ENTREVISTAS
Nuno Prata
Ao Sabor dos Dias
· 22 Fev 2006 · 08:00 ·
O nome não engana ninguém. Nuno Prata, prestes a lançar o seu primeiro registo a solo, é o mesmo músico outrora responsável pelo baixo dos extintos Ornatos Violeta. Da sua antiga formação restam as lembranças do culto nela depositado, mas a vocação artística dos seus elementos não se esgotou aqui. Nuno Prata vem confirmar o ditado segundo o qual “não há fumo, sem fogo”, que é como quem diz não haver reconhecimento sem valor intrínseco. Assim, com a separação da banda portuense responsável pelos aclamados Cão! e O Monstro Precisa de Amigos, não admira que dissidentes mobilizem motivação e recursos e se prestem à revelação desses mesmos valores. Enganem-se, porém, todos quantos julgam poder encontrar no trabalho de Prata uma sequela do seu trabalho nos Ornatos. Apesar de não romper totalmente com a sonoridade praticada nesses tempos (da qual admite guardar algumas reminiscências), o músico acabou por revelar uma veia distinta daquela a que nos habituou na sua antiga formação. E, mesmo assim, logrou fazer com que a sua música soasse extremamente honesta.

Desde que encetou um percurso a solo, Nuno Prata foi escrevendo, compondo e interpretando canções despidas de elaborados arranjos, mas preenchidas com melodias bem alinhavadas, o timbre aprazível e convincente da sua voz e frases que facilmente ecoam nos nossos ouvidos. Em abono destas verdades podem testemunhar todos quantos já puderam assistir à apresentação ao vivo do seu trabalho. Frequentemente acompanhado por Nicolas Tricot (ex- Red Wings Mosquito Stings), Nuno Prata foi revelando ao público nos últimos anos aquilo que está agora pronto a ser materializado em álbum. São dezanove faixas, muitas vezes assentes unicamente nos elementos guitarra e bateria, que evocam por um lado a música brasileira na sua vertente bossa-nova e por outro o brilhozinho da canção de Sérgio Godinho. Mas, acima de tudo, revelam Nuno Prata na sua capacidade de criar um universo musical seu, que ganhará certamente a merecida visibilidade com o lançamento do disco de estreia intitulado Todos os Dias Fossem Estes / Todos os Dias Fossem Outros, com edição prevista para finais de Março / inícios de Abril. Partimos da faixa “Nada É Tau Mau” na qual Prata afirma ser “à custa de palavras, mesmo erradas, que aprendemos a quem queremos conhecer”, e fomos conhecer as palavras que tem para nos dizer Nuno Prata. É no apartamento que habita no Porto que o músico nos revela a sua preocupação com os dias e com as atitudes que se devem evitar para que a música nacional não venha a ter os “dias contados”.

Que dias preferes, estes … ou os outros?

Depende das alturas… Normalmente são estes os dias que eu quero, em que estou a fazer música. E é isso que me dá realmente prazer. Mas tal não me impede de me lembrar dos “outros” dias, dias que não existiram ou em que poderia ter vivido situações diferentes que não experimentei por estar a viver “estes” dias…

O título não sugere então um paralelo entre o passado e o presente, entre o Nuno Prata a solo e…?

Ah… pois, isso… [risos] É possível imaginar muitos significados para este título e fico surpreendido com as diferentes teorias que apresentam e que por vezes são mais elaboradas e criativas do que a verdadeira. Mas não. A razão pela qual o escolhi é mesmo a que apresentei. Na verdade, é um titulo que já tinha há muito tempo guardado na gaveta e que sempre me agradou talvez por dar azo a conjecturas diversas sobre o seu significado. E o título está ligado a outro aspecto que é importante: a capa e o design que se aplicam ao disco, no sentido de o tornar um objecto interessante.

A preparação deste disco a solo foi desde há muito calculada e desejada ou antes motivada por algum acontecimento particular?

O que aconteceu foi mesmo o fim dos Ornatos. Foi aí que gravei uma primeira maqueta ainda sem a participação do Nico. Nessa altura já pensava no disco. Estava a fazer canções, gostava de as tocar e fui-me apercebendo de que gostaria também de as gravar. E achei que valia a pena o disco. Foi a partir daí.

Depois de partilhares a consagração com os Ornatos Violeta e pisares palcos na companhia do músico Nicolas Tricot, a apresentação de um disco pelo qual dás a cara em absoluto transmite-te a sensação do trapézio sem rede?

Não. Exactamente por saber o que é trabalhar em grupo, queria começar a sentir o peso das minhas decisões. Nos Ornatos muitas vezes tomámos decisões erradas e nunca se sabia quem era o responsável. Por isso é que me agrada a ideia do projecto a solo, para sentir como fiz as coisas, por onde fui e arcar com as vitórias e as derrotas, sempre partilhando as vitórias com quem as merece. Mas, acima de tudo, perceber a razão pela qual enveredei por determinado caminho. Trata-se de uma maneira pessoal de trabalhar.

Quando conhecemos o teu trabalho apercebemo-nos do quanto a escrita é importante para ti. Escreves de forma introspectiva ou pensas menos em ti e mais em quem te vai escutar?

Escrevo para mim. Mas, como me sinto perfeitamente normal, nem melhor nem pior do que ninguém, é possível que se possam rever no que eu escrevo e o possam interpretar, cada um à sua maneira. Apesar de não haver muita poesia no que escrevo e sim prosa, ainda há espaço para explorarem, especularem. Mas o que lá está é consequência directa do que vivo. Às vezes gostava de não ter determinada canção, o que significaria que ao invés de ir ter ido para casa escrevê-la tivesse vivido as coisas de outra maneira. Não tenho grande capacidade para romancear, as letras surgem baseadas no que me aconteceu. Não são histórias que eu invento. São circunstâncias simples quotidianas com as quais crio o meu próprio filme.

Visto ter sido prolífera, nos últimos anos, a tua escrita de canções, foi complicado escolher as faixas para este disco? Consideraste a hipótese do álbum duplo?

Realmente tinha muitas canções. Mas não foi complicado, porque as músicas vão-se assumindo, ou seja, à medida que foram sendo gravadas apercebi-me das que se tornaram canções, em detrimento de outras que ainda eram só ideias. E são essas canções em que vou trabalhando, fazendo arranjos. Depois são tocadas ao vivo e aí também me apercebo se tenho ou não afinidade com elas. E no momento da gravação há ainda um outro rastreio, onde se pode ver quais estão melhores ou piores. Em relação a estas dezanove, se quisesse ser mais rigoroso e pretendesse mais coesão, ainda tirava mais umas músicas. Mas achei que estas mereciam aparecer, que se estavam a assumir. O álbum duplo não seria necessário.

O material que sobrou dava para um outro álbum?

Em termos de quantidade dá, fazia dois ou três discos… Mas não sei se me vai tornar a apetecer pegar nessas coisas. Eu tenho canções escritas no ano passado, mas também as tenho escritas quando ainda estava nos Ornatos. Lembro-me de lhes mostrar quando andávamos na estrada. Há canções pelas quais ainda sinto alguma paixão, por outras essa paixão perdeu-se. Além disso, há coisas que já não tenho vontade de dizer. Mesmo nas canções que ficaram isso me acontece às vezes, o que faz com que tenha de reinterpretar um pouco a minha personagem, fazer de actor de mim mesmo.

E se fosses construindo a melodia de voz e adaptando as letras?

Pois… Mas isso não faz parte do meu método de trabalho. Sai tudo ao mesmo tempo. A relação da letra com a melodia é muito íntima. Só aconteceu uma ou duas vezes fazer uma letra para uma melodia. Lembro-me de ter gostado de um loop de uma música que estava a editar e ter resolvido fazer a letra para aí. E nesse caso a música existiu antes. De resto, vou arranjando melodia e harmonia à medida que vou tendo mais ou menos coisas para dizer. Já me aconteceu ter uma melodia definida da qual gostava e ter feito três ou quatro letras para ela sem ter gostado de nenhuma. Pode resultar em qualquer coisa, mas nunca é o que pretendo.

Em que condições decorreram as gravações?

Fiz duas sessões de gravação. A partir daí trabalhava em casa, fazia acrescentos, gravava vozes ou acrescentava teclados. Durante as gravações acabou por ser o Nico a assumir a função de técnico de som. E, tendo em contas as condições que tive, correu bem. É claro que gostaria de ter tido outras condições, como duas salas isoladas, por exemplo. Mas isso já implicava um orçamento que não podia suportar. Talvez numa próxima oportunidade já seja possível. As gravações com os convidados foram rápidas; foram feitas na sala do Alfredo (n.r.: Alfredo Teixeira, Turbina Records). Gravamos uns takes que demoraram à volta de uma hora.

Como foi trabalhar com músicos com quem te habituaste a partilhar créditos? Que sensação te transmite teres como convidados aqueles que foram num passado razoavelmente recente teus colegas de palco, estúdio, e estrada?

Só tenho pena de não ter tido mais hipóteses de os convidar, de não terem participado em mais canções. Achei que para uma das faixas (n.r.: “Alegremente Cantando e Rimos Vamos”) precisava de um coro e foi só aí que participaram o Manel Cruz e o Peixe (n.r.: Pluto, ex - Ornatos Violeta), o Kinörm (n.r.: ex - Ornatos Violeta) mais o Ruca e o Edu (n.r.: Rui Lacerda e Eduardo Silva, Pluto) e ainda alguns amigos, nomeadamente o Filipe que é o responsável pela capa do disco dos Pluto. Com o Nico também foi fácil trabalhar. O mais complicado quando se reúnem muitas colaborações é adaptar os métodos de trabalho. Como para este disco tal não seria possível, as colaborações ficaram-se por aqui.

Que razões presidiram à escolha dessas colaborações?

Foi sobretudo por uma questão prática. A quem é que eu pensaria recorrer em primeiro lugar? Aos meus amigos... Precisava de um coro e era muito mais fácil trabalhar com eles do que pedir a outras pessoas quaisquer. Em relação ao Nico, é um músico que eu aprecio, porque além de bom músico, tem uma forte personalidade e é muito versátil. Tem formação clássica de flauta transversal, mas também tocou bateria numa banda hard-core, esteve nos Red Wings Mosquito Stings a substituir o guitarrista tendo passado a tocar teclados ou flauta aquando do regresso do guitarrista à banda.

Como têm corrido as apresentações ao vivo das novas composições que vão integrar este disco? Que reacções têm despoletado?

O panorama que me era apresentado, à partida, era o de haver pessoas interessadas e atentas aos músicos que optam por cantar em português e escrever as suas canções, etc, etc. Mas, no terreno isso não acontece. E, de certa forma, sinto que fui ingénuo por pensar que as coisas podiam ser de outra forma. Pensei que as pessoas estariam predispostas a ouvir essas canções mais do que aquilo a que presenciei quando as toquei. E eu não cheguei hoje aqui, já tinha trabalho e canções e já estou na música há algum tempo. E depois há outra questão que se prende com as condições com que se debatem os músicos portugueses. É muito bonito dizer que têm portugueses a tocar em primeiras partes de concertos importantes e que existem muitas bandas portuguesas a tocar em palcos secundários de festivais, mas vendo bem, descobre-se que as condições que lhes impõem são pouco aceitáveis. E a culpa passa a ser dos músicos que aceitam essas condições. O que chateia é ouvir dizer “salvem a música portuguesa, salvem a música portuguesa” e depois constatar que não se criam as condições elementares para isso, como por exemplo pagar devidamente aos músicos. Em determinada altura deixei de dar concertos porque aconteciam as coisas mais incríveis durante os mesmos, e que eram consequência das más condições de sítios onde tocava. E não era alertado para essas más condições, sentia-me enganado.

A que nicho de público esperas que o teu trabalho chegue? Prevês que este disco seja especialmente bem recebido pelos apreciadores da banda que te deu a conhecer ou esperas chegar a um público bem mais alargado?

Sinceramente não faço a mínima ideia. Mas posso tentar fazer… É possível que haja algum público dos Ornatos porque tem sempre alguma coisa a ver. Por muito ténue que seja, há sempre essa ligação. É algo que a própria editora pode ter pensado em capitalizar, o que para mim é uma questão externa. Chegou a um ponto em que já não depende de mim. O disco está gravado, fiz o melhor que pude. O que acontecerá a partir de agora ultrapassa-me, desde a forma como será promovido e sobretudo a reacção que terá junto do público.

Em que é que os tempos de rodagem ao vivo te ajudaram a preparar o disco? Foi possível captar alguma sensibilidade do público e transportá-la para as gravações?

Eu não consigo captar muito bem essa reacção do público. Conseguia nos Ornatos quando tocávamos os singles, porque as pessoas conheciam. No meu caso, a resposta do público é sempre idêntica, podendo variar talvez unicamente em função de fazer mais ou menos barulho. Mas isso nunca me influenciou a escolher as músicas.

Como é que irás proceder à promoção do teu álbum? Esperam-se concertos pelo país?

Para já não tenho nada delineado. Estou à espera que esteja tudo pronto para provavelmente fazer um concerto de lançamento. Mas por enquanto ainda não há muita concertação quanto a iniciativas para divulgar o álbum e isso não me tem preocupado muito. De resto, também não há muito dinheiro para investir e o que há precisa de ser distribuído da melhor maneira. É óbvio que teremos de fazer a promoção e divulgação do disco, mas ainda não sei em que moldes, porque a editora não tem estrutura, não tem grandes meios.

Poucos se orgulharão de terem conseguido simultaneamente fidelizar um público, serem respeitados pela crítica e verem esse reconhecimento traduzido em vendas, tal como aconteceu quando integravas os Ornatos Violeta. Se tal não se puder concretizar na totalidade, que gostarias de ver alcançado em primeiro lugar?

O público, a crítica ou as vendas?... O importante é que me ouçam. E não segurar as coisas de forma a vender aqui e ali. De qualquer forma, o investimento não foi elevado e é possível ser pago sem a venda de muitos discos. E poder pagar essa despesa é mais importante para mim do que pensar nos lucros. No entanto, se tiver receita que me permita voltar a investir na música, seria muito positivo. Mas o público acaba por ser sempre o mais importante. No entanto, se houver muito público e de repente eu quiser arriscar e fazer algo diferente, ele pode desaparecer. Ou seja, o ideal era ter um público que se mantivesse fiel e estivesse à espera do que eu tenho para dizer e não do que eles querem ouvir. Caso contrário, no momento seguinte estão a ouvir outra coisa. Em relação à crítica… Sinceramente ninguém é mais crítico em relação ao que eu faço do que eu. E o reconhecimento da crítica pode tornar-se uma coisa muito vaga. Também pode fazer um certo público. Enfim… está sempre tudo relacionado. A única crítica que eu não aprecio é aquela que às vezes surge sem nexo e que não me ajuda a reflectir acerca da minha música e só deve ajudar quem a escreve a reflectir sobre outra lógica qualquer. Acho que o enfoque não deve ser dado ao jornalista, mas sim ao músico que é objecto da crítica. Mas, não é por prever críticas mais ou menos positivas que faço ou deixo de fazer a minha música.

Vou pedir-te para comentares alguns tópicos e expressares a tua opinião acerca deles: quotas à música portuguesa.

Eu ainda não tenho uma opinião muito formada acerca disso. O que me parece é que deve deixar-se o mérito vir ao de cima. No entanto, e não sei se o problema é do país, às vezes parece que o mérito não serve para nada. Por isso, apesar de não concordar muito com a imposição de quotas, também me apercebo de que é necessário mudar o estado das coisas. No fundo, se os músicos portugueses tocarem mais, se se mostrarem mais, venderem mais, isso só poderá ser bom para o país… até porque passarão a ganhar mais dinheiro e pagar mais impostos… Não há desculpa para não passar música portuguesa. Não concordo muito com quotas, mas ainda concordo menos com a indiferença. E talvez aí a lei possa actuar. O pior é haver uma lei que não é cumprida.

Divulgação de informação através de ‘zines’.

Tudo o que permita divulgar é bom. Só depende da forma como se divulga. A net permite às pessoas aceder a imensa informação, sobretudo àquela sobre a qual ouvem falar. E é isso que as pessoas mais facilmente metem na cabeça. E quanto mais opiniões diferentes houver, melhor. O confronto de ideias é importante. Mas, em relação a serem mais alternativas ou irreverentes, depende de quem as faz… É importante procurar coisas novas, dar-lhes cobertura. Mas sem cair no jogo de pensar “eu descobri isto e é bom porque só eu é que conheço”. A ideia é fazer com que todos conheçam e continue a ser bom.

Do It Yourself.

Fazer, fazer, fazer. Aprender, aprender, aprender. Quanto maior controlo houver sobre aquilo que fazemos melhor. E por isso o projecto a solo… Mesmo assim é complicado, porque são precisas mais pessoas. Eu escrevo canções e canto, mas preciso de um técnico, um designer, um fotógrafo… E isso é complicado quando há poucas pessoas, sobretudo poucas “ondas” e é necessário encontrar alguém que siga a mesma estética. É nesse sentido que as ‘zines’ também se mostram muito importantes, ao revelar coisas que não estão tão facilmente à mão de semear. De resto, a forma como a tecnologia permite fazer em casa, gravar, editar e enviar pela Internet dá-nos mais possibilidades de fazermos nós próprios. E termos controlo sobre isso.

A cena musical do Porto…

Há pessoas. Não sinto uma grande ligação entre elas, no sentido de o que umas fazem levar outras a fazerem também. Não vejo nenhum movimento nem zonas geográficas propícias a isso. Não existe um circuito. Nem nos bares. Os bares não comunicam entre si, não há uma rede. Senão talvez tivesse tocado mais no Porto. Entre os músicos começa a haver. É o caso dos Supernada que têm músicos que tocam nos Mesa e nos Mosh. Mas isso é a vontade de alguns fazerem coisas, são esses que se mexem. Não é uma coisa alargada.

Sendo que já não és de todo um principiante nestas andanças e que já tiveste com certeza que ultrapassar muitas barreiras e dificuldades ao longo da tua carreira de músico, que dicas darias hoje-em-dia a alguém que quisesse singrar nesse meio?

Trabalho, trabalho, trabalho. Em primeiro lugar, é preciso ter algo para mostrar. Isso é sem dúvida o mais importante. E dar a conhecer o objecto desse trabalho. Depois, depende do que se entende por singrar. De qualquer forma trata-se de algo sempre sujeito a factores externos. E aí, já é tudo menos previsível.

Eugénia Azevedo
eugeniaazevedo@bodyspace.net
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