ENTREVISTAS
Noël Akchoté
Guitar Freak
· 04 Out 2010 · 17:02 ·
Começou pelo jazz, passou pela “free improv†e agora faz o que lhe apetece. O francês Noël Akchoté segue a linhagem dos grandes guitarristas da história, de Tal Farlow a Derek Bailey, de Charlie Christian a Larry Corryell (o “namedropping†ainda agora começou), mas tenta traçar o seu próprio caminho. Gravou um disco de homenagem a Sonny Sharrock (relembremos que Black Woman é um dos discos do século XX) e gravou outro com músicas da Kylie Minogue (aqueles hot pants dourados não saem da cabeça). Tem colaborado com gente de todos os quadrantes, de Sam Rivers a David Grubbs e até já tocou com Manuel Mota (a quem não poupa elogios). É irmão de SebastiAn, um dos nomes grandes a sair da Ed Banger, com quem tem planos para colaborar. Além de um curriculum musical imenso, também escreve sobre música, já participou em filmes e exposições. No dia 8 de Outubro vai actuar no Out.Fest, a solo, mas antes de ir ao Barreiro fala sobre a sua música. E sobre tudo.
Como guitarrista qual é a sua relação com a música de Derek Bailey?

Para mim o Derek é um músico tão importante para o século XX como Glenn Gould ou Scott Ross (ou Andrés Segovia). Um mestre absoluto e acima de tudo o guitarrista mais avançado que apareceu na história do instrumento, digamos, nos últimos 300 anos. O Derek era um virtuoso, quer na guitarra, quer na improvisação. Ao assistir ao Derek ao vivo pudemos confirmar o que sempre acontece na história das artes: que as revoluções são acompanhadas por revoluções técnicas. Tenho a certeza absoluta que daqui a alguns anos os seus solos vão ser transcritos (como acontece com J.S. Bach, Charlie Parker ou Scarlatti) e estudados por guitarristas clássicos. Particularmente, quando comparamos composições contemporâneas de guitarra (Leo Brouwer ou outras tentativas avant-garde nos 60's e 70's) com a forma de tocar do Derek, vemos que ele alcançou um nível que vai mudar (já mudou) os nosso ouvidos por muito tempo. Eu cruzei-me com a música do Derek desde cedo (por volta dos 18 anos), quando estava ainda a absorver técnicas muito clássicas da guitarra jazz (George Van Eps, Freddie Green, Charlie Christian, Joe Diorio e outros como Atilla Zoller) e comecei a procurar frmas mais “abertasâ€. Nessa altura nem sequer fazia ideia que existisse uma coisa chamada “improvisação livre†e quando ouvi pela primeira vez o Derek Bailey (um LP da Incus em dueto com o Steve Lacy) fiquei logo fascinado com aquela maneira de tocar, principalmente porque me apercebi que ele vinha do jazz e de toda a técnica clássica (enquanto que ouvir, por exemplo, James “Blood†Ulmer ainda era muito duro para mim). Mas se o Derek é uma influência musical importantíssima, é tambem pela sua incrível força de seguir pelo negócio da música da forma que o fez, nunca desistindo, mesmo quando surgiram os tempos mais duros. Há esse lado de “working class heroâ€, esse aspecto social e político no Derek, que se reflecte na sua música. Uma música de aresta cortante, sem ponta de gordura. Eu pergunto-me se mesmo hoje haverá muita gente, mesmo nas áreas da músicas livres, que o tenha ouvido com atenção... Julgo que não.

O seu disco Sonny II é uma homenagem a Sonny Sharrock e ao disco Black Woman. Terá sido ele a sua maior influência como guitarrista?

De certa forma, “simâ€... Mas de uma forma complicada. Quando estava a estudar guitarra jazz eu tinha o disco Monkey-Pookie-Boo na minha estante e o LP tinha uma foto do Sonny todo suado. Para mim parecia-me impossível tocar assim... Ele estava a fazer todas as coisas que eu eu achava que estavam “erradasâ€, mas ele não se importava com isso e fazia disso o seu estilo. Sabe quando se pratica aqueles exercícios clássicos para a autonomia da mão esquerda, as combinações de dedos, coisas que dão muito trabalho... Ele estava a cagar-se para isso tudo, estava muito longe (a uma distância espacial, a uma distância planetária, à velocidade da luz). Eu mantive isso tudo na cabeça durante muitos anos e isso lá acabou por funcionar (de uma forma não muito diferente com o que aconteceu quando ouvi pela primeira vez o Bill Frisell, nos meados dos anos 80, com o quinteto do Paul Motian – foi um choque total, nunca tinha ouvido ninguém tocar assim, mas aquilo ficou no subconsciente e anos mais tarde comecei a ouvi-lo com muita atenção). O que posso dizer? O Sharrock é para mim o primeiro e último guitarrista de free jazz que poderia existir. Alguém tinha de fazer aquilo, ninguém se atrevia e ele fê-lo! Basicamente o Sonny começou quase sem técnica (mesmo muito rudimentar, três acordes ou assim, mais nada) e conseguiu algo que eu equiparo em termos de relevância às portas que Picasso e Jackson Pollock abriram. E pode surpreender algumas pessoas, mas aquilo que mais me toca na música do Sharrock é o seu lirismo, a forma como ele toca as melodias. Assim se vê que este é um mundo muito vasto, cada pessoa pode contribuir, todos são bem-vindos, mas só há uma forma de se poder fazer isso: ser fiel a si próprio!

Para além da guitarra, onde vai buscar referências para a sua música?

Essa é uma questão muito interessante. Voltando ao Derek, ele definia-se como “guitarrista†e, nos meus próprios limites, eu também me classifico assim. Mas para além de qualquer instrumento, há a voz. Eu tenho um milhão de influências, mas estas são muito concretas: a forma como se agarra a palheta (de Freddie Green até Tal Farlow, passando por Les Paul ou Tommy Iomi), o que se veste (Kylie Minogue, Yves Saint-Laurent, Marc Jacobs ou Michel Houellebecq), como se transforma coisas numa história (literatura, cinema, imprensa, desporto...). A forma como eu vejo as coisas é sempre horizontal e raras vezes vertical: eu tento entrelaçar expressões, emoções, frases, atmosferas, etc... Por exemplo, o Freddie Green continua a ser uma influência enorme e, mais do que o seu estilo, é a sua consequência e carreira que me marca. Outro exemplo: uma frase do Thomas Bernhard pode ter tanta força como um solo de Steve Swallow ou um desenho de Jean-Paul Gaultier. É assim que eu trabalho e é por isso que as minhas influências são muito alargadas. O que me interessa é a ligação. Antes de começar a ficar conhecido como “guitarristaâ€, já tinha dez anos de experiência com alguns fantásticos músicos, estrelas de cinema e lunáticos, por isso hoje em dia não fico impressionado com a possibilidade de uma “carreira†ou de ficar famoso. Eu não faço julgamentos à partida, recebo tudo e vejo aquilo que tem capacidade para me afectar.

Qual destes discos escolheria, se apenas pudesse escolher um: Metal Machine Music do Lou Reed ou Full House do Wes Montgomery?

Outra questão muito interessante... O jazz foi a minha porta de entrada no mundo da música. Antes dos quinze anos já tinha conhecido pessoas como Barney Wilen, Tal Farlow, Kenny Clarke, Jacques Thollot, Major Holley, Joe Newman, Dizzy Gillespie, Don Cherry, Chet Baker, Philip Catherine, etc. Mas quando o Chet morreu, em 1988, algo parou para mim. E nos anos seguintes muitos destes músicos também despareceram. Foi então que algo morreu em mim, Para mim o jazz não é só um estilo de música, é um estilo de vida. Este início com o jazz “abriu-me†os ouvidos para a verdade na música, não um estilo de música. E a verdade está em todo o lado. Encontramos a mesma verdade no Robert Quine, mas também no Scotty Moore ou no Kenny Burell e nunca existiria um Steve Vai sem Tal Farlow. Ou o Larry Corryell apareceu porque existiu Denis Budimir, Joe Diorio, Ed Bickert, Gabor Szabo, Lenny Breau, etc… Para mim o Eminem é um Frank Sinatra e podemos encontrar um pouco de Billie Holliday no Bob Dylan. Não e uma questão de influências directas, mas sem um não existiria outro. Para mim é uma coisa natural, como quando o Muddy Waters queria tocar como o Charlie Patton e acabou por criar a sua própria marca. Num outro nível, sou completamente fã de Julio Iglesias e de Johnny Guitar Watson, não vejo uma ligação evidente entre os dois, mas eu nunca os poderia ver em campos opostos. Porque podemos ter todos os tipos de gostos na vida. De uma forma diferente, A Gaia Ciência de Nietzsche fala sobre isso, de que uma vez que alguém experimenta e prova muitas coisas muito diferentes na vida, cada cosia nova que surja é sempre bem-vinda. Para as pessoas que têm medo e experimentaram poucas coisas na vida, cada coisa nova é um potencial perigo. Não podemos dizer que a obra de um chefe três estrelas não será superior a um kebab fresco e delicioso, porque ambos são óptimos à sua maneira e uma coisa não exclui completamente a outra.


Tem uma música nova incluída na compilação I Never Meta Guitar, seleccionada por Elliott Sharp e editada pela Clean Feed. O que acha deste disco, acha que reflecte o trabalho dos melhores guitarristas da actualidade?

Eu peço desculpa, mas ainda não ouvi o álbum (tenho de arranjar cópias quando chegar a Lisboa). O Elliott Sharp apresentou-me o projecto e foi uma grande honra para mim participar. O Elliott é para mim uma pessoa essencial, um herói (e já lho disse várias vezes, para mim ele éum herói ao nível do Gene Simmons). Foram pessoas como Elliott, Quine, Arto Lindsay ou Eugene Chadbourne que fizeram imenso pelos músicos que seguiram. Veja-se outra ligação: quando ouvi o Arto pela primeira vez, pareceu-me uma espécie de Freddie Green moderno. Ele dizia imenso com o instrumento e levou-nos às suas origens: um instrumento de percussão. Para mim o Arto será o neto de uma grande linhagem. Talvez como o Elliott seguirá a linhagem de Al Casey, Danny Barker ou John Collins.

Quem são os guitarristas contemporâneos que gosta de ouvir?

Questão complexa… Porque eu não penso dessa forma abstracta, entre “moderno†e “antiquadoâ€. Clarence White, James Burton, Eric Gale, Cornell Dupree, Jaco Pastorius? Hum… Agora a sério, os músicos que que gosto de ouvir hoje em dia: Manuel Mota, Tetuzi Akiyama, Adam Levy, Doug Wamble… E um pouco mais velho mas que ainda consegue surpreender: Kevin Eubanks. De certa forma, pelo facto de ser guitarrista e estar sempre interessado no instrumento, qualquer guitarrista me interessa, quer seja o Mark Knopfler ou o Hans Reichel. Adoro trabalho do Keith Rowe (detesto aquela treta dogmática pós 11 de Setembro, com o pessoal da cena “onkyoâ€), mas sempre que oiço o Keith tocar ouço a melancolia das canções da Broadway. O problema é que estamos a falar de um período temporal relativamente curto, a música gravada abrange cerca de um século, enquanto a literatura ou as artes visuais oferecem um catálogo de pelo menos três mil anos. Gosto de ouvir o Adam Levy porque para mim ele surge logo a seguir ao Bill Frisell (que é quem eu vejo como o último mestre associado ao jazz na linha histórica). O Bill já estava num dilema entre o jazz e as músicas que tinha ouvido quando era mais novo e com uma inclinação natural para o country, por isso desenvolveu esforço de cruzamento de todas estas músicas, pelo que isto agora surge com naturalidade em guitarristas como o Adam. Acho que é neste ponto onde nos encontramos actualmente a bagagem da história da guitarra está acessível a todos, cada um pode pegar nos elementos que quiser e montá-los conforme lhe apeteça. Não podemos dizer que exista uma ortodoxia da guitarra, uma vez que a guitarra começou algo híbrida, não tem uma técnica “fixadaâ€, a guitarra clássica é uma mistura da combinação de diversos elementos inspirados em blues, jazz, heavy metal ou avantgarde. Se olharmos bem, encontramos lá tudo, da mesma forma que o Manuel Mota frequentemente refere o Clapton, pegue-se em Randy Rhoads e ouve-se Chuck Berry, ou o Eddie Van Halen que também tem algum T-Bone Walker e B.B. King. Quando se toca um piano ou violino ou saxofone as coisas devem estar marcadas de uma forma muito mais fechadas. Com a guitarra está tudo mais aberto e é mais fácil para os músicos encontrarem os seus próprios caminhos pessoais.

Conhece bem o trabalho do guitarrista português Manuel Mota, até já chegou a actuar com ele. O que acha da sua abordagem ao instrumento?

Deixe-me ser claro: o Manuel é um herói para mim. Ele é definitivamente um dos músicos mais fortes da actualidade (se não for mesmo o maior). Ele encontra-se num ponto de encontro de uma série de coisas importantes para mim: é um “guitar freakâ€, um profundo conhecedor da guitarra e um dos poucos improvisadores da actualidade que faz sentido para mim. A Margarida Garcia também é, de uma forma diferente, uma artista extremamente forte, devido à sua abordagem única e subjectiva. A primeira vez que ouvi o Manuel foi há muitos anos atrás, em Londres, foi o Derek que me falou dele. Ele disse-me que tinha visto este jovem guitarrista a tocar um solo extremamente consequente e “bravoâ€, enfrentando factos, completamente despido. O meu problema com a muita improvisação é que por vezes pode ser “falsaâ€. O processo faz o jogo, não ao contrário. Relativamente a isto, o Manuel é completamente assombroso. Ele é um daqueles músicos que começa logo no meio da música (sem introduções nem nada) e joga esse jogo num nível altíssimo. Também aprecio a sua relação com o instrumento: enquanto toca, faz-me ouvir diversos ecos dentro do seu timbre. De certo modo, lembra-me também o meu guitarrista preferido de todos os guitarristas jazz, o subvalorizado belga René Thomas, que sempre tocou no limite, frase após frase, numa linguagem sempre despida. Quando eu mostro a música do Derek a guitarristas discípulos de Django Reinhardt , normalmente não comentam aspectos da improvisação, mas dizem: “ele é um mestre da guitarra e toca de igual forma nas seis cordas!â€. Eu diria a mesma coisa do Manuel.

De todos os seus discos, qual é aquele que gosta mais? E qual recomendaria para quem nunca ouviu a sua música?

A tentação natural seria dizer para esperar pelo próximo disco, mas acho que o Lust Corner [de 1997, com Eugene Chadbourne e Marc Ribot] foi uma conquista, uma espécie de primeiro e último disco “jazzâ€. Nesta altura eu andava a tocar com muitos músicos europeus, especialmente franceses, e comecei a sentir-me deslocado. É verdade que estava a conseguir fazer algum dinheiro e isso ajudava-me a avançar com a minha música, ao ir a Londres (Derek, Evan Parker, Lol Coxhill), Nova Iorque (a Knitting Factory na Houston Street) ou Zurique (RecRec, Electronica, Rote Fabrike). Nada disto existia em França naquela altura e era muito difícil chegar a músicos como David Grubbs, Jim O'Rourke, Fennesz, Markus Popp, Gunter Muller, Rioji Ikeda, Bernard Gunther, mas também Arto Lindsay, Elliott Sharp, Chadbourne ou Robert Quine. O Lust Corner foi originalmente um álbum que produzi sozinho, sem fazer ideia onde o iria editar. Mas eu precisava de ir em frente, de tocar e confrontar-me com estes grandes músicos. Só algum tempo mais tarde é que conheci o Stefan Winter, que estava à procura de projectos para editar na sua nova editora Winter & Winter, e queria um projecto com o Marc Ribot. Para mim este disco representa o fechar de um ciclo, da minha ligação ao euro-jazz, e o começo de um outro. O disco So Lucky [de 2007] era outro disco muito desejado e outro ponto de viragem. Foi por essa altura que me desliguei um bocado da cena “improvâ€, desiludido por encontrar os mesmos problemas e limites que existiam nos outros estilos. Para mim não era mais livre e improvisado que muitas coisas de hard bop, fusão ou outro género. Julgo que a maior parte dos improvisadores sofre de um complexo que é “medo de cançõesâ€, ou de uma forma mais clara: uma relação neurótica de amor/ódio com canções, porque suspeito que durante a infância estiveram apaixonados pela música popular, mas foram-na rejeitando com a chegada da idade adulta. A improvisação é um facto, a partir do momento em que se transforma num estilo, com as suas regras, deixa de ser uma coisa natural, orgânica. Decidi começar o So Lucky durante um inverno em que estava algo perdido sem saber em que direcção seguir. A rádio estava ligada, a tocar músicas da Kylie Minogue, e então comecei a tocar por cima, foi aí que tive uma espécie de revelação, que me fez regressar às canções. Alguns meses antes eu andava a ouvir as gravações do Freddie Green, que gravou com Billie Holliday, Count Basie, Lester Young, etc., e foi aí que me apercebi da importância de tocar num papel secundário, a apoiar o artista principal. E isso leva os músicos a ser muito precisos, a não vaguear, a não falhar uma nota. Para além disso, eu sou uma pessoa feliz, eu amo amar, rir, divertir-me... Eu preciso de felicidade, a tristeza é demasiado fácil, é habitualmente uma postura de recusa de ir além e estar com pessoas... Na área do jazz músicos como Ornette Coleman, Don Cherry, Archie Shepp ou Albert Ayler fazem música alegre, dançável, música para todas as pessoas e não apenas só para alguns. Um outro álbum de que eu também gosto muito é Alike Joseph (1999), um solo editado na Rectangle, mas que já não se encontra disponível. O David Sylvian fez uma nova mistura para estas gravações e já falámos sobre uma possível reedição na Samadhi. Estou certo que este disco vai ser reeditado, mais cedo ou mais tarde.

Um dos seus álbuns favoritos (e mais recentes), So Lucky, e é um conjunto de interpretações a guitarra solo de canções de Kylie Minogue. Qual é a sua relação com a música da Kylie? Foi apenas por diversão?

Mas a diversão é a coisa mais importante na vida, é a única coisa que interessa! Tudo o resto, toda a agitação social, guerras e conflitos, é tudo lixo. Eu gosto muito da Kylie, tal como sou fan de Julio Iglesias, Robbie Williams e muitos outros grandes artistas populares. Algo que me prendeu na Kylie foi também a forma como ela é e se comporta: ela não finge ser “artistaâ€, ela diz que é uma “entertainerâ€, contrariando a moda de que todos são artistas hoje em dia. Ela é uma funcionária da indústria musical, ela produz sonhos e entretenimento – tal como os músicos de jazz costumavam fazer. A razão pela qual eu escrevo em diversas revistas é porque acho que “nós†(as pessoas que têm conhecimento de muitas músicas) temos o dever de informar e partilhar. A boa música não precisam de etiquetas ou de géneros, precisa de ser divulgada, não é um estilo, é boa música, ponto. Por isso a Kylie sempre foi para um excelente exemplo de que eu prefiro ficar deste lado da música (como trabalhador do mundo da música) do que pertencer a um clube de acesso restrito. É preciso abrir, não julgar. Se levarmos as pessoas que estão na audiência a sério, elas perceber. A cena “improv†tente a formar públicos fechados. Uma vez vi a Margarida Garcia a tocar num bar barulhento, sem público especializado, só pessoas a beber cerveja. A música dela chegava às pessoas, porque é densa e provoca impacto, as pessoas sentem. É preciso levar a música às pessoas, não podemos esperar que as pessoas descubram sempre tudo. Neste momento estou a preparar um novo álbum solo chamado Pink Lady, com canções que toda a gente conhece no Japão, e quero ver as reacções das pessoas. O melhor comentário que já li sobre o So Lucky veio de um site alemão de fãs da Kylie, onde as miúdas de 14 anos reagiam às versões das músicas que conheciam de cor, não a pensar que se tratava de mais um projecto de um guitarrista avantgarde a explorar o mundo pop.


Tem estado concentrado em actuar a solo. É a sua forma preferida de tocar ou prefere interagir com outros músicos?

Comecei a tocar a solo porque senti que era um músico fraco e precisava de me encostar à parede para perceber o que conseguiria fazer. Depois continuei porque quando deixei o jazz fiquei a ressacar daqueles solos intermináveis. Continuo a tocar muito a solo porque é da maneira que melhor consigo dirigir a música na direcção que quero. Faz sentido querer tocar com mestres e eu conheci muitos (Tal Farlow, Chet Baker, Miles Davis), cheguei a tocar e até a ir em tour com alguns, e posso dizer que nunca irei alcançar aquele nível só por tocar. Era fantástico subir ao palco com músicos como o Lol Coxhill, porque não precisávamos de falar e podia acontecer qualquer coisa, era tudo possível (de barulhos estranhos, a reggae, até canções da Broadway!). Com o Sam Rivers também era a mesma sensação, dentro da mesma peça o Sam era capaz de atravessar toda a história do jazz. Mas tanbém tenho outros interesses na vida e vejo-me mais a trabalhar como escritor ou realizador. Nos solos eu consigo entrar na narração, sequências, tempos, etc.

Como tem sido o trabalho com o grupo Big Four, com Max Nagl, Steven Bernstein e Bradley Jones?

Tem sido fantástico, como o Max é, tudo muito humano e natural. O Max é um extraordinário compositor, ele compõe como instrumentista mas também como compositor, talvez como Tim Berne ou Duke Ellington. O Big Four não é um grupo “all starâ€, há uma verdadeira história entre nós. O Max, o Steven e o Brad conhecem-se há mais de 25 anos, são amigos desde sempre. De há dois anos para cá o grupo passou a quinteto, com o Joey Baron na bateria, e isso tem sido bom para mim. Com o Big Four, e particularmente agora com o Joey e o Brad na secção rítmica, eu posso fazer coisas que não tenho oportunidade de fazer noutros contextos. O grupo vai fazer dez anos em breve e deveremos fazer uma tour em Novembro, pela Europa.

Tem colaborado tambem com o David Grubbs, com quem uma música diferente. Esta colaboração faz parte do passado?

É importante salientar que eu não toco música diferente com o David, a base da nossa colaboração é que cada um toca o que toca mas em conjunto funciona num novo contexto. Mas eu percebo o que quer dizer e isso às vezes é um problema, porque eu ando a tocar há 34 anos e já toquei um pouco de tudo, mas raramente há uma ligação entre toda a música. Cada actividade é vista de forma isolada, é difícil as pessoas fazerem a ligação da mesma forma que eu o faço. Eu toquei canções pop e toquei com o Manuel Mota com a mesma alegria que toco com músicos ciganos. Este ano estive em digressão com o David pelo Japão, começámos em Kyoto com um espectáculo baseado em composições de Luc Ferrari (com Otomo Yoshihide, Tetuzi Akiyama, Fumio Yasuda) e continuámos pelo país com espectáculos a solo e em duo. O David é uma pessoa muito importante e muito próxima. Nós conhecemo-nos numa altura especial para o David, os Gastr Del Sol tinham acabado e ele veio viver para Paris durante um mês. Aquilo que eu mais gosto, e que é a base da nossa reação, é que somos completamente distintos. Ele vem de Louisville (no Kentucky, a terra do bluegrass), eu venho de Paris. Quando fui visitá-lo a Chicago pela primeira vez vi que ele tinha uma grande colecção de discos, onde se encontravam todos os tipos de música - do Derek Bailey até jazz do início do século, de Han Bennink a punk rock, de clássica contemporânea a folk. Na minha fase euro-jazz fucava aborrecido ao ver que as pessoas só ouviam músicas parecidas àquilo que faziam e tudo o resto era considerado mau ou impróprio. Nessa altura eu não podia partilhar as coisas que ia descobrindo, nem essas pessoas estavam interessadas. Com o David é o oposto, sempre partilhámos muita música. A nossa relação continua mito forte, ainda agora passámos alguns dias juntos em Paris, é uma história de amizade.

Li que tem estado a trabalhar com o seu irmão SebastiAn, DJ da Ed Banger. O que poderemos esperar de um encontro entre músicos vindos de universos tão diferentes?

O SebastiAn é o meu irmão mais novo, é doze anos mais novo que eu. Quando começámos na música andavamos em campos muito afastados, pelo que nunca nos cruzamos antes. Só recentemente começámos a pensar em fazer coisas juntos, apesar das óbvias diferenças em termos das nossas abordagens à instrumentação. Já fizemos uma série de concertos com Jean-Louis Costes e também já partilhamos DJ sets. Eu adoro a sua maneira de abordar o DJing, é uma espécie de versão electrónica de punk no CBGB… muito activo e muito físico, utiliza todas as potencialidades do gira-discos, como um virtuoso. Mas mais do que tocar, aquilo que gostaria de fazer com o SebastiAn seria criar uma editora/empresa/produtora, para produzir e divulgar muita música, mas também livros, filmes, arte, etc. Nesta altura o SebastiAn está para lançar o seu primeiro (e muito aguardado) álbum.

Para além de fazer música, também escreve sobre música, em várias publicações. É fácil conciliar estas duas actividades?

Eu acho muito importante que os músicos exprimam os seus pontos de vista. Há poucos músicos a escrever sobre estas áreas e quando isso acontece é quase impossível ler, com merdas neo-teóricas tornadas complexas para disfarçar um vazio de ideias do discurso – parece que é necessário manter o discurso codificado, obscuro, de modo a que ninguém perceba que não há lá nada. Os únicos que fazem isto são o Steve Beresford e o Alan Licht. Mas quem mais? O Lester Bangs fez aquilo que mais se aproxima a tocar música em forma escrita (e que começou como crítico de jazz e sempre escreveu críticas fabulosas sobre discos de jazz, mas quase ninguém no jazz o conhece). Eu escrevo sobre jazz porque conheço bem o tema e penso sempre que posso estar a abrir novos espaços para novos públicos, públicos jovens.

Já participou em filmes como actor e esteve presente em exposições. Tem a ambição de se tornar um “artista completo�

A arte completa era a ópera, depois passou a ser o cinema. É uma forma de arte onde ao mesmo tempo se sobrepõem diversos níveis. Enquanto faço um solo de guitarra, consigo juntar no máximo dois ou três níveis. Eu nunca deixarei de tocar guitarra, mas a guitarra não é tudo para mim. Neste momento estou envolvido em diversos projectos. Por um lado continuo a desenvolver o trabalho a solo mas continuo, entre outras coisas, a desenvolver um projecto doido, que é escrever um livro (resumidamente, um romance sobre guitarras e humanos).

Em Portugal vai actuar no Out.Fest, um festival de música exploratória. O que poderemos esperar desta actuação?

A palavra “exploratória†é um termo fantástico neste caso. Diria que o Vasco de Gama foi um explorador ou conquistador? Eu vou tocar a solo em duas partes diferentes, com um intervalo pelo meio. Na primeira parte vou tocar uma série de canções: Ramones (“Gimme Gimme Shock Treatmentâ€), Lou Reed (“Heavenly Armsâ€), Kylie Minogue (“I Should Be So Luckyâ€), Britney Spears (“Womanizerâ€), Daft Punk (“Around the Worldâ€), Kiss (“I stole your loveâ€), mas também John Fahey (“In Christ there is no East or Westâ€), Link Wray (“Rumbleâ€) ou “Miserlou†(uma canção tradicional grega popularizada por Dick Dale), bem como alguns originais. Já a segunda parte vai ser improvisada. As canções são algo que podemos abordar de muitas perspectivas diferentes.
Nuno Catarino
nunocatarino@gmail.com

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