A nobre pacificação electro-orgânica da Noble
· 02 Out 2006 · 08:00 ·
© Teresa Ribeiro

Às vezes basta a certeza de que um regresso a casa nos reserva chá e simpatia. Não serão totalmente imprevisíveis as sensações provocadas pelo convívio alargado com os discos que a label japonesa Noble lança ao ritmo vagaroso que habitualmente também demarca a sua música. Bastará a familiarização com os discos lançados este ano – o fabuloso Gillia de Kazumasa Hashimoto e os dois apresentados em baixo - para entender que o afeiçoamento à casa sedeada em Tóquio implica, por parte de quem escuta, a aceitação de que estes novos artistas japoneses componham com a simplicidade de quem acabou de despertar e, antes de tudo o resto, se deparou com uma resplandecente aurora. Ingénuo sentimento esse que se encontra representado nos arranjos plenos de optimismo que inundam os dois discos que se seguem, na placidez com asas de candura que produz uma electro-acústica pouco habituada a essa aplicação e na evidente sensação de que a Noble é cada vez mais fiável no seu papel de fábrica de bandas-sonoras para lentas afirmações de um sol nascente.

Inseridos numa hipotética continuidade temática mantida pela Noble desde 2001, presume-se até que a actualidade vivida represente o estabelecimento de uma calmaria que serena a incerteza que os discos de World’s End Girlfriend projectavam apocalipticamente. Yasushi Yoshida e Midori Hirano dedicam-se à feitura de música cuja amplitude narrativa é dilatada pela esperança. Ambos se estreiam com álbuns que, recorrentemente, geram imagens de separação entre pólos que, a seu tempo, trata de reagrupar a instrumentação clássica (no caso de Lush Rush, é quase sempre o tardio piano a encurtar o diâmetro emocional das composições). Estilisticamente, também a Noble andará próxima do romantismo que se sentiu à viragem de Takeshi Kitano quando filmou Dolls, sem os menores vestígios do seu passado dedicado à ultra-violência e ao desmiolado e absolutamente hilariante Nunca digas Banzai (Takeshi’s Castle, em inglês). O que aqui temos é música para todo o tipo paixões inflectidas que não acusam o seu efeito em termómetros ou numa escala de Richter. Sem nunca atraiçoarem o mote conceptual que rege a Noble desde a sua fundação - oferecer “música adequada ao dia-a-dia†-, os discos que se seguem afirmam (ou sugerem) que, de algum modo, estes serão dias melhores.

Yasushi Yoshida Secret Figur
2006
Noble

Site banda
Site da editora

Não será demérito ou motivo de embaraço para ninguém calçar os sapatos que usou Ryuichi Sakamoto para percorrer o caminho que separou os dias coloridamente dançáveis na Yellow Magic Orchestra do compositor cinemático globalmente aceite e aclamado. As premissas que norteiam Secret Figure de Yasushi Yoshida assumem declaradamente a sua vocação cinemática que se denota a uma iniciática “Silent Park†que, apesar de manter velada - com trejeitos inconclusivos - a radiância que lhe sucede, revela madrugadoramente que a carga impressionista do disco dependeria invariavelmente da eficiência elementar do piano, cordas (quase sempre, agentes de um maior dramatismo) e de tudo o mais que lhe fosse sendo acrescentado à medida que o encanto desenvolvesse garras para arranhar o céu (e um disco da Noble aponta sempre o seu olhar simbólico para as alturas). Não se estranha, portanto, que, logo de seguida, “Parade for Closure†provoque a gravitação compassada de uma imensidão de labaredas digitais que serpenteiam em movimentos de ascensão, em perseguição de uma primeira guitarra que se evaporou num subtil sorriso de gambuzino. O reino celestialmente suspenso de Secret Figure parece ter sido arquitectado a partir da ilusão que imprime o facto de quase sempre ser inicialmente terrena e sólida toda a maravilhosa componente orgânica do disco, que, só quando tem garantida a sonolência sensorial, convoca o tratamento digital que o conduz até paragens estratosféricas. Daí que percorrer Secret Figure seja como caminhar harmoniosamente de um avião em voo até ao exterior do mesmo, sem que isso envolva o agravo da discrepância atmosférica.

Alegoricamente, será este um disco para acompanhar o biopic que o autor sul-coreano Kim Ki-duk nunca filmou para ilustrar a vida de Ãcaro - perdida entre o dilema de se limitar ao solo ou aproximar-se do sol. A certas alturas, Yasushi Yoshida consegue obter a magia que se pode apenas imaginar a um disco que fundisse num só projecto as estéticas dos Sigur Rós e das parceiras Amina – hipoteticamente aliadas naquele que poderia ser uma variante mais ambiciosa e desenvolta do incompreendido EP Ba Ba / Ti Ki / Di Do (“Remembrance in Glass†encontra-se flagrantemente próxima desse cenário fantasioso, por gestão branda de piano e electrónica amena – a que não falta sequer um som próximo do “theremin†que as Amina emulam com um serrote). Motivos de sobra para se poder afirmar:Ãgaetis Byrjun. Um bom começo.

Midori Hirano Lush Rush
2006
Noble

Site da banda
Site da editora

Para todos os efeitos, a escuta de Lush Rush não deve ser conjugada com a de Secret Figure - já que ambos são discos de compositor e, por isso, dependentes do alcance que possa ter uma vontade isolada na busca dos mais tocantes enquadramentos para o piano e instrumentos de cordas (violoncelo e violino), suspeitos do costume nestas circunstâncias. Não é de todo recomendável que a fertilidade exibida por esses se anule em competição. Até porque seria triste impor qualquer condicionante que fosse ao livre trânsito entre texturas que executa agilmente um Lush Rush que é muito mais do que apenas o núcleo clássico referido. Provavelmente digno de que se lhe aponte uma mais versátil sofisticação que a encontrada ao vizinho Secret Figure, o debute da nipónica Midori Hirano aproxima-se do melhor que já lançou a Noble - por influência dos métodos imaginativos que explora para escapar à convenção pré-estabelecida que, muito naturalmente, o agrilhoaria ao chavão de novo-clássico, suporte pronto a servir dose necessária de encanto a uma existência rotineira. Lush Rush garante resultados que o colocam muito acima desse papel acessório. Esquivando-se, com equivalente perspicácia, de quaisquer associações imediatas a Björk ou a Tujiko Noriko (quanto muito, podia-se comparar MH à conterrânea Piana), Midori Hirano explora, de modo surpreendente, todo o tipo de recursos potencialmente capazes de colmatar as insuficiências da instrumentação no que toca a dar corpo a um storytelling mais abstracto, improvável de se conjugar e impossível de se traduzir por palavras exactas (área essa em que, como ninguém, os Books já se aprenderam a mover convincentemente). Cumprem esse papel adições fulcrais como os field recordings autonomamente capazes de formar um espaço surreal e onírico, a filtragem ocasional de propriedades acústicas do piano e as trémulas oscilações provocadas por manipulações que variam como o vento. Num âmbito paralelo, Midori Hirano ordena as cordas como um Owen Pallett (Final Fantasy, se preferirem) afincado na apresentação de argumentos dramáticos que comprovem a existência de qualquer coisa semelhante a uma fada-geisha.

E para que não inveje Lush Rush a alegoria prestada ao disco anterior, pode-se afirmar que o próprio representaria perfeitamente a banda-sonora para uma teatralização da Alice no País das Maravilhas interpretada pelos bonequinhos que produz a Ervilha Cor-de-Rosa desde há alguns anos. E para que não se julgue que fica um passo que seja atrás do disco acima abordado, frise-se-lhe o equilíbrio intrínseco que faz dele um fronteiriço espaço comum entre o que demais salubre produz a sua frente organicamente palpável e a secundária acção digital. Talvez por isso, Lush Rush mereça gozar do estatuto de clássico, enquanto exemplo das qualidades surgidas em matrimónio nos discos da Noble que, a seu direito, mantém em segredo o cerne desses encaixes como se de uma arte anciã se tratasse.

Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com

Parceiros