É Verão. É férias para uns, é desespero para outros. Mas seja de que forma for, é tempo de balanço. De perceber o que está a mais, e é o que está claramente a menos, e separar o trigo do joio. Na música é exactamente a mesma coisa. Numa altura em que fechamos para férias, quisemos fazer um balanço dos primeiros seis meses do ano no que toca à música. Não vejam isto como um balanço definitivo; apenas como uma recolha de dez discos que, a nosso ver, são sérios candidatos aos lugares cimeiros de melhores discos de 2017. As nossas escolhas, essas, como bem podem ver - e ouvir - são para todos os gostos. Senhoras e senhores, aqui estão eles. Aventurem-se, por favor. André Gomes
Mary Ocher é uma proeminente artista multimedia da cena de Berlim, que já dava bons apontamentos aos ouvidos antes, mas nunca relevando a capacidade tremenda que apresenta neste disco. Produzido nada mais, nada menos por Hans Joachim Irmler (asterisco para quem não sabe: membro dos seminais Faust), junta o lado electro, minimal e arco-Ãris escondido no cinzento que, Berlim, uma cidade mais do mundo do que alemã, injeta a quem lá vive, ao próprio caldeirão cultural folk e exótico da Mary, nascida na Rússia e criada em Tel Aviv. Contexto que adiciona a um tema como "Arms", uma carga de emotividade social e honestidade empirica (vale a pena ver o vÃdeo, fabuloso), que só a sua sonoridade simples não empresta. Imaginem Grimes com poesia. Mas há psicadelismo orgânico de baú krautrock no soberbo "To The Light (feat. Your Government", que inclui uma segunda versão fantasmagórica a piano; há eletrónica, poesia, crÃtica social, ecos de uma possÃvel Laurie Anderson depois um after na Berghain. Há colaboradores de peso como Felix Kubin ou Julia Kent. Para mim, venha 2018.
Nuno Leal
Volvidos quase oito anos do útimo álbum em estúdio de Do Make Say Think, a
banda canadiana volta a apresentar-se com <i>Stubborn Persistent Illusions</i>,
através da consagrada editora e casa mãe, Constellation Records. Na memória,
ressoam ainda ecos do concerto ao vivo numa das primeiras edições do
Primavera Sound, no Porto, e os quatro álbuns anteriores do grupo, dos quais se
revela particularmente ingrata a tarefa de eleger os melhores. Como reinventar
para si e em si, o denominado post-rock, género explorado indistintamente até
ao tutano nas últimas décadas? Nos pormenores. Na mestria da suspensão final
abrupta de "War on Torpor", na percurssão emancipada, do género e das
guitarras, de "Horripilation", na ambivalência do dÃptico "Bound" e "And
Boundless", nos efeitos de guitarra em loop que abrem o fim, em "Return, Return
Again", depois do choro para "Shlomo's Son". Os DMST nunca serão dessas
bandas que nos fazem submergir de forma quase transcendental em crescendos
de faixas intermináveis. Os laivos de jazz e minimalismo atiram-nos para outra
dimensão, para a nossa. Voltem, voltem sempre.
Alexandra João Martins
São de Braga e são uma das mais intrigantes propostas da paisagem musical portuguesa, com um foco no comportamento humano e na capacidade de olhar para si mesmos e de o provocar em quem os ouve.
Depois de “Vem por Aquiâ€, trabalho de estreia de 2013, os Ermo lançaram “Lo-Fi Modaâ€, e António Costa e Bernardo Barbosa continuam a caminho de construir uma dialética musical de intervenção intrapessoal, ao contrário do que é habitual no género, e isso o comprovam faixas como “Ctrl-c Ctrl-v†ou “Frito Futuroâ€.
“Vem nadar ao mar que enterra†abre um disco que sabe ao que vai, revelador de uma (muito) maior atenção aos instrumentais em relação ao antecessor (veja-se “Púrpura pálidoâ€), e de uma lÃrica própria que não tem medo de entrar em choque com quem ouve, numa tentativa de o fazer olhar para dentro. Será sempre uma missão desconfortável (de novo “Púrpura Pálidoâ€), mas alguém tem de a cumprir, e nisso Ermo são exÃmios. O álbum termina com “Contraâ€, mas é “Frito Futuro†que fica depois da escuta, a mais bem tricotada desta viagem à s ‘questões do forno interno’ em nove canções.
Simão Freitas
Um álbum atrás do outro, canção depois de canção, a norte-americana Joan Shelley tem vindo a afirmar-se como uma das vozes mais irresistÃveis da folk feita nos dias que correm. Joan Shelley, o disco homónimo produzido por Jeff Tweedy (dos Wilco), é o continuar da celebração que é toda a graça da sua música. Mas não é só o dedo de Tweedy que se nota neste disco; Nathan Salzburg, guitarrista extraordinaire que costuma acompanhar a norte-americana, é peça fundamental para apreciar este disco em toda a sua plenitude. As canções, essas, são aquele produto ponderado a apurado que reconhecemos a Joan Shelley, na procura incessante pela melodia e pela perfeição, na criação de um espaço emocional de imensa beleza. “Even Though†ou “Where I'll find you†são apenas alguns dos pontos altos de um disco que reclama, com muita urgência, toda a atenção do mundo para o talento de Joan Shelley.
André Gomes
Apartado dos American Music Club, que deram a conhecer o compositor e intérprete de excelência, Mark Eitzel continua exÃmio na criação de atmosferas Ãntimas e canções valorosas. Décimo longa-duração em nome próprio, Hey Mr Ferryman é uma ode ao fatalismo arrebatado de Eitzel, que conhecÃamos de composições como 'I love you but you're dead'. Observador e crÃtico, apaixonado e humanista, o norte-americano não resiste à ironia na descrição das relações humanas, como o faz na deliciosa 'La Llorona' (não confundir com a canção do mesmo nome de Chavela Vargas, com a qual partilha, no entanto, o mesmo tom provocatório). De resto, quando Eitzel abre a prodigiosa 'The Answer' desafiando-nos com um convite indeclinável 'Come on dance with me right now / Right here', a voz apodera-se do nosso ouvido como uma lapa. É o toque de Midas de um obreiro da canção que teima em fazer-se notar após décadas de dedicação à causa. E enquanto a causa for divulgada com a mesma mestria, haveremos de louvar Mark Eitzel enquanto por cá andar.
Eugénia Azevedo
Um Homem não se banha duas vezes no mesmo rio. A água em que se banha não é a mesma e, da mesma forma, também o Homem. São momentos, como a vida, como nós, como o mar, como aquele mar imenso que envia as ondas, literalmente sonoras em que se banha quem ouve os portugueses Sease e o seu primeiro longa-duração The Way the Waves Hit the Beach. Pérola de autenticidade que se intui a cada tema. Denso o suficiente para ser leve, leve na exacta proporção que o torna uma viagem densa ao sentir e bem-estar mais profundo. Esta “maresia indie pop electrónica q.b.†insinua-se atordoando-nos os sentidos com o sopro de temas como o tropical “Sambinoâ€, a portentosa e fogosa “Atman†ou a graça de um passeio ao pôr-do-sol feito e criado na graciosa “Olukúnâ€. Como já antes tinha escrito acerca dos Sease e desta sua inspirada criação, The Way the Waves Hit the Beach é um exercÃcio de pecado e redenção ao sabor da impetuosidade das ondas que enrolam na areia: ora forte, ora doce para nos lembrar que o amor, qualquer da forma que ele tome, nem sempre é uma doença quando nele julgamos ver uma cura.
Fernando Gonçalves
Tudo começou quando Donald Glover, ou Childish Gambino, disse que os Migos são «os Beatles desta geração». Ou talvez tenha começado antes, na irritação proporcionada pelo primeiro single do trio, "Versace", lá em 2013. Ou se calhar começou apenas este ano, depois de limpa a cabeça e de se entrar sem rodeios em Culture, álbum que é o segundo da banda e que contém mais do que aquilo que se pensaria à partida. A voz continua a parecer-nos absurda até que nos apercebemos que se conjuga na perfeição com o beat, como se fora um segundo instrumento a preencher o vazio deixado pelas máquinas. Escutamos uma e outra vez temas como "T-Shirt" (a melhor de todas), "Bad And Boujee", "Big On Big" ou "All Ass". Mais importante do que isso, escutamos Culture do inÃcio ao fim e nunca nos aborrecemos - ou, ainda melhor, queremos entrar na festa deles para sempre, mesmo que os mais recentes comentários a roçar a homofobia nos deixem de pé atrás. Culture é o retrato de um grupo marginalizado desde sempre: a juventude. É também um lembrete de que o hip-hop não tem de ser sempre sério. Pode ser mesmo muito divertido.
Paulo CecÃlio
Os The Nada são quatro e vêm do sempre profÃcuo Carimbo Porta-Jazz. No saxofone está João Guimarães, músico virtuoso e versátil, lÃder do octeto que editou o excelente disco "Zero", integrou os Fail Better! (no óptimo disco de estreia) e faz parte, entre outros, da Orquestra Jazz de Matosinhos, do quarteto de Miguel Ângelo e dos Hitchpop (concerto memorável no Milhões de Festa 2015). No baixo está Simon Jermyn, irlandês residente em Nova Iorque, elemento decisivo - foi aquando da sua visita a Portugal que o grupo se juntou. O grupo completa-se com a guitarra elétrica de Eurico Costa e a bateria José Marrucho - ambos com currÃculo vasto no catálogo Porta-Jazz. O quarteto pratica uma música aberta, um jazz eléctrico moderno com espaço amplo para a improvisação. Daà nasce uma música fresca, que combina toadas atmosféricas com fraseados claros, sempre com a eletricidade ligada. Há um desfile de ideias, energia e tensão, sem descarrilar, em equilÃbrio. Da Porta-Jazz tem chegado uma torrente de música original, redefinindo e alargando o conceito do jazz contemporâneo Made In Portugal. O jazz original dos The Nada não funciona só como música para o verão, como, num mundo ideal - sem festas "sunset" nem "chillout" - seria o acompanhamento perfeito para aquele mojito na borda da piscina com o insuflável flamingo rosa em fundo.
Nuno Catarino
São um caso especial, os Zarabatana de Bernardo Ãlvares (contrabaixo, percussão, voz), Carlos Godinho (percussão, voz) e Yaw Tembe (trompete, percussão, voz). Trio de estilo inclassificável - mas que não querendo desaproveitar a beleza do termo cunhado por Rui Eduardo Paes, vamos chamar de dirty-world-garage-jazz -, ao segundo acto confirma todas as suspeitas que lhes tÃnhamos encontrado em "Fogo na Carne". Dois anos depois do debute, ao longo dos quais as poucas aparições em palco permitiram apreciar in loco a evolução do trio, "O Terceiro Corno" foi gravado nas Montanhas de Sintra, cimentando uma curiosa e interessantÃssima aproximação à natureza. Se esta já era intrinseca à sua musica, e de certa forma funcionava como motor inspiracional para a mesma, aqui é também uma elegante constatação de que não há fronteiras ou resistências capazes de parar esta música. A forma ritualÃstica e espiritual com que trabalham os temas, continua a ser um pilar do seu modus operandi. Será de resto essa liberdade que confere uma elasticidade quase sobrenatural aos sete temas do disco - ouçam-se 'Zaratrustra', 'Abantesma' ou 'Bensafrim'. Num estado de transe perene, "O Terceiro Corno" desenrola-se envolto em vozes em unÃssono, com a percussão cada vez mais omnipresente a ser capaz de nos enlevar quando menos esperamos, e um diálogo voluptuoso - sempre pertinente - entre o trompete, contrabaixo e percussões. Tudo faz sentido, tudo é necessário. Um disco delirante e essencial.
António M. Silva
Pouco chega ao hemisfério norte do que se vai fazendo na Nova Zelândia. Temos os Fat Freddys Drop, os seus calorosos álbuns. Alguns já terão ouvido falar dos The Black Seeds. Uns poucos escutado Twinset. Mas haverá mais vida? Absolutamente. Olhemos para Lord Echo, ilustre desconhecido na nossa latitude, que acaba de editar o terceiro álbum de originais pela inglesa Soundway – representação europeia ajuda à aproximação. Mike “Fabulous†August, multi-instrumentista, é elemento dos The Black Seeds que, por conta própria, tem exaustivamente pensado e repensado – em coerência com o espÃrito da comunidade de músicos jazz de Wellington – como dar o giro à ancestral matriz soul-jazz imiscuindo house-funk-reggae-afro-dub para que o novo seja celebrado como vintage. Desse propósito, na senda dos dois álbuns anteriores, Harmonies atinge o objectivo com distinção sendo um disco que compacta tudo o que gostamos de ouvir no Verão: groove eloquente que tanto embala a alma como faz transpirar o corpo.
Rafael Santos |