ENTREVISTAS
Tiago Sousa
Desobediência civil
· 16 Mai 2011 · 00:55 ·
© Vera Marmelo
Como surgiu a ligação da música do disco Walden Pond´s Monk a Thoreau?
Este novo disco é dedicado à vida e obra do escritor e ensaísta americano Henry David Thoreau. Esta ligação à obra do Thoreau surge quando me deparei com alguns dos seus textos e senti uma identificação imediata com os valores que este explana. Valores relacionados com a necessidade de emancipação individual em relação às forças coercivas das corporações, baseada num sentido moral e ético de aspiração à felicidade, em harmonia com a nossa natureza. Valores relacionados também com o transcendentalismo, a simplicidade, o belo ou o seu fascínio pelo selvagem. Senti que as questões que ele coloca me eram tão próximas e tiveram um contributo tão importante na cimentação daquilo que sou enquanto indivíduo que seria importante prestar-lhe a devida homenagem ao mesmo tempo que abraçava o desafio de transportar para música essas mesmas questões. Este é o primeiro factor que influi no processo criativo - a questão ideológica. Depois há um processo estético de construção da obra artística. Quando estás num processo criativo aquilo que fazes não é mais do que uma construção utópica ou distópica da realidade. Através de narrativas ou analogias que vais fazer depender de escolhas que são essencialmente ideológicas, no sentido que espelham aquilo que é a tua natureza e a tua forma de estar no mundo. Valores como o valor da simplicidade ou a evocação do belo, que se encontram na escrita do Thoreau, estão intimamente relacionados com a estética que pratico, igualmente o seu apelo ao selvagem e ao respeito pela natureza individual estão intimamente ligados à minha metodologia audoditacta e "não-erudita" na abordagem ao piano. Essencialmente a construção que faço no disco é uma evocação romântica, saudosista de um tempo que não existe, dos valores e das palavras do Thoreau. Mas o seu contexto não se fecha no tema. O que me entusiasma no facto de fazer música instrumental é precisamente o seu carácter de ambiguidade. Qualquer pessoa fica depois livre de fazer as suas próprias interpretações e de se ligar, ou não, à obra do Thoreau. A partir do momento que o disco está na rua, deixo de ser "proprietário" desse processo. Ele ganha vida própria. Para mim foi importante ter estes livros como referência ideológica mas não quero que o disco se esgote nessa referência.
Quais as principais influências, a clássica do início do XX?
Tenho ouvido muita música. Principalmente a música do virar do século XIX para o século XX e música do século XX. Antes do Romantismo há pouca coisa que me interesse. Nunca me liguei muito ao Classicismo nem ao Barroco. As minhas preferências musicais estão assim mais voltadas para compositores como Erik Satie, Claude Debussy, Maurice Ravel, as primeiras obras orquestrais de Stravinsky, Federico Mompou, Alexander Scriabin, Arvo Pärt ou John Cage. São muitas mais do que apenas estas. O que tem piada nas referências é ser-se eclético o suficiente para que estas se revistam de uma certa incongruência e reforcem as tuas idiossincrasias. O meu universo também é o da música dita "popular" nas suas facções mais contra-corrente. Portanto na minha colecção de música cabem muitos outros géneros e nomes.
Qual o papel do jazz, nomeadamente com os clarinetes do Ricardo Ribeiro?
O Jazz é um pouco acidental na minha música. De facto o Ricardo é quem tem a costela "jazz" mais vincada. Mas nem por isso se pode considerar que ele esteja a fazer jazz. Talvez a faceta mais forte que o jazz impõe na minha música será mesmo o improviso. Sempre gostei desse desafio. O processo que eu o Ricardo tivemos para criar este disco foi um processo algo duro. Quando já tinha a peça numa forma mais próxima do seu final mostrei-a ao Ricardo. Ele tinha participado na gravação de alguns temas do Insónia e a nossa empatia era tão porreira que achei que fazia todo o sentido contar com ele para este disco. Ele ficou muito entusiasmado e durante cerca de um ano andámos a tocá-lo para nós próprios a explorar ideias e diferentes caminhos até chegarmos a uma forma que considerámos que era sólida e coerente com o que pretendíamos. Não queríamos que o clarinete fosse tanto um instrumento "solo" mas muito mais que a dinâmica entre o piano e o clarinete soassem como uma sinfonia. Coesos e muito mais voltados para a questão timbrica e para a exploração de melodias simples.
As percussões contribuem ainda com um carácter especial para esta música. Qual o papel do Baltazar Molina?
Na última fase surgiu o Baltazar. Gosto imenso da sua sensibilidade e dei-lhe total liberdade. Apenas lhe dei indicações de intenção na música e ele foi livre de criar o que quisesse. Sinto o trabalho dele quase "plástico". É muito textural e subtil. Acrescenta uma intensidade e reforça a coerência da peça de uma forma que eu próprio considero inesperada.
A música integra diversos elementos, que ultrapassa classificações simples. Como autor, como a gostarias de ver definida?
Se não te importares, e correndo o risco de parecer um bocado presunçoso da minha parte, vou-te responder com uma citação do Vergílio Ferreira no romance Até Ao Fim: "Toda a gente tem no bolso uma definição da arte, do amor, política, coisas assim. Dar uma definição é ser deus, por ser definitivo. E então eu digo: a arte é a transcendência sensível do real. Serve-me."
Tens a ambição de fazer uma música globalizante?
Tenho a ambição de fazer música para mim em primeiro lugar. Sei que o facto de fazer música instrumental poderá colocar um factor de internacionalização imanente. Mas também sei como tudo isso está dependente de milhares de circunstâncias. Do ponto de vista pragmático sei que se quiser tornar este estilo de vida consequente a internacionalização é essencial. Mas não faço música a pensar nisso. Isso é um pensamento que surge depois quando tenho de reflectir sobre as questões práticas desta actividade. Até porque, para além de criador, sei que tenho de ter sempre em conta as questões que estão inerentes a esta profissão e não estão diretamente relacionadas com o processo criativo.
Como têm sido as apresentações ao vivo?
Os concertos são uma recriação dos discos. Eu sempre fui muito transparente nos discos que gravo. Algumas das músicas do Insónia entretanto cresceram e têm arranjos um pouco diferentes. Mas julgo que quem oiça os discos rapidamente percebe o que vai encontrar ao vivo. Até porque, por exemplo, o Walden Pond´s Monk, foi gravado de um só take. O que ouvimos no disco é um take do início ao fim. A imperfeição é uma característica muito forte daquilo que faço. Não sendo eu um exímio interprete nem um competentíssimo compositor. Tudo o que tenho para dar é aquilo que sou num determinado momento. E espero que as pessoas venham à procura disso mesmo!
Como tens sentido a recepção do disco?
A recepção em Portugal foi óptima! Não podia esperar melhor! Lá fora está ainda a começar. Mas para já ter conseguido boas opiniões da Foxydigitalis ou da Boomkat são sinais importantes. É sempre bom perceber que pessoas que não têm ligação nenhuma à tua pessoa reconhecem interesse na música que faço. Curioso da crítica da Foxydigitalis é que o tipo, sendo americano, tem outro tipo de ligação à obra do Thoreau e conseguiu com isso ir mais longe nas suas interpretações do disco.
Como tens equilibrado a tua participação nos Pão e a música a "solo"?
Os Pão são uma coisa muito saudável para o meu equilíbrio. São um espaço de experimentação que pretendemos que seja vibrante e aventuroso. É muito mais descontraído dado que estamos a improvisar mas por outro lado é igualmente exigente porque depende muito da dinâmica que conseguimos criar em cada momento e das soluções que arranjamos em tempo real para cada um desses momentos.
Participas na colectânea ReIntervenção da Orfeu com uma versão do Zeca Afonso. Qual é a sua importância para ti?
O Zeca é incontornável na história da música popular portuguesa. Não vou dizer que conheço toda a obra dele de trás para a frente mas acho-o um artista extremamente profícuo, principalmente nas suas colaborações com o José Mário Branco. Há coisas no Cantigas de Maio, no Venham Mais Cinco ou no Enquanto há Força de uma tal actualidade estética que é incrivelmente visionário. Por outro lado o carácter ideológico do Zeca é uma enorme referência. Um tipo que sempre pensou pela própria cabeça e nunca esteve muito interessado em alimentar interesses corporativistas nem falsos-moralismos ou profecias da verdade. A sua preocupação, da forma como eu a leio, está muito mais no quotidiano e nas questões que surgem nesse contexto. Aquilo que fiz com "A Formiga no Carreiro" foi uma apropriação da canção e do seu significado. Não respeito a forma da canção apenas a evoco em algumas linhas melódicas. A reflexão que faço com esta música, cuja letra é muito forte no apelo que faz a que não nos deixemos levar pelas correntes e consigamos manter o espírito crítico alerta e capacidade de regeneração constante e que me parece tão actual, é uma espécie de trauma pós-utópico. É um olhar um pouco triste sobre como, passadas tantas esperanças que chegaram com o 25 de Abril, e o período que se lhe seguiu, hoje estamos de novo consternados a uma classe oligárquica e corporativa que nos rege. Agora já não existe a figura singular do Chefe de Estado mas uma figura muito mais difusa que se usa dos mecanismos económicos para gerir os recursos do país em seu próprio benefício. Muito anti-democrático. Julgo que se o Zeca ainda fosse vivo estaria num estado de espírito parecido com o que tentei evocar na minha abordagem à canção.
Achas que a música pode ser importante para revolução/mudança?
A música, a arte no geral, tem um duplo sentido. Pode servir para reforçar o sentido de alienação e consternação como pode servir para agitar espíritos mais insatisfeitos. Depende não só da música em si mas muito também de quem a recebe e com que propósito. A arte que esteja ligada ao quotidiano terá sempre um potencial revolucionário desse mesmo quotidiano. Pelo capacidade que tem para servir de espelho do nosso estado de espírito individual ou colectivo. Mas isso não difere de todas as outras actividades do quotidiano. Julgo que todas têm um potencial revolucionário enquanto forem um compromisso entre quem as exerce e o fim a que se destinam.
Como auto-avalias a evolução da tua música, desde o Crepúsculo até aqui?
Diria que é uma evolução assinalável. Outra coisa não seria de esperar. O crepúsculo é um disco muito naive e acidental. A partir daí tem sido um processo de evolução e crescimento em "público". O meu método sempre foi empírico e sempre senti que o único caminho que me serve é o de aprender fazendo. Existe uma componente teórica naquilo que faço mas está de braço dado com a componente empírica. O percurso falará por si. Julgo que quem se dê ao exercício de ouvir os meus discos todos facilmente se aperceberá da evolução dos mesmos. Para mim, essa evolução, é uma natural demonstração do meu compromisso com o que estou a fazer.
Como será o próximo disco? Será uma continuação do caminho Insónia/Walden?
O próximo disco chama-se Samsara. Estou a ultimar alguns detalhes para poder ir para estúdio gravar. Não sei bem quando verá a luz do dia porque não tenho planos para o editar ainda. Será uma continuação, sim. Desta vez vou lançar-me na aventura de gravar este disco sozinho. Espero em breve começar a toca-lo ao vivo e poder mostrar a peça. É uma ideia que já tinha sido esboçada no concerto do Maria Matos mas que entretanto ganhou um novo caminho.
Nuno CatarinoEste novo disco é dedicado à vida e obra do escritor e ensaísta americano Henry David Thoreau. Esta ligação à obra do Thoreau surge quando me deparei com alguns dos seus textos e senti uma identificação imediata com os valores que este explana. Valores relacionados com a necessidade de emancipação individual em relação às forças coercivas das corporações, baseada num sentido moral e ético de aspiração à felicidade, em harmonia com a nossa natureza. Valores relacionados também com o transcendentalismo, a simplicidade, o belo ou o seu fascínio pelo selvagem. Senti que as questões que ele coloca me eram tão próximas e tiveram um contributo tão importante na cimentação daquilo que sou enquanto indivíduo que seria importante prestar-lhe a devida homenagem ao mesmo tempo que abraçava o desafio de transportar para música essas mesmas questões. Este é o primeiro factor que influi no processo criativo - a questão ideológica. Depois há um processo estético de construção da obra artística. Quando estás num processo criativo aquilo que fazes não é mais do que uma construção utópica ou distópica da realidade. Através de narrativas ou analogias que vais fazer depender de escolhas que são essencialmente ideológicas, no sentido que espelham aquilo que é a tua natureza e a tua forma de estar no mundo. Valores como o valor da simplicidade ou a evocação do belo, que se encontram na escrita do Thoreau, estão intimamente relacionados com a estética que pratico, igualmente o seu apelo ao selvagem e ao respeito pela natureza individual estão intimamente ligados à minha metodologia audoditacta e "não-erudita" na abordagem ao piano. Essencialmente a construção que faço no disco é uma evocação romântica, saudosista de um tempo que não existe, dos valores e das palavras do Thoreau. Mas o seu contexto não se fecha no tema. O que me entusiasma no facto de fazer música instrumental é precisamente o seu carácter de ambiguidade. Qualquer pessoa fica depois livre de fazer as suas próprias interpretações e de se ligar, ou não, à obra do Thoreau. A partir do momento que o disco está na rua, deixo de ser "proprietário" desse processo. Ele ganha vida própria. Para mim foi importante ter estes livros como referência ideológica mas não quero que o disco se esgote nessa referência.
Quais as principais influências, a clássica do início do XX?
Tenho ouvido muita música. Principalmente a música do virar do século XIX para o século XX e música do século XX. Antes do Romantismo há pouca coisa que me interesse. Nunca me liguei muito ao Classicismo nem ao Barroco. As minhas preferências musicais estão assim mais voltadas para compositores como Erik Satie, Claude Debussy, Maurice Ravel, as primeiras obras orquestrais de Stravinsky, Federico Mompou, Alexander Scriabin, Arvo Pärt ou John Cage. São muitas mais do que apenas estas. O que tem piada nas referências é ser-se eclético o suficiente para que estas se revistam de uma certa incongruência e reforcem as tuas idiossincrasias. O meu universo também é o da música dita "popular" nas suas facções mais contra-corrente. Portanto na minha colecção de música cabem muitos outros géneros e nomes.
Qual o papel do jazz, nomeadamente com os clarinetes do Ricardo Ribeiro?
O Jazz é um pouco acidental na minha música. De facto o Ricardo é quem tem a costela "jazz" mais vincada. Mas nem por isso se pode considerar que ele esteja a fazer jazz. Talvez a faceta mais forte que o jazz impõe na minha música será mesmo o improviso. Sempre gostei desse desafio. O processo que eu o Ricardo tivemos para criar este disco foi um processo algo duro. Quando já tinha a peça numa forma mais próxima do seu final mostrei-a ao Ricardo. Ele tinha participado na gravação de alguns temas do Insónia e a nossa empatia era tão porreira que achei que fazia todo o sentido contar com ele para este disco. Ele ficou muito entusiasmado e durante cerca de um ano andámos a tocá-lo para nós próprios a explorar ideias e diferentes caminhos até chegarmos a uma forma que considerámos que era sólida e coerente com o que pretendíamos. Não queríamos que o clarinete fosse tanto um instrumento "solo" mas muito mais que a dinâmica entre o piano e o clarinete soassem como uma sinfonia. Coesos e muito mais voltados para a questão timbrica e para a exploração de melodias simples.
© Vera Marmelo |
As percussões contribuem ainda com um carácter especial para esta música. Qual o papel do Baltazar Molina?
Na última fase surgiu o Baltazar. Gosto imenso da sua sensibilidade e dei-lhe total liberdade. Apenas lhe dei indicações de intenção na música e ele foi livre de criar o que quisesse. Sinto o trabalho dele quase "plástico". É muito textural e subtil. Acrescenta uma intensidade e reforça a coerência da peça de uma forma que eu próprio considero inesperada.
A música integra diversos elementos, que ultrapassa classificações simples. Como autor, como a gostarias de ver definida?
Se não te importares, e correndo o risco de parecer um bocado presunçoso da minha parte, vou-te responder com uma citação do Vergílio Ferreira no romance Até Ao Fim: "Toda a gente tem no bolso uma definição da arte, do amor, política, coisas assim. Dar uma definição é ser deus, por ser definitivo. E então eu digo: a arte é a transcendência sensível do real. Serve-me."
Tens a ambição de fazer uma música globalizante?
Tenho a ambição de fazer música para mim em primeiro lugar. Sei que o facto de fazer música instrumental poderá colocar um factor de internacionalização imanente. Mas também sei como tudo isso está dependente de milhares de circunstâncias. Do ponto de vista pragmático sei que se quiser tornar este estilo de vida consequente a internacionalização é essencial. Mas não faço música a pensar nisso. Isso é um pensamento que surge depois quando tenho de reflectir sobre as questões práticas desta actividade. Até porque, para além de criador, sei que tenho de ter sempre em conta as questões que estão inerentes a esta profissão e não estão diretamente relacionadas com o processo criativo.
Como têm sido as apresentações ao vivo?
Os concertos são uma recriação dos discos. Eu sempre fui muito transparente nos discos que gravo. Algumas das músicas do Insónia entretanto cresceram e têm arranjos um pouco diferentes. Mas julgo que quem oiça os discos rapidamente percebe o que vai encontrar ao vivo. Até porque, por exemplo, o Walden Pond´s Monk, foi gravado de um só take. O que ouvimos no disco é um take do início ao fim. A imperfeição é uma característica muito forte daquilo que faço. Não sendo eu um exímio interprete nem um competentíssimo compositor. Tudo o que tenho para dar é aquilo que sou num determinado momento. E espero que as pessoas venham à procura disso mesmo!
Como tens sentido a recepção do disco?
A recepção em Portugal foi óptima! Não podia esperar melhor! Lá fora está ainda a começar. Mas para já ter conseguido boas opiniões da Foxydigitalis ou da Boomkat são sinais importantes. É sempre bom perceber que pessoas que não têm ligação nenhuma à tua pessoa reconhecem interesse na música que faço. Curioso da crítica da Foxydigitalis é que o tipo, sendo americano, tem outro tipo de ligação à obra do Thoreau e conseguiu com isso ir mais longe nas suas interpretações do disco.
Como tens equilibrado a tua participação nos Pão e a música a "solo"?
Os Pão são uma coisa muito saudável para o meu equilíbrio. São um espaço de experimentação que pretendemos que seja vibrante e aventuroso. É muito mais descontraído dado que estamos a improvisar mas por outro lado é igualmente exigente porque depende muito da dinâmica que conseguimos criar em cada momento e das soluções que arranjamos em tempo real para cada um desses momentos.
© Vera Marmelo |
Participas na colectânea ReIntervenção da Orfeu com uma versão do Zeca Afonso. Qual é a sua importância para ti?
O Zeca é incontornável na história da música popular portuguesa. Não vou dizer que conheço toda a obra dele de trás para a frente mas acho-o um artista extremamente profícuo, principalmente nas suas colaborações com o José Mário Branco. Há coisas no Cantigas de Maio, no Venham Mais Cinco ou no Enquanto há Força de uma tal actualidade estética que é incrivelmente visionário. Por outro lado o carácter ideológico do Zeca é uma enorme referência. Um tipo que sempre pensou pela própria cabeça e nunca esteve muito interessado em alimentar interesses corporativistas nem falsos-moralismos ou profecias da verdade. A sua preocupação, da forma como eu a leio, está muito mais no quotidiano e nas questões que surgem nesse contexto. Aquilo que fiz com "A Formiga no Carreiro" foi uma apropriação da canção e do seu significado. Não respeito a forma da canção apenas a evoco em algumas linhas melódicas. A reflexão que faço com esta música, cuja letra é muito forte no apelo que faz a que não nos deixemos levar pelas correntes e consigamos manter o espírito crítico alerta e capacidade de regeneração constante e que me parece tão actual, é uma espécie de trauma pós-utópico. É um olhar um pouco triste sobre como, passadas tantas esperanças que chegaram com o 25 de Abril, e o período que se lhe seguiu, hoje estamos de novo consternados a uma classe oligárquica e corporativa que nos rege. Agora já não existe a figura singular do Chefe de Estado mas uma figura muito mais difusa que se usa dos mecanismos económicos para gerir os recursos do país em seu próprio benefício. Muito anti-democrático. Julgo que se o Zeca ainda fosse vivo estaria num estado de espírito parecido com o que tentei evocar na minha abordagem à canção.
Achas que a música pode ser importante para revolução/mudança?
A música, a arte no geral, tem um duplo sentido. Pode servir para reforçar o sentido de alienação e consternação como pode servir para agitar espíritos mais insatisfeitos. Depende não só da música em si mas muito também de quem a recebe e com que propósito. A arte que esteja ligada ao quotidiano terá sempre um potencial revolucionário desse mesmo quotidiano. Pelo capacidade que tem para servir de espelho do nosso estado de espírito individual ou colectivo. Mas isso não difere de todas as outras actividades do quotidiano. Julgo que todas têm um potencial revolucionário enquanto forem um compromisso entre quem as exerce e o fim a que se destinam.
Como auto-avalias a evolução da tua música, desde o Crepúsculo até aqui?
Diria que é uma evolução assinalável. Outra coisa não seria de esperar. O crepúsculo é um disco muito naive e acidental. A partir daí tem sido um processo de evolução e crescimento em "público". O meu método sempre foi empírico e sempre senti que o único caminho que me serve é o de aprender fazendo. Existe uma componente teórica naquilo que faço mas está de braço dado com a componente empírica. O percurso falará por si. Julgo que quem se dê ao exercício de ouvir os meus discos todos facilmente se aperceberá da evolução dos mesmos. Para mim, essa evolução, é uma natural demonstração do meu compromisso com o que estou a fazer.
Como será o próximo disco? Será uma continuação do caminho Insónia/Walden?
O próximo disco chama-se Samsara. Estou a ultimar alguns detalhes para poder ir para estúdio gravar. Não sei bem quando verá a luz do dia porque não tenho planos para o editar ainda. Será uma continuação, sim. Desta vez vou lançar-me na aventura de gravar este disco sozinho. Espero em breve começar a toca-lo ao vivo e poder mostrar a peça. É uma ideia que já tinha sido esboçada no concerto do Maria Matos mas que entretanto ganhou um novo caminho.
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