinando discos como colaborando com nomes fundamentais do jazz português e mundial. mostrou também na fotografia e na crítica musical, complementando as suas explorações musicais a seu próprio ritmo. Searching for Adam, o seu último trabalho conhecido, gira em redor de nova Iorque e das imagens que esta possibilita e é apenas mais um dos exemplos do trabalho multidisciplinar tem vindo a desenvolver e que parece ser motor de continuidade. Este e outros temas, foram explorados numa conversa com Rodrigo Amado onde é possível sentir ainda o que o músico se encontra a preparar para os tempos próximos.
O que é que nos podes contar sobre este novo projecto, intitulado Searching for Adam?

Searching for Adam foi um conceito criado em torno de um conjunto de imagens de Nova Iorque. Quando decidi fazer a exposição na Galeria Módulo utilizando aquelas imagens, sabia que não queria fazer apenas mais uma exposição sobre Nova Iorque, queria criar algo que fosse autónomo dos clichés e expectativas visuais associados à cidade. Foi apenas posteriormente que decidi integrar os concertos da Culturgest e da Casa da Música no projecto, e fi-lo porque os músicos envolvidos (Taylor Ho Bynum, John Hebert e Gerald Cleaver) são todos de Nova Iorque e achei que seria curioso observar a forma como se iriam relacionar com as imagens da sua própria cidade captadas por alguém de fora. O significado que acabei por dar ao projecto – a busca universal, de todos os artistas, por uma linguagem própria – surgiu também posteriormente e ganhou, para mim, uma importância enorme por ser este o principal factor pelo qual luto constantemente, na música e na fotografia – o alcançar de uma linguagem própria.

Na tua opinião, Nova Iorque continua a ser só por si uma cidade capaz de gerar todo o tipo de visões artísticas?

Nova Iorque, como a maioria das grandes cidades, tem duas velocidades distintas; a dos turistas, da visita ocasional, necessariamente superficial, e a dos habitantes, dos que a visitam em trabalho ou daqueles que se aventuram a mergulhar fundo no dia-a-dia da cidade. Foi esta barreira que procurei ultrapassar mas, apesar das idas frequentes para tocar, alturas em que o contacto com a cidade era bastante intenso, isso não foi fácil de conseguir. Só ao fim de seis anos de visitas senti que estava a conseguir captar a energia natural do espaço, razão pela qual a quase totalidade das imagens escolhidas para o projecto foram captadas em 2007. Foi fascinante observar a forma como evoluiu a minha própria visão da cidade. Nova Iorque tem vindo a sofrer uma transformação intensa nos últimos anos, devido à enorme pressão turística no centro da cidade, e algumas zonas de Manhattan tornaram-se menos interessantes. No entanto, o fascínio mantém-se e é dado essencialmente pelas pessoas, uma das misturas mais incríveis de raças, estilos e religiões que existe no mundo. Os pólos mais alternativos de criatividade começaram a mudar-se para outras zonas da cidade como Brooklyn ou Queens, criando constantemente novos territórios a explorar. Apesar destas alterações, continua a ser, para mim, juntamente com a Cidade do México, Berlim e Moscovo, uma das cidades a que quero sempre voltar.


Para este novo projecto contaste então em palco com três músicos nova-iorquinos: Taylor Ho-Bynum, John Hebert e Gerald Cleaver. Como é trabalhar com eles?

Em todo o percurso como músico, uma das coisas que aprendi foi que as maiores evoluções musicais se dão a tocar com músicos melhores do que nós. E foi este o caso. Qualquer um deles aceitou de imediato o convite e disseram já conhecer a minha música, o que me surpreendeu bastante. Depois, aconteceu aquilo que tinha imaginado, mas que não estava de forma alguma garantido – a música fluiu de forma totalmente natural, e eu próprio fui mais longe do que imaginava conseguir. Essa é uma das magias da música improvisada, é o poder que tem de conduzir-nos de forma intuitiva, de nos fazer ultrapassar a nós próprios. Desde que fizemos os dois concertos e a sessão de gravação a minha forma de tocar alterou-se profundamente. É como se tivesse tido um curso intensivo de muitos anos...aliás, não é comparável com qualquer outra coisa.

Pareces ter uma certa necessidade de criar projectos com um intervalo de espera relativamente curto. Precisas desse impulso criativo constante para continuar?

Sim. A fase entre projectos é bastante “desesperante” para mim. Não tem a ver com o tempo, com a necessidade de estar sempre a criar, mas sim com as questões que se colocam a seguir a terminarmos um projecto. E agora? A criação propriamente dita é contínua, estou sempre a tocar e a fotografar. O que acontece é que tenho uma grande necessidade de enquadrar essa criação em projectos artísticos consistentes, que façam sentido e que me façam sentir a progredir. Depois há também o sentimento de que quando fechamos um projecto, editamos um disco ou fazemos uma exposição, surge uma energia criativa renovada, uma nova disponibilidade para explorar e criar de novo. Funciona como um ciclo. Neste momento, por exemplo, estou a debater-me sobre qual o próximo projecto fotográfico, o que fazer com a enorme quantidade e variedade de trabalho que tenho produzido. Fiz sessões intensas em Moscovo, Marrocos e Berlim, e continuo a fotografar todos os que me rodeiam - amigos, família e músicos. O sentido de inquietação só desaparece quando decido o próximo conceito a apresentar, independentemente de continuar a trabalhar em várias áreas ao mesmo tempo. E isso não pode ser forçado. Normalmente essa decisão surge-me num determinado momento, vinda do nada, muitas vezes durante a noite. Isto está ligado à tal busca de uma linguagem própria. A criação apenas pela criação pouco significa. È necessário decidir o que fazer com as imagens e com a música. Decidir o que queremos dizer.

Outra preferência tua parece ser a opção por um trabalho multidisciplinar, que aliás marca toda a tua actividade. É confortável para ti gerir todas as frentes ou esta confluência não tem de ter nada de confortável mas sim de uma certa conflituosidade?

Eu sinto um certo conforto com essa abordagem multidisciplinar. Prefiro do que estar a trabalhar apenas numa área. Penso que isso acontece porque os estímulos criativos diversos estão dentro de mim. Sempre me interessei intensamente pela imagem, não só por fotografia, mas também por pintura ou design. O ter começado a desenvolver projectos próprios na área da fotografia foi o libertar de uma enorme energia que estava “bloqueada”, e veio trazer uma maior tranquilidade ao meu trabalho como músico. Gosto também do lado “solitário” de fotografar. Quando era novo, fiz três inter-rails sozinho que foram marcantes. Só agora, nestas longas sessões fotográficas, em Nova Iorque ou Berlim, tornei a sentir essa mesma calma, esse estado de espírito.

Dizes que a “procura” é um conceito que marca a quase totalidade da criação artística contemporânea. De que forma é que esse facto se traduz na criação dos próprios “objectos” artísticos? É uma relação circular?

A procura de uma linguagem própria, de algo que seja relevante, é o grande desafio de qualquer artista. Sempre foi, mas ganha agora particular importância por se acreditar que já nada se cria, tudo foi inventado e nós limitamo-nos a reciclar ideias e conceitos de outros artistas. Penso que isto não será totalmente verdade pois depende da capacidade de abstracção de cada um, e a qualquer momento pode surgir uma nova revolução musical ou artística, provavelmente associada a uma inovação tecnológica ou revolução social. Gosto de acreditar nessa possibilidade. Mas reconheço que é cada vez mais difícil fazer algo que seja verdadeiramente nosso. Esse desafio é brutal. Nunca houve tantos artistas como hoje e a luta pela criação autêntica é intensa. Essa é uma das razões que me leva a trabalhar profundamente a improvisação, a composição em tempo real. Acredito que, desta forma, o processo de reciclagem musical se dá de forma intuitiva, dentro de nós, e o que sai para fora, no momento da improvisação, tem pouco de racional e uma maior probabilidade de estar intensamente ligado àquilo que nós somos.


À luz do teu trabalho actual, como vês hoje em dia os dois trabalhos Teatro e Surface? Consegue traçar uma evolução daí até hoje?

A evolução, para mim, tem sido enorme e, apesar de gostar bastante de qualquer desses discos, a forma como toco hoje é totalmente diferente dessa altura. Como já referi, a principal razão para que isto aconteça, são os enormes saltos que damos quando tocamos com músicos como o Bynum, o Hebert e o Cleaver, mas também o Jeb Bishop, o Harris Eisenstadt ou o Jan Roder, todos músicos com quem toquei pela primeira vez posteriormente a essas gravações. Para além disso, só recentemente formei um grupo fixo com músicos portugueses, o Motion Trio com o Gabriel Ferrandini e o Miguel Mira, dois músicos incríveis que representam para mim a nova geração de improvisadores nacionais. Isto possibilita uma continuidade a que não estava habituado e afecta também profundamente a forma como toco.

O que é que te entusiasma no jazz nos dias que correm? Que discos tens como os melhores deste 2008?

O meu entusiasmo é pela música em geral, não apenas pelo jazz. Na lista dos melhores do ano que fiz para o Bodyspace estão discos como Vampire Weekend (dos Vampire Weekend), Hercules and Love Affair (dos Hercules and Love Affair), Silent Movie (de Quiet Village), Saint Dymphna (dos Gang Gang Dance), ou Love is Overtaking Me (do Arthur Russell), mas também Beyond Quantum (do Anthony Braxton, William Parker e Milford Graves), With Exploding Star Orchestra (do Bill Dixon), Beat Reader (de Vandermark 5) ou Double Sunrise Over Neptune (do William Parker). Já em 2009 tenho estado agarrado aos Fujiya & Miyagi (Lightbulbs) e ao novo do Tony Malaby (Cello Trio). Outra coisa que me dá especial prazer é recuperar gravações de outros anos, e pensar como foi possível algumas passarem-me ao lado. 2008 foi o ano de Afrodisiaca (do John Tchicai), Cowboy in Sweden (do Lee Hazlewood), Guitar and Other Machines (de Durutti Column), Ubiquity (do Roy Ayers), Dimensions and Extensions (de Sam Rivers) e Nonaah (de Roscoe Mitchell), entre dezenas de outras coisas.

Tens novos projectos entre mãos dos quais possas falar? Ou tens em vista consolidar os que existem já nos próximos tempos?

Para além dos projectos que já falei, está prevista a edição este ano da segunda gravação em trio com o Kent Kessler e o Paal Nilssen-Love, o quarteto com o Bynum, o Hebert e o Cleaver, o primeiro do Motion Trio, e um registo dos Yells at Eels, projecto do Dennis Gonzalez em que participo, gravado na Polónia. Na fotografia estou a trabalhar na próxima exposição e num livro ligado à exposição Close, Closer. O ano passado fui apanhado a conduzir com excesso de álcool e condenado a 40 horas de trabalho comunitário. Propuseram-me um trabalho numa área à minha escolha e estou a desenvolver um projecto fotográfico no bairro da Curraleira, associado ao projecto Escolhas. Tem sido uma experiência incrível.
André Gomes
andregomes@bodyspace.net

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