ECM Records, 2016: história viva
· 30 Nov 2016 · 22:28 ·
© Mimsy Møller
Fundada no ano de 1969, a editora ECM – acrónimo de Edition of Contemporary Music – foi uma das editoras mais importantes para a promoção e divulgação do jazz contemporâneo, particularmente nas décadas ’70 e ’80 do século passado. A editora de Manfred Eicher vem mantando uma imagem de música fria, atmosférica, austera – que reflecte nas capas dos discos, sempre elegantes e discretas. Contudo, a ECM vem apresentando um catálogo diverso, onde se incluem nomes marcados pela absoluta independência, como Derek Bailey, Art Ensemble of Chicago ou Don Cherry.
Apesar do passar dos anos, a editora ECM tem conseguido manter-se relevante na actualidade, como se tem visto com a recente contratação de Vijay Iyer ou a edição do disco de estreia da saxofonista Mette Henriette. Já neste ano de 2016 a editora nórdica tem conseguido manter o ritmo editando discos fora de série, de que são exemplo Black Orpheus de Masabumi Kikuchi e A Cosmic Rhythm with Each Stroke da dupla Wadada Leo Smith & Vijay Iyer. Contudo, do catálogo de edições deste ano destacam-se ainda outros registos, como são os quatro casos abaixo mencionados.
Sinikka Langeland
The Magical Forest
ECM (2016)
Sinikka Langeland apresenta no disco The Magical Forest uma estranha mescla de géneros. Langeland parte da raíz do folclore norueguês para o combinar com uma matriz instrumental jazz. Sinikka Langeland canta e toca “kentele”, instrumento de cordas próximo da harpa, parecido com o saltério. A Langeland junta-se um quarteto all-star constituído por Trygve Seim (safoxones soprano e tenor), Arve Henriksen (trompete), Anders Jormin (contrabaixo) e Markku Ounaskari (bateria). O disco conta ainda com a participação do Trio Mediaeval (Anna Maria Friman, Berit Opheim, Linn Andrea Fuglseth), trio vocal feminino que acrescenta uma densa camada sonora, carregando a dimensão dramática. Este raro combinado instrumental desenvolve uma música tão rica quanto estranha, que nos leva a viajar para as profundezas das florestas gélidas norueguesas. Poderá ameaçar pela ilusória estranheza, mas não se deixem ficar pelas aparências: viagem é tranquila e não é necessário levar agasalho.
Markus Stockhausen & Florian Weber
Alba
ECM (2016)
Alba marca a estreia discográfica do duo Markus Stockhausen (trompete) e Florian Weber (piano). O filho do genial e controverso compositor alemão Karlheinz Stockhausen (1928-2007), está de regresso à ECM após a edição de Karta no ano 2000; já para Weber, esta é uma estreia na editora. Na sua interação, diálogo e forte sentido melódico, este duo faz recordar o trabalho do português João Paulo Esteves da Silva com o trompetista americano Dennis González (dois discos editados pela Clean Feed e concertos memoráveis). Stockhausen e Weber interpretam um total de quinze temas, todos originais, num ponto de equilíbrio seguro entre a contenção cerebral e uma dose controlada sentimento. Seria inevitável fazer também a comparação com um outro duo (ainda para mais editado pela ECM neste ano), o encontro entre Leo Smith e Vijay Iyer. Menos arriscada, esta parceria Stockhausen/Weber é também menos intensa; mas não deixa de ser um disco altamente sofisticado, em que os temas (originais) são trabalhados com enorme delicadeza.
Wolfert Brederode Trio
Black Ice
ECM (2016)
Se a música do catálogo ECM é habitualmente considerada fria, gélida até, este novo trio do holandês Wolfert Brederode Trio promete um “gelo negro”. Nesta empreitada o piano de Brederode conta com o apoio do contrabaixo de Gulli Gudmundsson e da bateria de Jasper van Hulten. O trio trabalha um total de treze temas - todos originais, doze composições do líder pianista, uma do contrabaixista - quase sempre numa toada lenta, arrastada. O piano de Brederode desfila ideias de forma mansa, bem apoiado por Gudmundsson e van Hulten, parceiros sólidos. Subtil, a música do Wolfert Brederode Trio revela uma ambição contida, foge à exuberância. Não faz jus ao título, não se encontra aqui a frieza tensa do gelo. Morna e equilibrada, a música do trio é um mar de tranquilidade, sem choques nem ondas.
Tryve Seim
Rumi Songs
ECM (2016)
O saxofonista Tryve Seim (que também participa no álbum de Sinikka Langeland), tem neste disco Rumi Songs um verdadeiro manifesto estético. Seim lidera um quarteto atípico, fazendo acompanhar os seus saxofones (soprano e tenor) por voz (Tora Augestad), acordeão (Frode Haltli) e violoncelo (Svante Henryson). Entre o jazz e a música de câmara, o quarteto trabalha a interpretação de composições originais de Tryve Seim para poemas históricos de Rumi (1207-1273). A poesia, traduzida para inglês, é cantada por Tora Augestad num irrepreensível classicismo dourado, como se adoptasse um registo de ópera contido. A teia instrumental, apesar de pouco comum, funciona de forma surpreendentemente interligada, num ponto de rebuçado entre a clássica/câmara e a natural aproximação ao jazz (por via dos saxofones de Seim). O resultado é uma obra poético-musical única, onde por vezes se aproxima de uma quase-religiosidade e, nos momentos mais elevados, chega mesmo a fazer arrepiar a pele. A poesia lê-se e, sim, também se ouve.
nunocatarino@gmail.com