DISCOS
David Byrne
Lead Us Not into Temptation
· 13 Jan 2003 · 08:00 ·
David Byrne
Lead Us Not into Temptation
2003
Thrill Jockey


Sítios oficiais:
- Thrill Jockey
David Byrne
Lead Us Not into Temptation
2003
Thrill Jockey


Sítios oficiais:
- Thrill Jockey
Na adaptação para a tela do primeiro romance do escritor britânico da beat generation Alexander Trocchi, David MacKenzie começa por mostrar um corpo à tona da água. O cadáver é de uma mulher que traja apenas uma camisa de noite. A transparência das suas vestes marca o tom da película, um conto erótico e um retrato da Escócia dos canais. Um nevoeiro cerrado envolve todo o enredo e há uma atmosfera taciturna a vergar o quebranto dos dias. Não há personagens, apenas fantoches articulados com maneirismos que os conduzem ao abismo. Os olhares são vazios, quase lívidos, as almas poços reticulares de revés e cansaço.

Joe (Ewan McGregor) é um jovem calculista e sem carácter, que reparte o seu tempo entre escrevinhar umas notas num caderno e dar resposta aos seus ímpetos numa poligamia errante. Inicia uma relação carnal com Ella (Tilda Swinton), esposa de Leslie (Peter Mullan), o seu colega armador na embarcação que percorre as águas turvas. A tensão avoluma-se com uma investigação policial a decorrer e o registo em flashback de um anterior encontro amoroso, de contornos semelhantes, com Cathie. Mas aquele trio, espécie de viveiro humano de vício e teatro da carne, está prestes a desfazer-se.

O argumento de Young Adam escorre ao som das partituras preparadas por David Byrne, o tipo dos Talking Heads já com uma sedimentada carreira em nome próprio. A galeria dos desafortunados da vida é relembrada através de Lead Us Not into Temptation, a banda sonora cujo título retoma o preceito bíblico ”… e não nos deixeis cair em tentação…”. Aqui, Byrne deixa de lado a imanência worldbeat que constitui o arquétipo das suas evasões a solo. O disco vive de detalhes cinemáticos - não dispensando a sua audição o visionamento do filme - de interstícios de beleza subliminar, intervalos de piano e arranjos adelgaçantes.

David Byrne fez-se acompanhar dos também escoceses Belle & Sebastian e Mogwai, sobreviventes de uma pop de câmara e de uma abordagem muito para além do rock, por esta ordem. Certo é que a malha sonora que sustém a narrativa capta o vibe de uma existência escura, decrépita e depressiva, de um optimismo há muito obliterado, que é afinal o coalho da diegese fílmica. A música é instrumental, emergente de uma síntese arquivista das imagens, com excepção das duas erupções de voz, “Speechless” e “The Great Western Road”, que fecham o disco. E há ainda a versão de “Haitian Fight Song”, de Charles Mingus, que aflora depois de um extensivo recorte estilístico ilustrar a vida no canal e antes da cena de sexo acolchoada de imundície e sordidez.
Hélder Gomes
hefgomes@gmail.com
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