Fou Records: Estes gauleses são loucos
· 04 Jan 2016 · 22:22 ·
© André Gomes


Fundada no final de 2012, a editora francesa Fou Records tem focado a sua missão na divulgação de música improvisada. A label foi criada por iniciativa de Jean-Marc Foussat, músico improvisador que trabalha electrónicas e que esteve ligado à editora Potlatch de Jacques Oger. A editora Fou Records tem servido de veículo para a edição de gravações em que Foussat está envolvido, tendo publicado registos seus em vários moldes – a solo, em duo com o percussionista espanhol Ramon Lopez, num trio com o saxofonista francês Sylvain Guérineau e com o enorme multi-instrumentista americano Joe McPhee, entre outros projectos.

Contudo, a label francesa tem também revelado um carácter mais amplo, ao editar gravações de concertos nunca antes publicados. Em 2014 foi publicado 28 Rue Dunois Juillet 1982, registo um grupo de quatro magníficos: Derek Bailey, Joëlle Léandre, George Lewis e Evan Parker. E já neste ano de 2015 foi publicado outra gravação ao vivo de um outro grupo histórico: “Angoulème 18 Mai 1980” do Willem Breuker Kollektief. Este ano editora lançou ainda vários discos onde, além da presença de Foussat, estão envolvidos músicos que o público nacional reconhecerá, como o português João Camões (viola) ou o francês Jean-Luc Cappozzo (trompete). Vale a pena descobrir esta jovem editora gaulesa.

Cuir
Chez Ackenbush
Fou Records, 2015

O grupo Cuir é um quinteto improvisador que reúne instrumentação clássica: dois trompetes, clarinete, piano e contrabaixo. O grupo trabalha uma improvisação colada ao “free jazz”, com a instrumentação sobreposta numa permanente convulsão. O grupo de John Cuny (piano), Jérôme Fouquet (trompete), Jean-Brice Godet (clarinetes), Yoram Rosillio (contrabaixo) e Nicolas Souchal (trompete) revela neste álbum, uma gravação de uma actuação ao vivo “Chez Ackenbush” (daí o título, claro), uma música que vive na tensão, confronto e desafio. Não se espere daqui sensibilidade ou contenção, mas encontramos por aqui um grupo de músicos sempre em alta intensidade. Destaque para os sopros, que se vão entrelaçando, mas também o piano, que vai ganhando destaque - especialmente ao terceiro tema, “Satch Ko”.


João Camões / Jean-Marc Foussat / Claude Parle
Bien Mental
Fou Records, 2015

Jovem violetista português, João Camões passou pelo colectivo Woods, integra o trio Earnear (com Rodrigo Pinheiro e Mira, disco editado este ano) e é um dos vértices do Open Field String Trio. Esta formação, que se completa com José Miguel Pereira e Marcelo dos Reis, no início do ano de 2015 editou um disco com o histórico pianista Burton Greene e chegou a actuar com o português Carlos Zíngaro, no Jazz ao Centro 2012. Este disco novo, em trio com Jean-Marc Foussat e Claude Parle, resulta da estadia de Camões em Paris (que entretanto já regressou a Portugal). À viola d’arco de Camões junta-se a electrónica de Foussat e o acordeão de Parle. A música arranca de forma contida, um fiozinho electrónico, sobre o qual se polvilham um pozinhos das cordas e do acordeão. Os elementos vão-se sobrepondo até que se atinge um certo grau de saturação, mais para o final. Os três elementos interagem de forma dialogante, com Camões a mostrar-se herdeiro da imaginação e da capacidade reactiva de Zíngaro (talvez menos intenso na vertente de instigador, mas ainda é cedo). O terceiro e último tema, “Déchirure”, não é apenas o mais demorado, mas também aquele que acolhe momentos mais diversos, com o trio a explorar múltiplos ambientes ao longo dos seus dezanove minutos.

MarsaFouty
Concerts
Fou Records, 2015

O nome do projecto, MarsaFouty, resulta da junção e reinvenção dos nomes dos intervenientes: Jean-Marc Foussat, o omnipresente patrão da label, e Fred Marty. Foussat convoca as suas electrónicas, Marty traz o seu contrabaixo. Neste disco estão reunidas gravações de duas actuações ao vivo da dupla: a primeira, “99 Rue du Ruisseau”, de quase quarenta minutos; a segunda, “Tiasci”, com a duração de meia hora. A dupla desenvolve electro-acústica orgânica, mas com especial ênfase na eletricidade. O contrabaixo de Marty apresenta ideias, mas o protagonismo é frequentemente roubado por Foussat. Sobre esta dupla fala-se em referências como AMM ou Musica Elettronica Viva, mas o som original de MarsaFouty merece ser arrumado na sua própria gaveta. Improvisando, acrescentando texturas em cima de texturas, a música da dupla atinge picos que por vezes se aproximam do noise. Embora mais tranquila no segundo tema, a música da dupla é globalmente caracterizada pela amálgama sonora onde sobressai a electrónica.

Jean-Marc Foussat - Jean-Luc Petit
D'où vient la lumière
Fou Records, 2015

Novamente em duo, neste D'où vient la lumière Jean-Marc Foussat tem como parceiro o versátil palhetista Jean-Luc Petit (clarinete contrabaixo, saxofones alto e sopranino). Ao longo das quatro faixas que compõe o disco, a dupla Foussat/Petit desenvolve uma improvisação dialogante. Nos dois primeiros temas a dupla navega por águas de improvisação “near-silence”, entrando na exploração microtonal, sempre com tranquilidade, sem criar ondas. Já ao terceiro tema a dupla avança com intervenções mais acesas, entrando em contraste com a contenção e delicadeza dos momentos iniciais.

Cécile & Jean-Luc Cappozzo
Soul Eyes
Fou Records, 2015

Em 2005 o Jazz em Agosto promoveu um concerto único, um trio de trompetes que reuniu Herb Robertson, Axel Dörner e Jean-Luc Cappozzo. Essa actuação não serviu apenas para exibir a versatilidade do instrumento, mas também para revelar o virtuosismo de cada um dos músicos. O trompetista francês Jean-Luc Cappozzo tem neste novo disco Soul Eyes um projecto muito especial: conta com a parceria da sua filha, a pianista Cécile Cappozzo, para reinterpretar a música de dois grandes da história do jazz, Mal Waldron e Charles Mingus. A dupla Cappozzo reinventa os temas de Mingus e Waldron de forma livre e fluída. Piano e trompete constroem um diálogo, completando-se, convergindo e afastando-se, até que regressam ao centro melódico de cada composição. Não falta a obrigatória “Goodbye pork pie hat”, composição incluída na rapsódia inicial, que é desconstruída com sensibilidade pela dupla. Música elegantíssima.

Willem Breuker Kollektief
Angoulème 18 Mai 1980
Fou Records, 2015

Figura ligada à fundação da improvisação livre europeia, o holandês Willem Breuker (1944-2010) foi um dos fundadores da Instant Composers Pool (com Han Bennink e Misha Mengelberg), membro da Globe Unity Orchestra e dos grupos de Gunter Hampel e de Peter Brötzmann, entre outros. Formado em 1974, o Willem Breuker Kollektief ficou conhecido por apresentar uma música de raiz jazz com ênfase na performance teatral. Gravado ao vivo em Angoulème no dia 18 de Maio de 1980, este disco duplo recupera o histórico grupo com a energia da actuação “live”. A qualidade da gravação não é a melhor, mas este par de discos é um documento histórico, ao mostrar a dinâmica do Kollektief, na sua mescla de música circense, jazz e improvisação. Nesta música incomparável, tão relevante como os uníssonos certeiros dos sopros ou os solos incendiários, é a participação de um aspirador – lembrando que a feitura de música séria (“as serious as your life”, citando Val Wilmer) não invalida esquecer o humor. A música do Willem Breuker Kollektief foi originalíssima e esta edição, apesar de imperfeita, serve para nos recordar a sua relevância. Agradeçamos a iniciativa da Fou Records.

Nuno Catarino
nunocatarino@gmail.com

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