ENTREVISTAS
Sei Miguel
Momentos irrepetíveis
· 01 Jun 2006 · 08:00 ·
© Cristina Cortez, Sei Miguel/Video-Jam na Trem Azul, 2005
Nasceu em 1961 em Paris, viveu no Brasil e em França até assentar em Portugal nos anos 80. Em tempos, Dan Warburton da revista Wire, atribuiu a Sei Miguel o título de “portuguese new music's best kept secret”, no entanto, a sua experiência é extensa: ex-Moeda noise, colaborador dos No Noise Reduction e dos Pop Dell’Arte; director, responsável por arranjos e trompetista; autor de discos como The Blue Record, Still Alive in Bairro Alto ou Ra Clock, e muitas vezes líder de uma formação variável com os músicos da sua eleição, como Manuel Mota, Rafael Toral, Fala Mariam ou César Burago. Currículo longo e rico, portanto. Sei Miguel é ao mesmo tempo um dos homens mais importantes e polémicos do jazz nacional e esta entrevista (com as suas respostas em letra minúscula, fruto do seu pedido e resultado do seu manifesto ódio pelas letras maiúsculas) confirma isso mesmo. Além dos temas mais evidentes, a entrevista andou também à volta do seu esperado novo disco, The Tone Gardens, a editar muito brevemente.
Como começou a sua relação com o trompete?

como multi-instrumentista. o Don Cherry tirou-me as dúvidas, mas eu já tocava qualquer coisa na altura.

Diz ser um jazzman, mas diz igualmente que isso nem sempre é fácil. Porquê? Quais são as implicações de usar esse título?

todas. e assim deveria ser com os meus “colegas”. somos obrigados a várias disciplinas e à maior acuidade. e somos o mais das vezes tratados como músicos de bar. não é fácil, efectivamente.

O Fernando Magalhães disse um dia acerca de si: “não é um improvisador dos instantes irrepetíveis, mas um construtor de mundos instáveis”. Concorda?

é certo que não me considero um improvisador. não sei da estabilidade/instabilidade dos meus mundos...

Tem actuado bastante ultimamente, sobretudo em Lisboa. Acredita que existe neste momento uma maior atenção em Portugal à música improvisada e a um grupo de artistas onde se incluem Manuel Mota, Ernesto Rodrigues, Fala Mariam e o próprio Sei Miguel, entre outros? Se sim, a que se deve esse acréscimo de interesse?

passo. testemunhei vários acréscimos de interesse ao longo dos anos. vivo sobrevivendo e com muito jogo de cintura.

É possível fazerem-se comparações entre o panorama musical português dos anos 80 e o de agora em termos da música que se faz a um nível mais periférico? É sabido que viveu as duas realidades...

o presente costuma aborrecer-me, o passado põe-me a dormir. todas as gerações são de alguma forma detestáveis. a realidade que aprendi a conhecer e reconhecer é aquela que consigo tocar. serve-me também de curso temporal (mas duvidoso). não estou a responder pois não? eu desisti de “viver as épocas”. ou as épocas desistiram de mim.

Tanto quanto sei The Tone Gardens, o seu novo trabalho, encontra-se já finalizado. O que nos pode contar acerca dele?

os “tone gardens” são três “jardins sonoros” distintos para o mesmo quarteto de metais, percussão e electrónica / eu, Mariam, Burago e Toral. idealizei-os em 98 estava eu em São Paulo tocando música insatisfatória. todo o processo até às gravações escolhidas (2004) foi lento e difícil mas abençoado por uma visão inicial muito pura. tenho a satisfação de lhe dizer que o som geral do disco é superior à minha média, low-fi, de produções, possuindo a transparência de que os meus trabalhos gravados nem sempre beneficiam: no caso dos “tone gardens” quem não grama não grama a própria música, sem a desculpa do desconforto auditivo. quem não gostar irá para o inferno, obviamente.

Como concilia o seu trabalho como músico com o trabalho como produtor?


parte das minhas obrigações como músico-director consiste em não pensar nem agir exclusivamente como o instrumentista que sou. acredito também que em matéria de jazz a orquestração e o arranjo são bem mais determinantes que a dita composição, por mais engenhosa, pessoal ou inspirada que essa possa ser. parecem-me já aqui reunidos os elementos essenciais para um trabalho de produção decente. talvez uma ou duas obsessões no âmbito sonoro não façam mal. o resto são os meios disponíveis – no meu percurso têm sido pouquíssimos ou severamente minutados... uma coisa importante, no meu caso, é a parceria com um técnico que me ature, perdão, assista, a mim e às minhas indispensáveis ideias de transcendência tecnológica.

Depois da experiência com os Moeda Noise, começaram as “formações de geometria variável”, como lhes chama. O que procura quando junta um desses tipos de formações? Há uma série de músicos que o acompanham regularmente...

a música que faço não é improvisada, não é estruturalmente improvisada. preciso naturalmente de músicos interessados em desenvolver um trabalho. com as “geometrias variáveis” procuro ora um campo orquestral ora aperfeiçoar uma peça específica. (os Moeda Noise eram uma banda, digamos rock-jazz, noise q.b. antes da onda chegar cá).

Tem acompanhado o que se tem vindo a fazer em Portugal em termos do rock dito livre ultimamente? Bandas como os Loosers, os Fish & Sheep, CAVEIRA, Lobster, entre outros... Acredita que vivemos bons tempos em Portugal no que diz respeito à música livre em todas as suas variantes?

acredito piamente nas bandas. elas estão cá para isso. os “bons tempos em Portugal” é que ainda não presenciei.

Uma das maiores realidades actuais é a edição de música através das netlabels e das editoras de CD-R. Qual é a sua posição em relação a isso? Vê-se a editar música nesses formatos?

prefiro editoras com pés e cabeça. mas é um assunto que me ultrapassa claramente.

Neste momento, a maior parte dos concertos de música improvisada em Portugal acontecem em Lisboa. Acha que existem boas possibilidades de essa realidade se alargar a outras zonas do país?


beats me. não faço a mínima. e o conceito de música improvisada escapa-me.

Em tempos compôs música para teatro e ballet. É um desafio especial para si compor música para ser de algum modo relacionada com outras expressões artísticas? Tem planos nesses campos para o futuro?


é verdade que compus para o teatro. não gosto de desafios / foi uma estreita colaboração com o Carlos Fernando (GTH-Teatro da Graça) de quem tenho muitas saudades. o que escrevi (e até o que gravei) para dança não chegou a cena. gostaria que chegasse mas não depende, e acho que não deve depender, de mim. de qualquer modo, e à revelia do pós-modernismo ainda reinante, não sinto necessidade alguma de relacionar o que faço com outras formas de expressão. o jazz, quando vivo, parece-me completo.

Em tempos concebeu o “twin”, um instrumento de duas cordas. Mantém esse hábito de construir instrumentos ou foi um acto isolado?

foi um acto isolado, surgiu do meu encontro com Margarida Garcia. tínhamos um curioso terreno de entendimento e estudo, entre o contrabaixo de jazz americano e a meta-música do Prévost. a construção do twin permitiu-me focar micro-intervalos no acorde e o valor da hesitação versus repetição na frase. foi interessante sim senhor, mas, como vê, um instrumento para uma determinada pesquisa.

Que retrato faz do jazz feito em Portugal nos últimos anos?

o mesmo retrato que o jazz feito em Portugal faz de mim: desfocado.
André Gomes
andregomes@bodyspace.net
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