ENTREVISTAS
Von Calhauism
Barafunda Moribunda
· 06 Jun 2007 · 08:00 ·
Marta Ângela e João Alves formam um dos duos mais inventivos e estapafúrdios que o Porto já alguma vez pariu. O marasmo em que a cidade vive transporta uma necessidade de destruição à qual eles não são alheios. Em “reequacionamento constante”, utilizam inúmeros nomes para se exprimirem, que “podem sempre ser refeitos ou reutilizados”, sem ordem qualquer. Todas essas identidades são diferentes ramificações de uma árvore genealógica comum iniciada por Calhau!. Fruto dessa árvore, em pouco mais de um ano a Calhau Records – etiqueta de CD-R por eles criada – conta já com quatro edições: Schhheeeeeeeeeee! dos Electrocutatus Santificatis Rudimentarum Extremis Electrocutatus Santificatus Rudimentarus Extremis Electrocutatum Santificatum Rudimentarum Extremis, Alive at Batalha e E cho dos Calhau!, e Avanti Canibália dos Má.

Movimentam-se no seio da barafunda e todo o lixo que se lhes afigura pode ser reciclado. As ferramentas de trabalho vão do delay até aos filtros, dos samplers à electrónica modificada, passando por uma boneca que funciona melhor sem pilhas, ou ainda por gravações de campo, que são marco da passagem dos seus dias e, sobretudo, da sua relação. O resultado é uma paleta de sons quase indiscerníveis que convivem entre si livre e harmoniosamente. Aqui chamam-se Marta e Alves Von Calhauism. É tempo de os conhecermos, definitivamente.

Esta entrevista foi publicada primeiramente em audio no programa de rádio A Sagrada Partirura, da Rádio Universitária do Minho.
Vocês começaram a trabalhar juntos em Abril de 2OO6. Antes disso ocupavam os vossos dias a fazer o quê?

Marta: Eu nem sei se ocupava os meus dias… Nós conhecemo-nos em Março num workshop de circuitbending que o João resolveu organizar cá no Porto. Na altura, eu já fazia uns dj sets (que eram mais concertos do que dj sets) e queria expandir para uma coisa mais rasgada, mais “curto-circuitada”, mais electrificada. Precisava de bombear esse lado destrutivo. Quando uma pessoa vive muito tempo no mesmo sítio – e eu já vivo no Porto há dez anos – tem vontade de destruir a cidade para poder viver nela outra vez.

João: Eu vim viver para o Porto mais ou menos nessa altura. Antes disso, tinha outro projecto musical que era uma mistura entre electrónica e grindcore.

Desde então, são já várias as designações pelas quais vocês se fizeram passar. Existe alguma ordem no aparecimento/desaparecimento de cada uma dessas designações?


João: Não, não existe ordem nenhuma. Os nomes aparecem e podem sempre ser refeitos ou reutilizados, como já aconteceu. É um reequacionamento constante motivado pela necessidade de, num momento específico, atribuir um nome a um trabalho nosso.

Há estados de espírito especificamente ligados ao aparecimento desses nomes?

Marta: Para mim tem a ver com os ciclos do dia-a-dia. Os dias são sempre diferentes e eu, como pessoa, sentia alguma necessidade de mudar o meu nome, a minha identidade. Por isso, achei que também fazia sentido explorar diferentes personagens nas actuações. Com o João, essa tendência de mudar os nomes agravou-se, porque as coisas tornaram-se mais intensas. Toda essa atmosfera precisava de um nome. O Calhau, no fundo, foi o marco que conseguiu difundir os outros nomes. Começamos com o Calhau e a partir daí estamos a encontrar uma família. Como se Calhau fosse o pai, ou a mãe…

João: E os outros são os filhos…

Apesar de tudo, não existem, na minha opinião, diferenças significativas entre os universos de cada uma dessas designações. Acentuar essas diferenças poderá ser um caminho a explorar?

João: Eu acho que há diferenças…

Por exemplo, todas as músicas dos Má podiam perfeitamente pertencer aos Calhau…

João: É uma família. Somos nós que trabalhamos o mesmo tipo de ondas, ou o mesmo tipo de exposições. Há uma linha, claro, mas essa linha também é muito frágil. É natural sentir relações entre elas. Temos orientações. Não são orientações definidas, mas existem mínimos.

Marta: No fundo, somos sempre as mesmas pessoas…

As vossas edições são publicadas através da Calhau Records, editora CD-R por vocês criada. Em poucos meses, a Calhau Records conta já com quatro edições. Estas edições são fruto de um trabalho contínuo, ou de encontros esporádicos prontamente editados?

João: É um trabalho contínuo. As edições podem ser pontuadas, em determinadas situações, com uma gravação ao vivo, por exemplo, como foi o caso do concerto na Batalha. Isso foi, digamos, para pontuar a geografia que estávamos a utilizar na altura. Mas nós não nos juntamos para fazer aquele álbum específico. Aquele álbum é também o resultado de vários dias passados juntos.

Marta: É engraçado falares em pontuar… Acho que é mesmo como um texto que vamos construindo e vamos pontuando. Não sei quando é que vai acabar, espero nunca.

Não acham que este ritmo é demasiadamente acelerado? Não temem que seja retirada alguma seriedade aos trabalhos?

João: Acho que não. Acho que até podíamos editar discos ao pequeno-almoço. Já pensamos nisso… Em cada pequeno-almoço, em cada café…


Porquê esta urgência de editar?

João: Não queremos que os discos sejam o resultado de um trabalho realizado durante não sei quanto tempo. Queremos que os discos sejam, em si, os restos de um processo de trabalho. Queremos que os discos marquem os dias, ou seja, aquilo para que estamos virados naquela altura.

Marta: Também tem a ver com ser ocioso… Acho que às vezes há uma interpretação errada da noção de trabalho. Afinal de contas, a seriedade pode estar também ligada ao ócio, ao dia-a-dia, a esse tal work in progress.

João: O entendimento que eu tenho do que nós fazemos, deve muito mais à nossa relação pessoal, do que a qualquer trejeito ou tique artístico. Isso acontece, naturalmente, mas o resultado disso deve muito mais à nossa relação e à empatia que se junta naqueles dias. E as gravações servem para marcar a nossa relação.

No campo da música experimental/improvisada, no qual vos podemos inscrever, é frequente a utilização de materiais pouco convencionais. No vosso caso, que tipo de materiais/instrumentos utilizam?


João: Microfones de contacto, uma data de filtros, samplers, um delay, gravadores de bobines adaptados, muita electrónica modificada, objectos… Depois há gravações de campo, e isso aí ainda corresponde mais à tal passagem do dia, porque nós gravamos muito.

Marta: Também há uma boneca moribunda que quando está com as pilhas em baixo funciona mesmo bem…

João: Toda uma parafernália de lixo…

Todo o grafismo que vos envolve é genial. Há artistas que influenciam esse trabalho?

Marta: Há influências, tem a ver com o psicadelismo…

João: Posters da década de 60, tipo Rick Griffin. Essa influência existe, mas o nosso trabalho tem muito mais a ver com a forma como nós nos relacionamos com isso. Os gráficos são todos feitos a meias, tal como o som. É tudo feito à base de partes cortadas, desenhadas por cada um de nós. Portanto, é tudo feito ao milímetro pelos dois. As influências são imensas e têm a ver com o dia, com o que nos aparece, com o que andamos a estudar. O Griffin e a década de 60 é uma coisa que nos atrai, mas há muitas outras.

E ao nível musical, podem citar algumas influências?

Marta: Desde Smegma, até…

João: Ao Sun Ra… Tudo o que vamos ouvindo, vamos constantemente descobrindo coisas novas…

Marta: Os animais também…

João: Nós temos um arquivo de sons de animais, que usamos para fazer loops. Em quase todos os concertos há disso. O chilrear de um passarinho, ou uma vaca, um boi, um porco, um burro… Nós ouvimos isso da mesma forma que ouvimos o Astro Black do Sun Ra… É tudo o que ouvimos.

Marta: Exacto, não há restrições. Há coisas que me custam um bocado mais a ouvir, mas nessas eu também insisto.

João: Os finlandeses… Houve uma altura em que ouvíamos muito…

Marta: A Finlândia é muito forte…

João: Erkki Kurenniemi, Sperm…

Marta: Tem a ver com o avant garde dos anos 60, 70...

Tendo em conta a ligação do João à Videoscreening, não há projectos para a realização de suportes audiovisuais para a vossa música?


João: Nós acabamos de fazer a banda sonora para um filme chamado Boys in the Sand, um porno gay de princípios dos anos 70. O filme estava incluído num ciclo de cinema sobre essa temática e nós fomos convidados para fazer a banda sonora. Foram 72 minutos de orgasmo com filme à mistura.

Mas nós também temos filmes nossos, em Super 8, que nunca chegámos a projectar nos concertos.

A experiência de partilhar o palco, como foi o caso do concerto na ZDB com António Contador, Manuel Mota e Travassos, é para vocês gratificante? Sentem-se à vontade nesse registo?

João: A experiência foi muito boa…

Marta: O encontro em si foi melhor, o encontro pessoal. Enquanto músicos não correu muito bem. Antes de darmos o concerto já nos chamávamos uns aos outros barafunda, maracabunta, já como previsão do que seria o palco. Foi um bocado isso que aconteceu mesmo, uma barafunda, uma barafunda total de sons.

Mas fazem sentido, num projecto como o vosso, estes encontros fortuitos…


Marta: Exactamente. Nós concordamos logo com o António Contador, o que propiciou esse encontro. E é a atitude de chegarmos a um sítio e tocarmos sem nos conhecermos de lado nenhum…

João: E por princípio é para continuar…

Esse contacto com o António Contador surgiu a partir do Myspace. Estavam à espera dos poderes do Myspace? Em tão pouco tempo já conheceram tanta gente…

Marta: Não, não mesmo… Foi óptimo conhecer o António Contador, e ao mesmo tempo fez-nos acreditar no Myspace, porque tudo aquilo que dissemos sobre o encontro, toda aquela barafunda, foi tudo muito sincero, enquanto pessoas. E estamos já a organizar outros encontros.

Podem adiantar alguns pormenores para o futuro?


João: Ainda não temos nada definido.

Marta: Há uma editora, a francesa Elsie Else Records… Há o António Contador, não sabemos quando, mas entre Porto e Lisboa vamos continuar a encontrar-nos.
Daniel Quintã

Parceiros