ENTREVISTAS
Susana Santos Silva
She and the Devil
· 20 Abr 2011 · 10:34 ·
Vem do Porto e é uma das caras novas do jazz português. Trompetista, Susana Santos Silva integra a Orquestra Jazz de Matosinhos - um dos grandes ensembles do género, a nível nacional e internacional - e com este grupo já actuou e gravou com figuras lendárias como Lee Konitz, Carla Bley, Steve Swallow ou Kurt Rosenwinkel, entre outros. Já este ano a trompetista portuense acaba de editar, através da editora Tone of a Pitch, o seu disco de estreia na qualidade de líder, misteriosamente intitulado Devil´s Dress. A acompanhá-la está um grupo de nomes fortes da cena jazz nacional: Zé Pedro Coelho (saxofone tenor), André Fernandes (guitarra), Demian Cabaud (contrabaixo) e Marcos Cavaleiro (bateria). Este quinteto apresenta um jazz original e estimulante, cheio de ideias. O futuro do jazz português passa necessariamente por aqui.
Como aconteceu a ligação ao jazz e a escolha do trompete?

Escolhi o trompete, para o bem e para o mal, tinha apenas sete anos. O meu avô tocava trompete na Banda Marcial da Foz do Douro e ensinou-me a ler música e a tocar o instrumento. Andei no Conservatório de Música do Porto e lá tive as minhas primeiras aulas de introdução ao jazz. Uma vez fizemos uma audição de fim de ano e o Carlos Azevedo foi ouvir. No final convidou-me para tocar na Orquestra Jazz de Matosinhos, na altura a Heritage Big Band. E aí comecei aos poucos a apaixonar-me por esta música. Mas só bem mais tarde tomaria a decisão definitiva de me dedicar ao jazz e à música improvisada. Só depois de dois anos de engenharia e cinco anos de trompete clássico é que finalmente decidi voltar à ESMAE para estudar jazz, depois de ter passado um ano a estudar em Karlsruhe com um trompetista/solista que mudou a minha vida, o Reinhold Friedrich.

Além da ESMAE, a sua formação passou pelo estrangeiro (estudou em Roterdão). Qual foi o papel da educação formal no seu desenvolvimento como instrumentista?

Muito sinceramente acho que a minha formação no jazz se deu mais fora da escola do que dentro dela. O período que realmente me permitiu desenvolver enquanto instrumentista foram os anos em que estudei "clássico". Aí trabalhei o som, respiração, a técnica básica do instrumento, tudo o que é preciso para se ter um domínio técnico imprescindível para nos podermos expressar enquanto músicos. A grande escola devo dizer que foi a OJM, pelo contacto directo com os músicos da orquestra desde que para lá entrei, quando ainda não fazia ideia de grande coisa, e mais tarde com todos os músicos incríveis com quem a orquestra já tocou, desde o Lee Konitz ao Kurt Rosenwinkel.


Com a OJM tocou com esses grandes nomes internacionais, gravou com Lee Konitz que é uma referência da história do jazz. Que ensinamentos retirou destas ligações?

Partilhar momentos com o Lee Konitz foi uma das experiências mais fantásticas que tive porque é como recuar no tempo e entrar na história do jazz e por outro lado olhar o futuro e perceber onde é que eu quero chegar e o que é realmente importante. Com o Lee percebi o quão importante é o nosso som, a nossa identidade enquanto músicos, o quão difícil é tocar uma melodia da forma perfeita, que o importante é mesmo a comunicação e que a essência da música passa por não ofuscar o que é essencial... e que o excesso de velocidade não nos deixa pensar em tempo real! Com a Carla Bley e o Steve Swallow aprendi uma coisa muito importante: nós somos aquilo que tocamos e tocamos aquilo que somos... Eles são dois seres humanos incríveis! Em Dezembro do ano passado recebi um convite deles para integrar a Carla Bley Big Band durante a tournée de Verão pela Europa (que foi cancelada recentemente por falta de concertos suficientes) e durante algum tempo fiquei a pensar "porquê, porquê eu?" A empatia entre as pessoas e identificarmo-nos com alguém e com a sua música é uma mais-valia muito importante. Com o Chris Cheek aprendi a valorizar a melodia e o desenvolvimento motívico acima de quaisquer outras ferramentas. Uma pessoa humilde, cheia de bondade com um som brutal! E muito mais poderia dizer sobre tantos outros... esta continua a ser a minha grande escola!

Acaba de editar o primeiro disco. Sente que nesta altura alcançou já alguma maturidade artística?

Humm... Alguma, acho que sim! Mas acho que tenho ainda muito para aprender, muito para experienciar, muito para experimentar... Longo é o caminho...

O que sugere o título do disco, Devil´s Dress? Será uma música demoníaca?

Nem por isso... ou talvez seja só uma faceta da minha personalidade... logo, da minha música.

O quinteto é constituído por Zé Pedro Coelho (saxofone tenor), André Fernandes (guitarra), Demian Cabaud (contrabaixo) e Marcos Cavaleiro (bateria). Porquê a escolha destes músicos?

São os músicos com quem me identifico musicalmente, e pessoalmente também. Estou muito contente com esta banda, tenho muita sorte em tê-los ao meu lado.

Que ideias pretende transmitir com este seu primeiro disco?

Eu decidi gravar este disco da noite para o dia. À noite era um sonho, talvez um plano longínquo. E no dia a seguir falei com os músicos e decidi gravar. Se tivesse sido planeado com muita antecedência não teria gravado porque acharia que nunca seria o momento certo. Com isto quero dizer que este disco é mesmo o registo de um momento de passagem da minha vida musical. Estou contente por saber que é apenas o primeiro... acima de tudo estou contente por ser honesto para com a música e para comigo própria.
Apenas quero transmitir essa honestidade, que acho que quem ouve sente.


Quais são as suas referências no trompete?

São tantas... Dave Douglas, Kenny Wheeler, Freddie Hubbard, Woody Shaw, Armstrong, Peter Evans, Tom Harrell... e por aí fora!

Como vê o trabalho de músicos contemporâneos como Peter Evans ou Nate Wooley?

Com muito interesse... O Peter Evans é inacreditável, encontrei-me com ele o ano passado, tocámos um bocadinho e é realmente impressionante aquilo que ele consegue fazer com o mesmo instrumento que eu toco!

Apesar de ser relativamente comum encontrar mulheres no jazz, especialmente ao nível da voz, é mais raro encontrarmos instrumentistas, nomeadamente ao nível de metais - a Susana é uma das poucas excepções. Como analisa esta situação? Considera que pode ser um exemplo?

Por muito que me façam perguntas desse género, é-me sempre difícil responder porque para mim é como se eu fosse "one of the guys"... Costumo usar esta expressão porque é mesmo aquilo que sinto em relação ao facto de ser uma mulher no meio de homens. É a realidade que sempre conheci e é uma coisa natural para mim.

Além do seu quinteto e da OJM, em que outros projectos musicais se encontra envolvida?

Tenho um duo com um pianista do Porto, o Hugo Raro. Começamos por tocar standards e queremos extender o repertório a originais nossos. Tenho um trio, os LAMA, com um contrabaixista de Lisboa, o Gonçalo Almeida e um baterista canadiano, Greg Smith, ambos a morar em Roterdão há muitos anos. Gravámos um disco o ano passado e esperamos poder editá-lo na Clean Feed ainda este ano. Gostava de poder tocar mais com este trio porque sinto-me muito bem a fazer música com eles. Faço parte da European Movement Jazz Orchestra (EMJO), que terá o seu primeiro disco editado pela Clean Feed muito em breve. É uma orquestra muito especial, onde tenho muitos bons amigos!

Como líder, pretende concentrar o seu trabalho apenas no seu quinteto ou planeia trabalhar com outros grupos?

Para já sim, concentrar-me no quinteto. Os planos vão surgindo, embora às vezes não se concretizem... Mas quando encontro pessoas com quem me sinto muito bem pessoal e musicalmente a vontade de formar novos grupos é muita, mas nem sempre é possível.

Quais são os seus planos para o futuro?

Não costumo fazer planos a grande prazo. Para já gostava muito de poder tocar bastante com o quinteto e com o trio, que é um desejo quase utópico... Vou continuar a escrever música e quem sabe gravar um outro disco com o quinteto para o ano. E vou esperando pelas pequenas e maravilhosas surpresas que a vida por vezes me oferece. Daqui a 2 semanas, por exemplo, vou tocar com o quinteto ao 12 Points! Jazz Festival, em Dublin... Quem sabe o que pode advir da nossa presença nesse festival tão prometedor!
Nuno Catarino
nunocatarino@gmail.com

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