Broken Social Scene: aquilo que o indie rock devia ser em 2006 (e ainda bem que não é)
· 10 Ago 2006 · 08:00 ·

"Será que uma banda de onze membros tem predominância de braços ou de pernas?", perguntou ela, com as suas bonitas bochechas coradas e com a sua t-shirt azul esverdeada onde bordou "BROKEN SOCIAL SCENE" vestida. Já o tinha feito com outras - vem-me à cabeça uma preta onde escreveu "MISFITS" no início da sua adolescência -, mas esta parece ser especial. No meio da aleatoriedade da vida, do nada fazer sentido, de ninguém saber muito bem o que está aqui a fazer e de não existir um fio condutor no mundo, às vezes aparece algo. Temos de estar preparados, e ela estava. Um deus ex machina, algo que vem de fora para dar sentido a tudo.
Para ela eram os Broken Social Scene de "Anthems for a Seventeen Year-old Girl". Ela na altura tinha 17 anos e ouviu pela primeira vez a voz de Emily Haines através de filtros que faziam com que deixasse de ser a selvagem vocalista dos Metric para ser outra coisa totalmente diferente. Uma criança (e até duas ou três) com menos de 17 anos. Provavelmente cantava, por cima daquele banjo, daquelas guitarras e daqueles arranjos de corda, "park that car, drop that phone, sleep on the floor, dream about me" e fazia com que todos sonhassem com ela. Mas a estrela lá no meio sempre fora Feist, que tinha partilhado um apartamento com Peaches e era amiga íntima de Gonzalez.
Ela, a rapariga gira das bochechas coradas e da t-shirt verde, nunca tinha amado assim. Era tão estranho e tão improvável que daquele país frio que nos tinha dado o Bryan Adams (se bem que com uma passagem por Cascais), a Céline Dion e, vá lá, o Neil Young, aparecessem 11 pessoas (ou mais, muitas mais, não se sabe ao certo) para mudar a sua vida. Brendan Canning e Kevin Drew à cabeça, dois amigos, juntaram-se para uma espécie de banda-sonora. Feel Good Lost era o nome, e nada, mas nada, fazia prever o que vinha aí.


Feel Good Lost
2001

O disco de estreia dos Broken Social Scene não passa, hoje em dia, de uma nota de rodapé. Ainda com muitos pontos de contacto com os K.C. Accidental, seus predecessores, banda de Kevin Drew, também os tinha com os Do Make Say Think, banda da Constellation Records com ligações aos Godspeed You! Black Emperor("!", já que nunca sabemos onde se põe ao certo o ponto de exclamação), mas com um som totalmente diferente, um pós-rock mais jazzy para contrastar com a música erudita dos GY!BE. Mas os Broken Social Scene adivinhavam-se mais electrónicos. E basta ouvir este disco para saber porquê. Os temas são na sua quase totalidade instrumentais, com drones de fundo, arranjos de cordas, melodias bonitas de guitarra, percussão portentosa à K.C. Accidental, tudo muito espacial. Ainda não há aqui canções, a não ser uma ou outra excepção. Mas já se nota que o "quinto Beatle" disto é o estúdio. Mas ainda não há Dave Newfeld, o produtor que acabaria por servir de cola e de membro-chave nos próximos dois discos da banda, por isso algumas experiências não são particularmente bem sucedidas. É um disco muito baseado em formas de modificar o som, efeitos, às vezes funcionam, outras não. Exemplo gritante disso são os exercícios de baixo em "Prison Province". Já há alguns tiques de guitarras que seriam típicos dos próximos discos.


You Forgot it in People
2002

Aqui as coisas complicaram-se. É um disco mais ecléctico, tem as canções que a fizeram apaixonar-se pela banda, como o riff de três notas básico mas enorme de "K.C. Accidental", acompanhado pela bateria portentosa e cordas e mais e mais guitarras. Percebe-se, já aqui, depois da introdução, "Capture The Flag", minimalismo pacífico que remete para o disco anterior, que este é um disco bem mais ambicioso e ecléctico que a estreia. E que nunca perceberemos muito bem o que os membros da banda cantam. "Almost Crimes (Remix)" introduz neste universo a voz de Feist (e volta a citar, no final, mais ou menos, "Revolution 9" dos Beatles, como fazia "Stomach Song" do disco anterior, com muitas vozes a falar ao mesmo tempo), que grita e salta e pouco mais, e é basicamente incompreensível como é que, mesmo tendo uma carreira muito mais antiga do que a da banda, o seu último disco, Let It Die, a tornou numa espécie de superestrela indie que ofusca a banda a que pertence algumas vezes. Claro, é um disco mais acessível e fácil, não que os Broken Social Scene façam música complicada, mas mesmo assim, digamos que versões dos Bee Gees e pop certinha enchem muito mais facilmente meses antes um Fórum Lisboa do que 11 pessoas (geralmente mais), das quais a maior parte dos homens tem barba e usa bonés de camionista. "Pacific Theme" evoca o mar, com alguma surf-guitar (até certo ponto, se bem que sem o som característico da mesma), cowbell e todo um ambiente kitsch que pode fazer com que se confunda isto com outra coisa qualquer, e até se diga que estraga o disco. Mas faz parte do seu encanto. "Looks Just Like The Sun" tem guitarras acústicas e, outra vez, vozes suaves que não parecem estar muito preocupadas em fazer-se entender. O riff de "Cause=Time" é um achado, em qualquer lado, uma melhoria de "Stars and Sons" do mesmo disco. Mas a peça central é "Anthems for a Seventeen Year-Old Girl", vem a seguir às duas canções que remetem para o verão e logo se aloja nos ouvidos de quem quer que a ouça. É sempre estranho pensar que tantas mentes em estúdio, que esta amálgama de pessoas e personalidades e sons e experiências resulte numa canção tão bonita, mas a verdade é que resulta.


Beehives
2004

Uma colecção de lados b e raridades, feita à pressa para evitar a pressão enorme que recaía sobre a banda depois da forma como You Forgot It In People foi recebido, com prémios e tudo. Tirando alguns momentos, é perfeitamente dispensável e apenas recomendável a fãs incondicionais.)


Broken Social Scene
2005

E aqui volta à baila a questão da acessibilidade. "7/4 (Shoreline)" é talvez dos singles pop mais brilhantes dos anos 2000. O riff certeiro, a voz de Feist, o ritmo 7/4, as guitarras (tantas guitarras, "mais guitarras!", pedia Conan O'Brien quando foram tocar isto ao Late Night, com Feist e Emily Haines passadíssimas, cinco guitarras, cinco metais, umas 30 pessoas em palco), os metais que começam lá ao fundo e depois são postos para a frente no final da canção, tudo aqui introduz o que é Broken Social Scene. Um disco mais conciso que o seu antecessor, menos ecléctico, mas que continua a ser basicamente 30 pessoas num estúdio a não saber bem o que estão a fazer, a gravar isto ou aquilo e alguém, uma mente brilhante, neste caso, a de David Newfeld, a juntar tudo como ninguém. Parece não ter havido aqui um processo de escrita de canções (parte-se de um riff, de um beat, e até de uma remistura de "One Evening" de Feist a solo, em "Hotel"), mas não nos podemos enganar, há aqui muitas e boas canções. Este foi o disco que catapultou, ainda mais que em 2002/2003, os Broken Social Scene para a linha da frente das bandas canadianas, depois do fenómeno Arcade Fire que mudou para sempre a visão da comunidade indie sobre o país frio que existe mesmo por cima dos Estados Unidos. Não interessam os membros predominantes, entre pernas e braços, até há espaço para umas rimas de K-Os, o rapper canadiano algo aborrecido que aqui até está em topo de forma e safa-se estupidamente bem em algo que devia ser uma má ideia. Uma péssima ideia, juntar dois mundos que, em pleno século XXI, andam sempre de mãos dadas (o hip-hop e o indie rock), mas felizmente, para além de um ou outro disco do Cage, não costumam juntar-se muito (nem todas as vezes podem resultar assim). A pressão tremenda que recaía sobre a banda nesta altura resultou de forma impressionante.


Broken Social Scene: aquilo que o indie rock devia ser em 2006. Mas ainda bem que não é, isso seria uma chatice tremenda. O que é que há para não gostar? São umas 30 pessoas, têm épicos, lançam singles pop a 7/4 e conseguem ser grandes e numerosos e felizes e não soar nada como os Polyphonic Spree, a outra banda de indie-rock com 30 ou mais pessoas e metais e assim, mas bem mais conservadora. Tinham estado em cartaz para o Super Bock Super Rock de 2005, mas ela não podia ir e, por isso, a sua vinda foi cancelada. Em vez deles, os Eighties B-Line Matchbox Disaster (do nome horrível, só acertaram na parte do desastre). Mas chegou o ano, a hora e o local perfeitos: Paredes de Coura 2006. E ela cora sempre que pensa que vai estar lá, ficando ainda mais bonita do que é normalmente.

Rodrigo Nogueira
rodrigo.nogueira@bodyspace.net

Parceiros