ENTREVISTAS
input_output
A Memória dos Homens
· 25 Nov 2005 · 08:00 ·
Douglas Dickel é o homem dos mil ofícios de Porto Alegre. Pelo menos a crer pela extensíssima lista de projectos – nas mais vastas áreas – em que participa ou participou. Senão veja-se: faz parte de bandas como os Blanched e os Pelicano, tocou em bandas como Tom Bloch e Poliéster, concebeu o projecto O Restaurante do Fim do Universo (um projecto de covers de rock alternativo que está, de momento, adormecido), fez a banda-sonora para a curta-metragem Miopia, do director Muriel Paraboni (trabalho assinado com o cognome Animinimal), participou em fanzines, foi editor do MusicZine e membro do projecto O Apanhador e escreveu para as revistas Aplauso e Rock Press, é DJ em festas, é radialista formado pela Fundação Educacional Padre Lândell de Moura e trabalhou na rádio Unisinos FM 103.3. Para além disso, lançou em Setembro de 2004 o seu primeiro livro intitulado Ambivalência e expõe virtualmente as suas fotografias minimalistas/abstracionistas, tendo já programada a sua primeira exposição física para o período de 14 de Março a 23 de Abril de 2006, na Galeria dos Arcos do Centro Cultural Usina do Gasómetro. Agora a sua nova aventura é o projecto input_output, e foi precisamente com essa alcunha que lançou este ano o disco Eu contenho todos os anos dentro de mim no selo Open Field/Peligro, um disco que apesar de conter alguns elementos explorados em projectos anteriores mostra Douglas Dickel na busca de novos territórios como a música electrónica, colagens e ruído. A estreia do projecto input_output foi concebida entre a Primavera de 1977 e o Outono de 2005 e foi realizada no Outono de 2005 em Porto Alegre, no Brasil, no estúdio Big Beng. Em conversa descontraída com Douglas Dickel abordou-se a sua música (aquilo que resulta dela, aquilo que a inspira) e a sua multidisciplinaridade, memórias de longa data e inspirações, assim como o estado da música brasileira a um nível mais periférico.
Quando se pensa em música dita alternativa feita no Brasil pensa-se imediatamente em cidades como São Paulo. Como são as coisas a esse nível em Porto Alegre?

Não sei exactamente como responder a essa pergunta. Prefiro restringir-me a dizer que há um programa da rádio Unisinos, de São Leopoldo, o Freak Show, realizado pelo Porsche, que tem trazido há cerca de 10 anos aos ouvintes daqui os sons mais alternativos de todo o planeta. Outro destaque é a dupla João Perassolo e Éverton Vargas da Costa, da festa Noisy, uma festa mensal de discotecagens que têm apostado também em novos artistas ditos alternativos. Inclusive com algumas parcerias com o selo Peligro, de São Paulo.

Como é a vida fora dos Blanched? Como surgiu e como foi a gravação desde disco sob a alcunha de input_output?

Sempre tive vontade de fazer a minha música individual, um projecto autoral, tanto que equipei o meu computador com softwares como o Soundforge, Xakewalk e Reason, mas passei alguns anos sem ter ideia de como dar o primeiro passo. Fiz as primeiras experiências este ano, quando revi o filme Contacto, do Robert Zemeckis, e lembrei que eu tinha uma fascinação pela ficção científica e pelo carácter alienígena, digamos assim, da estática de rádio, e lembrei-me que o meu pai tivera um rádio de ondas curtas, Philco Transglobe. Comprei um outro, por sorte encontrei essa raridade, e decidi usar samples de rádios estrangeiras em músicas. No entanto, a digitalização desses sons é difícil, tanto que usei somente um, de uma rádio oriental, em “Aço, Asfalto, Plástico” - que, aliás, foi a primeira experiência com qualidade suficiente para garantir a sua entrada num álbum. Por isso comecei a experimentar de forma mais prática: coloquei o Soundforge para gravar e, utilizando um walkman com sintonia analógica, rodei o disco de sintonia para lá e para cá, aleatoriamente. Depois, ouvi o resultado gravado e seleccionei trechos que serviriam como bases, loops e até mesmo batidas, no lugar da bateria. Então surgiu a estética do input_output. Os Blanched pararam no final do ano passado, porque o líder, Leonardo Fleck, passou um tempo em Londres. Isso facilitou esse mergulho no meu projecto individual e a criação de uma banda nova, Pelicano. O Leonardo voltou na semana passada, mas o retorno dos Blanched ainda não foi acertado, porque um dos integrantes mudou-se para São Paulo. Mas voltando ao input_output, o que posso dizer é que os processos de criação e de gravação foram practicamente concomitantes, ou seja, não houve criação prévia, planeamento de estética ou de resultados, deixei fluir. Empolguei-me, e, com a descoberta de um método de composição, em dois meses eu estava com material para preencher um álbum, e em outros dois meses eu conclui as mixagens. Tive a felicidade, se não é isso que ocorre com todo o indivíduo em projecto a solo, de criar exactamente o som que eu estivera procurando em outras bandas e não encontrara. Quanto mais se aproximava o momento de o meu projecto nascer, mais eu tentava encontrar esse som específico, que estava na minha cabeça mas que eu ainda não sabia qual era e se sequer existia. E porquê um projecto individual? Porque é a única forma de realizar um trabalho totalmente autoral, paralelo aos trabalhos colectivos, e eu tinha - e tenho - essa necessidade. Além do mais, sozinho é possível ousar de forma incontinente sem que se coloque em risco a reputação dos companheiros.

O que significa a frase "Eu contenho todos os anos dentro de mim", o título do disco do projecto input_output?

Surgiu-me, essa frase, quando visitei a escola onde estudei dos 6 aos 16 anos, que ajudou a formar o meu imaginário, o meu inconsciente, mas que não visitava há dez anos. Sentei-me numa escada onde costumava sentar para comer meu lanche, e senti como se aquele momento mágico não fosse apenas 2004, mas 1984, 1985, 1986... 2003, 2004 - eu realmente senti todos os anos dentro de mim, e fiquei feliz com aquilo, chorei por minutos, porque eu costumava pensar que a minha mudança da infância e da adolescência insegura para uma vida adulta mais livre fosse como uma troca de pessoa, e não era. Continuo a ser aquela criança também. Todas as experiências se acumulam, e essa é a riqueza do ser humano, que a maioria, infelizmente, nega, quando chega à vida adulta. A frase, então, materializou-se num sarau chamado “Póquet - Ruído & Literatura”, do qual participei lendo um poema com esse teor, contendo frases repetitivas como "Eu tenho 1 ano, eu tenho dois anos...", e assim por diante. Era a terceira vez em que eu participava no Póquet, e o ruído, desta vez, era o de brinquedos musicais, incluindo o ursinho à corda usado em “Caminho”. Na primeira faixa sou eu, com quatro anos, a tocar “Marcha Soldado” (uma canção popular-infantil daqui) tão desafinado que pareço o Syd Barrett... é a primeira gravação minha a tocar violão; no fundo, rosnando, é a Barbie, uma beagle que me acompanhou da infância até a adolescência; e, no final da faixa, as vozes são da minha avó materna e da minha mãe, na secretária electrónica. E a segunda música contém o ursinho que eu tocava na hora de dormir, quando era criança.

Como nasceu a direcção essencialmente electrónica seguida em Eu Contenho Todos os Anos Dentro de Mim? É uma área na qual já vinha trabalhando nos últimos tempos?

Como nasceu realmente eu não sei. Uma área que faz parte de mim é o minimalismo - que também está presente na electrónica. A matemática sempre foi a minha disciplina predilecta, então há uma influência dela na minha arte. "Caos Organizado", como disse uma vez um professor meu.

Como surgiu o apoio para o lançamento do disco através do selo Open Field / Peligro? A que tipo de projectos se dedica essa editora? É um selo activo na música alternativa no Brasil?

A Peligro Discos já havia procurado os Blanched para vender o nosso segundo EP, Blanched Toca Angelopoulos. O editor com quem eu sempre contactei veio pôr música numa festa em Porto Alegre, e eu entreguei uma cópia da master para a sua apreciação quanto a lançá-lo pela Peligro. No fim das contas eles abraçaram a ideia. Open Field é propriamente a editora - o selo, como chamamos aqui. Peligro é o braço, da mesma equipa, responsável pelas vendas, pela Internet e em festas das quais participam. Era a minha única opção, por escolha, no Brasil. Se eles não aceitassem, eu iria lançar independente. Porque é a editora brasileira que se dedica a promover o maior número de bandas de pós-rock e rock alternativo mundial que me agradam, têm total profissionalismo e óptimos projectos visuais. Além disso, eu sabia que eram boa gente. O selo Open Field já lançou seis discos e o sítio Peligro já tem um catálogo de, acredito, centenas de discos da melhor música mundial.

É complicado editar um disco de música alternativa no Brasil? Quais são as opções?

Eu tinha as duas opções de que falei, mas as duas teriam praticamente o mesmo custo: 450 reais, cerca de 195 dólares, actualmente. Recebi 57 cópias do disco para eu mesmo vender e recuperar o investimento. E com o Open Field / Peligro tenho uma divulgação mais profissional e a assinatura dessa bela equipa. Para um artista em inicio de carreira, qualquer referência é de suma importância para chamar a atenção do ouvinte. O meu maior trunfo financeiro foi gravar totalmente em casa, inclusive explorando ao máximo as limitações decorrentes disso. Os Blanched, por exemplo, gastaram no mínimo 1 300 dólares, no câmbio actual, apenas com horas de estúdio para gravarmos Blanched Toca Angelopoulos. Um disco com 15 faixas teria um orçamento impraticável de estúdio para um artista independente de classe média, que recebe o equivalente a 400 dólares por mês. Gravei em casa, com microfone Sony, mas pequeno, de brinquedo, usando efeitos na voz para esconder a eventual baixa qualidade da gravação. A maior dificuldade dos alternativos no Brasil está na hora de vender. Ninguém quer pagar por um disco alternativo nacional. Querem ganhá-los. Em compensação não choram na hora de pagar o preço de mercado das majors - algo como 17 dólares (40 reais), mais do que o dobro. E, como é o próprio artista que tem de vender, muitas vezes, ele sente-se constrangido de vender um pedaço seu, de oferecer um pedaço seu. Então muitas vezes deixa de oferecer, ou não tem coragem de cobrar.

Existe alguma cultura de lançamentos em CD-R ou netlabels no Brasil?

Não sei responder com exactidão. Mas destaco uma netlabel que conheci este mês, o colectivo Antena [n.r.: http://www.antena.art.br]. Eles promoveram duas noites históricas este mês de noise electrónico aqui em Porto Alegre, com destaque para o Lavajato, do Rio de Janeiro.


Estrearam há pouco tempo dois videoclipes de faixas do álbum, um realizado por Antônio Xerxenesky e outro pelo próprio Douglas. Como decorreu a concepção desses videoclipes?

O meu foi feito de forma lo-fi, também: no Windows Movie Maker, justapondo quatro imagens diferentes nos momentos adequados da música, que é “Cada Vez Mais”. As imagens foram feitas na minha câmara fotográfica digital, e portanto têm aquela textura totalmente lo-fi. O do Antônio foi feito também em casa, mas com uma mini-DV, a preto e branco, utilizando a namorada como actriz/modelo vivo e explorando o minimalismo de forma diferente da minha e usando também referências ao cinema fantástico de Dario Argento e companhia.

Pretende mostrar o seu trabalho na Europa, tanto no que diz respeito à edição do disco como em actuações ao vivo?

Parece-me utópico, mas tenho esperança. Falei com a Bor Land, que me indicou umas distribuidoras. Ainda não as visitei virtualmente.

Como tem sido a reacção do público brasileiro a Eu Contenho Todos os Anos Dentro de Mim? Já apresentou o seu trabalho ao vivo? Como funcionam as coisas nos concertos?

Por enquanto o que tive foram os comentários de amigos aos quais mostrei o disco antes de lançá-lo e durante a audição do álbum na festa do seu lançamento. O Open Field / Peligro ainda está para fazer a divulgação a nível nacional, principalmente em São Paulo. Estou a aguardar o contacto da jornalista que fará o trabalho. Quanto aos concertos, estou a começar agora a formação ao vivo do projecto. Fiz um ensaio com o baterista, dos Viana Moog, com quem há tempos quero trabalhar. No próximo encontro testaremos; como guitarrista, o baixista dos Pelicano, pois eu tocarei baixo distorcido. A ideia é fazer arranjos para guitarra, baixo e bateria baseados nas músicas do disco, o que significa que as versões serão bastante diferentes da gravação. E essa é a intenção, para que o show surpreenda. O baixo distorcido já é algo raro por aqui. A inversão do guitarrista com o baixista também vai ajudar nisso. De samples, utilizaremos somente os essenciais. Estou empolgado e optimista, ansioso para tocar o disco ao vivo. O Guilherme Barrella, da editora, quer que toquemos em São Paulo. Veremos se será possível financeiramente. As passagens aéreas, para um trio, ida e volta, corresponderiam a 360 dólares, 830 reais.

Como olha para a experiência O Restaurante do Fim do Universo, o projecto onde fazia covers de bandas de rock alternativo?

Fazer covers também é bastante prazeroso para mim, pretendo retomar um dia esse projecto, seja com quem for. Foi curto, teve apenas dois shows.

Possui alguma paixão pelo sampling? Numa das faixas de Eu Contenho Todos os Anos Dentro de Mim ouve-se o monólogo de uma famosa cena de Beleza Americana...

Sim! Esse do filme eu fiquei meio assim de usar, porque não pedi autorização, mas ficou tão ligado à música que não tive como cortá-lo. Uma outra que tinha um sample de Buffalo '66 foi cortada, para evitar o excesso, já que “Qualquer Lugar / Somewhere” contém samples de Alice no País das Maravilhas e Waking Life. A partir de agora, evitarei os samples de obras alheias. Em “Caminho” há um sample de dobradiças de portas, do filme aqui chamado A professora de Piano, do alemão Michael Haneke. Já com o sample de “Indústria Brasileira de Lavadoras Automáticas” eu não me incomodo, porque foi um recorte de uma notícia da rádio, que não tem uma autoria a ser comprometida.

Na sua página na Internet é possível ver listas dos seus filmes, discos, filhos da puta, vídeos, e livros. Curiosamente, nenhum disco dessa lista parece ser uma possível influência para Eu Contenho Todos os Anos Dentro de Mim...

Falaram em Radiohead... Mas, realmente, não construí meu som em cima das referências. Se elas apareceram, cada ouvinte é que poderá vê-las ao seu modo, de acordo com suas próprias relações inconscientes. Somente depois de fazer o disco é que conheci dois artistas a que o meu trabalho pode ser comparado, mesmo que à distância. Um é o re:, que é muito concretista e é da editora canadiana Constellation Records, e outro é o Fennesz, que é mais ambient.

Quais são os discos que têm passado pelo leitor de CDs nos últimos tempos?

Grandaddy e Sparklehorse. In Your Honor, dos Foo Fighters, há alguns meses. Mais recentemente, The Robot Ate Me com On vacation e os dois mais recentes dos Stars. Sempre passam Yo La Tengo, Sonic Youth e Radiohead. Tenho gostado mais de Múm e The Microphones. Descobri The Arcade Fire e The Polyphonic Spree. Conheci recentemente também Blue Afternoon, do Barrella; Tetine, um duo brasileiro radicado em Londres; e Vincent Gallo, o multigénio. Ouvi esta semana o Uh Uh Her, da PJ Harvey, e impressionei-me (de novo) com a intensidade dela - da voz e de tudo. Não se espera inovações, mas a intensidade... escola Patti Smith.

Além da música, dedica-se a várias outras áreas como a poesia, a fotografia e até escreveu sobre música e trabalhou na rádio. Como é conciliar todas estas áreas? Qual é aquela que lhe dá mais prazer?

Excepto escrever sobre música, o que não faço mais, todas dão igualmente prazer. Mas a música é o meu carro-chefe, toco violão desde os quatro anos e, das três áreas, é a mais catártica. Trabalhar na rádio não tive mais oportunidade de o fazer. Eu ando a querer actuar mais como DJ. Acho natural conviver com todas essas actividades. Sou um sujeito ansioso e tenho muita energia criativa para gastar, então a arte é o meu dom e a minha necessidade. As carreiras de poeta e de fotógrafo também tiveram bons inícios, e elas todas estão interligadas. As capas do input_output e de Blanched Toca Angelopoulos são fotos minhas, por exemplo, e uso poemas como letras das músicas. Esta semana um novo amigo que é poeta e professor de letras disse que um poema meu tem uma "bela plasticidade". Ao mesmo tempo alguns dizem que a minha música parece uma banda sonora. E já ouvi que os poemas são musicais e que as fotos são poesia. A transcendência é uma só, o indizível é um só, apesar de lhe darem os nomes de poesia, fotografia, música.
André Gomes
andregomes@bodyspace.net
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