ENTREVISTAS
Ernesto Rodrigues
A criatividade não tem limites
· 26 Dez 2005 · 08:00 ·
© Carlos Zíngaro
Começou por tocar música popular, ao lado de Zeca Afonso, mas cedo se cansou das limitações da música de massas e entregou-se de corpo e alma à música experimental. Ao lado de gente como Carlos Zíngaro ou Carlos Bechegas fez a história da música improvisada em Portugal. Actualmente gere a editora Creative Sources Recordings, que apesar da reduzida dimensão já editou alguns dos mais importantes músicos europeus e já se tornou uma referência da música improvisada mundial – apesar de em Portugal ser quase desconhecida. Já tocou com músicos de renome internacional como Tetuzi Akyiama ou Hans Koch e actua regularmente em Lisboa apresentando uma variedade imensa de projectos onde a música é concentrada à sua essência e surge livre como necessidade vital. Se neste momento podemos dizer que há uma certa visibilidade para a música improvisada em Portugal, muita da responsabilidade é devida a este homem, improvisador e impulsionador, Ernesto Rodrigues.
«Estudou intensivamente com Emmanuel Nunes, um dos mais importantes compositores de música contemporânea. Qual a importância desta formação e em que medida estas noções de composição se inserem no seu trabalho, habitualmente afastado da música escrita?

Embora não seja óbvio, a influência de Emmanuel Nunes enquanto compositor de música contemporânea escrita é bastante significativa no meu trabalho. Mesmo quando se improvisa, há uma gestão/estruturação de materiais contínua em tempo real, e a minha formação passa sem dúvida pela absorção de inúmeros conceitos e métodos que intrinsecamente se ligam à sua fortíssima personalidade musical e humana. Por outro lado, o universo da música escrita é importantíssimo no meu quotidiano; aliás, actualmente estou a ser orientado pelo compositor Pedro M. Rocha. Neste momento estou a escrever uma peça para violino solo em que utilizo a notação gráfica e musical do compositor alemão Helmut Lachenmann…

Numa entrevista a Rui Eduardo Paes acusou o rock de ser vítima “do poder do decibel como realidade opressora” e estabeleceu uma curiosa relação entre “a prepotência das guitarras eléctricas e o poder bélico americano”. É para se afastar que está apostado em focar a sua produção musical na aproximação ao silêncio?

A minha aproximação a essas realidades mais recentes (near silence, lowercase, reducionismo, etc.), tem apenas a ver com uma necessidade própria naturalmente assumida. Estou convicto de que estes pressupostos serão culturalmente cada vez mais requisitados. O nosso quotidiano é cada vez mais confuso e desconcertante (no mau sentido)… A condição do Silêncio é em si mesma subversiva.

No projecto Sexteto de Cordas apresentado há semanas ao vivo na Trem Azul evidencia-se, para além da formação invulgar, a inclusão de uma harpa no contexto experimental. Como surgiu a ideia para este projecto?

A ideia nasceu por me ser particularmente agradável a produção sonora de cordofones exclusivamente acústicos. Penso num futuro próximo vir a incluir ainda uma viola da gamba (passando assim a septeto). No que se refere à harpa, é um instrumento que tem tido um papel activo desde o início na minha orquestra VGO, bem como noutras formações.

A Variable Geometry Orchestra, projecto apresentado há dias na ZdB, é um grupo de muitos (19/16?) músicos. Como se coordena esta música e tantas personalidades distintas?

A experiência tem-me vindo a demonstrar que é necessário gerir e dosear o equilíbrio entre a tensão e o repouso. Em formações desta amplitude, é extremamente fácil a forte tendência para excessos e a consequente rápida instalação do caos sonoro. Cabe-me a mim, como aglutinador deste projecto, assegurar a manutenção da fluidez e contenção necessárias à fruição do momento. A gestão dos egos, embora a priori pudesse parecer complexa, felizmente não tem sido problemática, antes pelo contrário, tem-se feito sentir um espírito de união francamente saudável.

Está envolvido em múltiplos projectos. Para além dos grupos já referidos, com quem está a trabalhar neste momento?

Nestas práticas, as formações são também elas muito mais improvisadas do que o inverso. Contudo, faço parte de um trio radicado em Madrid, com Wade Matthews (clarinete baixo, flauta alto e electrónica) e Ingar Zach (percussão). Ainda no passado mês de Novembro me apresentei no Atlantic Waves Festival, Londres, com uma outra formação, em quinteto: Angharad Davies (violino), Guilherme Rodrigues (violoncelo), Masafumi Ezaki (trompete) e Alessandro Bosetti (saxofone soprano), grupo formado para o evento em causa, mas que gostaria de manter para futuras ocasiões... Só o tempo o dirá. Tudo o resto é fruto de encontros esporádicos e a maior parte das vezes não programados, sendo frequentemente convidado por músicos de diversas nacionalidades que solicitam a minha colaboração.

Nos diversos projectos onde participa costuma colaborar com a mesma base de músicos (José Oliveira, Manuel Mota, etc). São estes os músicos com quem se identifica musicalmente em Portugal?

Embora tenha todo o prazer em tocar com a maior parte dos músicos experimentais portugueses, na realidade são estes os músicos com quem sinto maior segurança e me dão mais garantias. Não descuro a minha intervenção como dinamizador, função que me parece necessária e imprescindível ser desempenhada com determinação, para que possam ser propiciadas reais oportunidades de intervenção para músicos de novas gerações, sem conhecimento de causa, e aí sim, há de facto um risco porque entra o factor inexperiência; mas penso que tem valido a pena…

Trabalha com o seu filho Guilherme há vários anos. Como se convence um adolescente a tocar música experimental? Para além de tocar com o pai, ele já tem ideias para algum projecto próprio?

O Guilherme está de facto ao meu lado já há 7/8 anos… começou com 10! Não fiz força alguma para o “convencer”. Foi a ver alguns dos meus concertos e a escutar a música que se ouvia em casa que fizeram com que a sua direcção fosse para aqui determinada. Mas foi uma escolha própria, acho que a obrigação ou a imposição da força dá sempre mau resultado… Já não é a primeira vez que apresenta ao vivo (sem mim) algumas das suas formações. Espero que essa tendência se verifique cada vez mais frequente e regularmente.

© Alfredo Costa Monteiro

A editora por si fundada, Creative Sources, começou como um pequeno projecto para divulgar a sua própria música, mas entretanto já lançou inúmeras gravações de músicos europeus de renome. Como aconteceu esta evolução?

A Creative Sources nasceu de facto para responder a uma forte carência em termos de mercado no que diz respeito à existência de editoras que estejam abertas a financiar a edição de músicos menos conhecidos e/ou até mais “arriscados” em termos financeiros. Cheguei a um ponto em que se tornara imprescindível a existência de uma editora que estivesse disposta a editar as minhas peças. Fiz uma prospecção no mercado nacional, e deparei-me com o vazio… Passado sensivelmente um mês nascia a Creative Sources Recordings. Após ter editado quatro ou cinco títulos, fiz um pequeno investimento com o intuito de chamar alguns nomes (estrangeiros) mais sonantes e que me pareciam imprescindíveis numa editora desta natureza. Correu bem, e a partir daí (como o meio não é tão vasto quanto isso) palavra puxa palavra e verificou-se um enorme interesse crescente por parte dos músicos experimentais de todo o mundo em editar na Creative Sources. Após essa fase, os custos passaram a ser partilhados entre mim e os músicos, o que faz com que já tenha editado 54 CDs em 3 anos… O trabalho gráfico é desempenhado pelo Carlos Santos, apoio sem o qual tudo isto teria sido muito mais complicado. De momento está bem! Vamos ver o que nos diz o futuro.

Poderemos dizer que o sucesso internacional da Creative Sources pode ser comparado com o caso da Clean Feed (esta num quadro mais mainstream e com as devidas diferenças)?

São de facto duas editoras nacionais a atravessar um bom momento e com excelente reputação internacional. Mas penso que há diferenças bem patentes entre estes dois projectos editoriais. A Clean Feed é uma editora (e ainda bem para eles) com um sucesso comercial bastante positivo, ao contrário da Creative Sources. Com todo o respeito, as propostas estéticas na Clean Feed não correm tantos riscos, logo, são selos que ocupam espaços necessários mas também diferentes (e aqui não tento estabelecer qualquer tipo de valorização). De qualquer forma, em minha opinião, a Clean Feed e a Trem Azul, (visto não conseguir desligar um projecto do outro) vieram ocupar um lugar ímpar no panorama do desenvolvimento do Jazz em Portugal. Devemos salientar muitas outras vertentes dessa mesma determinação por eles levada avante, tais como, a edição dos mais importantes músicos de jazz portugueses, a publicação de uma revista bimestral da especialidade com bastante bom nível, um espaço para os músicos apresentarem o seu trabalho, a organização de importantes eventos, um programa de rádio, etc... A esta união e congregação de esforços há que tirar o chapéu! São duas editoras, uma dimensão.

Apesar de ter começado a tocar em 1978/79, só gravou em nome próprio em 1997. Desde então tem editado com grande regularidade. Quais são os planos a este nível para o futuro?

O facto de só ter editado em 97, prende-se com as dificuldades acima mencionadas… Nestas músicas, a produção discográfica é simples e rápida, ou seja, quando tenho necessidade (e normalmente tem a ver com a recepção a estrangeiros), basta-me ligar para o estúdio onde regularmente gravo (onde tenho inegáveis vantagens!) e, se tudo correr bem, em quatro horas tenho um CD gravado. Depois a pós-produção é feita em casa. Enfim, neste momento tenho alguns CDs já gravados prontos a editar… Para além de algumas participações de músicos portugueses, um com Oren Marshall (tuba), outro com Toshihiro Koike (trombone), outro com Hans W. Koch (electrónica), outro com Jassem Hindi (clarinete), outro com Christine e Sharif Sehanaoui (sax alto e guitarra), etc, etc, etc. E felizmente a Creative Sources existe…

Existe mesmo actualmente uma “cena da nova música improvisada” em Lisboa/Portugal.

Bom, um facto inegável é o interesse desde há longa data demonstrado por pessoas em Portugal nestas áreas. Desde os meus 15 anos (e já fiz 46!) que constato a existência de um grupo de pessoas, ainda que restrito, que tocavam, dinamizavam, discutiam e fomentavam algo que felizmente não veio a extinguir-se e que de qualquer forma deu este resultado. Eu gosto de frisar este aspecto na medida em que, por exemplo, aqui mesmo ao nosso lado em Espanha, este era um fenómeno que não se verificava. Os espanhóis até há bem pouco tempo, não tinham qualquer relevância neste campo. Penso que de uma forma geral, hoje temos um leque interessante de músicos que não envergonharia qualquer outro meio, e no particular (sem referir nomes), ainda outros com nível de primeira água… Cada vez mais são endereçados convites a músicos portugueses para actuar no estrangeiro. Penso que isso quer dizer qualquer coisa.

Tendo em consideração o panorama actual, como antevê o futuro próximo da música “experimental” portuguesa?

Embora não me considere uma pessoa eminentemente optimista, penso que há boas perspectivas de uma continuidade interessante e exigente. Não por achar que em Portugal haja boas condições, ou algo minimamente parecido, mas porque a Internet veio “encurtar” imenso as distâncias. O mundo hoje é muito mais pequeno… A hegemonia de cidades como Paris, Londres, Berlim ou Nova Iorque esfumou-se. Já vamos na quarta geração de músicos experimentais em Portugal. E alguns deles com mérito reconhecido fora de portas… Por cá as sementes estão lançadas… e a criatividade não tem limites…
Nuno Catarino
nunocatarino@gmail.com
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