ENTREVISTAS
Feromona
Rock do dia que tarda
· 05 Jul 2010 · 14:08 ·
Toda a escola de maus hábitos valeu a pena para que a Feromona chegasse a um disco como Desoliúde, crónica de uma espera demasiado longa e um coice na porta que admite ou não a entrada de bandas na Hollywood à pequena escala. Enquanto desconstrói o glamour dessa mesma Hollywood, a Feromona continua a glorificar os mesmos Chicos Fininhos e homens-animais, que já bebiam e desabafavam juntos no primeiro Uma Vida a Direito. Afectado pela ressaca do dia seguinte, Desoliúde está cheio de canções que acordam num lugar incerto, quase sempre revelador de alguns dos mais interessantes desvios tomados pelo trio lisboeta até aqui (o coro em “Canção para nós” e o registo falado na faixa-âncora “Isto não é Hollywood”). E este conceito-sorrateiro serve também para que o assalto destas doze canções possa prosseguir nas muitas noites de concertos em Lisboa, a cidade que já os tem quase como banda residente. Diego Armés (guitarrista, vocalista e o homem levado em braços nas fotografias) é um conversador espirituoso que reserva respostas para quase tudo. Desta vez falou-nos do inevitável Desoliúde, do Japão e da Courtney Love.
Que tipo de disciplina e rituais associarias especialmente à gravação de Desoliúde?

Levantar pelas nove horas da manhã, ir para Cascais, apanhar sol no alpendre, almoçar às três da tarde, tocar, gravar, ouvir, avaliar, tocar mais e gravar mais. Regressar a Lisboa ao cair da noite.

A partir desse horário-ritual que referes, fico também com a ideia de que os motores da Feromona só começam mesmo a aquecer depois das três da tarde. Até que ponto a manhã é para vocês um terreno proibitivo para gravar, compor e tudo mais?

Bom, ali, naquela situação, estávamos a levar as coisas tranquilamente. As manhãs eram mais descontracção e criação de ambiente. As tardes ficavam para o trabalho mais duro. É bastante natural, já que o iniciar de mais um dia num estúdio montado do zero numa casa vazia implica re-ligar todo o material, preparar tudo de novo, etc.. As manhãs não são necessariamente proibitivas para nós - a prova disso foi a forma como preparámos os concertos de lançamento do Desoliúde, sempre à base de ensaios matinais - e eram ensaios exaustivos, não foram brincadeira. A segunda fase de gravação, com vozes, etc., foram todas feitas da parte da manhã também. Quando mencionei aquele ritual, referia-me especificamente à semana de gravação do "corpo" do disco, digamos assim, num casarão em Cascais. Quanto a compor, prefiro fazê-lo na tranquilidade da noite. Mas porque estou mais sossegado e com os sentidos mais apurados, os pensamentos mais oleados. Mas trata-se apenas de uma preferência, não de um método rígido e inflexível. Isto é pouco do rock, não é? Assumirmos que também trabalhamos de manhã... Dantes não era assim, só ensaiávamos à noite, até às tantas da manhã, a beber cerveja, a fumar milhões de cigarros...

Agora que Alfama até merece a sua própria música, de que maneiras dirias que a vivência nesse bairro influencia o restante disco?

Alfama, em si, talvez influencie muito pouco. “Alfama”, a canção, é uma colecção de imagens, de recordações de noites de boémia em Alfama. Portanto, não estamos a falar de uma Alfama típica, de fados e guitarradas, necessariamente; vai para além disso, embora também contenha isso. É a boémia numa Alfama que é um micro-cosmos que se subdivide em outros quantos sub-micro-cosmos. Vai do típico-chic ao castiço engordurado; vai do fado à bossa nova e não se esquece de novas tendências. Tem muita gente nova de fora e, também, muita gente que está de passagem, estudantes estrangeiros, imigrantes temporários... A Alfama de agora não caberia num fado que falasse só em tristezas e traições. Posto isto, se calhar é de ignorar o início da resposta: afinal Alfama influencia bastante as vivências do resto do disco. Por tudo o que expliquei atrás.

Até que ponto o texto “Isto não é Hollywood” serviu como plataforma de arranque para os restantes temas do disco? Foi, pelo menos, uma das primeiras letras escritas para o Desoliúde, não?

Não. Foi a última letra a ser escrita para o disco, mesmo. Foi uma espécie de epílogo. Não influenciou as outras letras. Pelo contrário, resultou das outras; foi, de alguma forma, a súmula do disco. Se fosse um filme americano, seria aquela parte em que se explica e se resolve a história para as pessoas mais distraídas. Sendo um disco português, serve para quem não entende o disco achar que o está a interpretar. Tem resultado.

E a partir da letra de “Isto não é Hollywood” foi muito natural chegar àquele registo de canção falada ou ainda tentaram outras formas?

Não havia qualquer outra possibilidade, só se adulterássemos o texto original. É impossível cantar aquele texto.


Escolheram alguma música para representar o Desoliúde como primeiro single?

Escolhemos a “Selvagem Tosco”. É uma música que causa algum impacto, é trauteável, com um refrão forte. Tem umas harmonias agradáveis e uma letra esquisita. Tínhamos algumas dúvidas, acabámos por escolher esta. Ao vivo já é um tema que resulta muito bem.

Como tem sido tocar com um segundo guitarrista nos últimos concertos? Acreditas que as músicas do Desoliúde exigiam ainda mais esse “power” que se alcança com duas guitarras?

Não tem sido apenas mais um guitarrista. O João Gil também toca teclas. Por um lado, é fundamental para podermos contar com os arranjos do Desoliúde, impossíveis de reproduzir em palco sem um quarto elemento; por outro lado, é uma grande descontracção – sobretudo para mim – ter um reforço de guitarra para as canções do Uma Vida a Direito e naquelas do Desoliúde em que há duas guitarras. Em termos de “power”, é claro que acrescenta. Tem sido muito positivo tê-lo connosco. Isto, para além de acrescentar uma nova dimensão ao espírito de grupo. Estamos numa nova fase de Feromona, seguramente.

A colaboração com o João Gil será para continuar?

Espero que sim. Assim ele o queira. Aliás, nem quero que seja uma colaboração - que não é, já. Quero que o João seja da Feromona tal como eu sou ou o Bernardo ou o Marco.

Tenho ideia de que, ao longo dos tempos, os vossos concertos atraíram um grupo de admiradores que depois se foram tornando amigos e agora colaboradores. A “Canção para nós” também celebra isso? Algumas das vozes que cantam naquele coro começaram por ser assíduos dos concertos de Feromona?

Essa ideia não será muito correcta... Temos colaboradores que são amigos, sim, mas que não começaram por ser admiradores. Talvez se tenham tornado admiradores por serem amigos antes disso e não o contrário. A “Canção para Nós” celebra a tal amizade, o espírito de partilha, a união. Mas celebra-o tal como está gravada – recorremos a um coro de amigos, quase todo constituído por pessoas que estão ligadas à música e a outras bandas. Importa dizer que tanto o Bernardo como o João Gil têm outros projectos, pelo que essa partilha, essa união – nalguns casos, essa promiscuidade (no bom sentido) – proporciona encontros e, no caso, permitiu que tivéssemos 18 ou 20 pessoas a cantar uma canção para nós, Feromona.


Gosto de como o Desoliúde está cheio de referências ao cinema. Existem alguns filmes de culto que reúnam especial consenso entre vocês? Havia um gozo especial em tocar com aquele filme do Jack Nicholson projectado sobre vocês no concerto do Crew Hassan?

No Crew Hassan só percebemos que era o Jack Nicholson quando vimos as fotos do concerto, acho eu. Há vários filmes e autores que reúnem simpatias sintonizadas da nossa parte. Mas temos gostos distintos, para além de nem todos sermos aficionados do cinema. O Bernardo talvez seja o mais expert na matéria. Acho que é melhor não me atrever a citar nomes nem títulos, não vão os restantes achar desengraçado, não vá eu meter o pé na poça... De herança do primeiro disco, temos todos a noção de que o Steve McQueen tinha uma pinta descomunal. É claro que entre nós há admiração pelo Tarantino, não dizemos que não a um Fincher. Mas depois, cada um vê os seus filmes. Há quem goste dos clássicos italianos. Eu, por exemplo, era capaz de passar horas a ver filmes de acção do Paul Verhoeven.

Como observas a evolução da típica Courtney Love nestes últimos 10 anos? É uma espécie que ainda faz sentido nos dias de hoje?

Não sei se percebi bem a pergunta... Se estamos a falar da típica roquenroler rebelde, que mostra as pernas e se mete nas drogas, acho que ainda existe disso e há-de existir enquanto houver fãs de rock. Se calhar até há mais espécies de Courtneys. Mais facilmente sabemos os nomes das clínicas de desintoxicação da Amy Winehouse do que o nome de um álbum dela... Não sei se tudo será genuíno; não sei se alguma coisa será interessante. Portanto, se calhar não faz muito sentido, para mim; mas faz sentido para o imaginário do rock, para o que resta desta indústria de ícones. Quando eu tinha 15 ou 16 anos, achava a Courtney Love uma tipa fixe. Hoje em dia não me diz nada. Ficaram canções porreiras, uma imagem forte, uma atitude desequilibrada. Um mito. Mas prefiro a PJ Harvey.

Conta-me um pouco sobre aquele concerto de Feromona no Japão. Costuma ser sempre uma ocasião marcante para as bandas do ocidente. Como foi estar ali a cantar em português para um público feito essencialmente de japoneses?

Marcante foi, como poderia não o ser? A tua vida vai assim, sempre em frente, sempre igual e previsível e, de repente, há um desvio nesse percurso irritante e zás, estás no Japão, num festival com alguns milhares de pessoas, sem perceberes muito bem como nem porquê. Quanto ao público, para além de terem, obviamente, adorado as letras, aplaudiram bastante e pediram discos (que não tínhamos ainda, na altura). Ninguém sabia quem nós éramos, uns quantos sabiam que Portugal existia, mas reagiram surpreendentemente - deram atenção, mostraram curiosidade. Recebemos, na altura, muitos e-mails a encomendar discos, a pedir informações sobre a banda... Fora isto, foi já extraordinário o bastante o facto de estar ali, do outro lado do mundo, numa cidade imensa. Durante uns tempos, não tínhamos sequer percebido bem se aquilo nos tinha acontecido mesmo. Era assim uma imagem vaga, do tipo "eu tenho ideia de ter estado num sítio estranho" mas levámos algum tempo até partilharmos as recordações uns com os outros, com as ideias organizadas.
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
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