Sonhos do Apanhador
· 24 Nov 2014 · 15:28 ·
Apanhador Só no centro de Porto Alegre. Da esquerda para a direita: Fernão Agra, Alexandre Kumpinski, André ‘Foca’ Zinelli e Felipe Zancanaro. (Divulgação/Apanhador Só)

Menos de um mês depois do lançamento do segundo álbum de estúdio da banda brasileira Apanhador Só, o “Antes Que Tu Conte Outra”, uma série de protestos populares irromperam nas ruas de todo o país latino-americano. As concentrações já aconteciam em tamanho menor há algum tempo, mas só depois de medidas de repressão agressivas tomadas pela polícia militar, principalmente na noite do dia 13 de Junho, os media nacionais começaram a dar atenção para elas. Logo, as manifestações tomaram o porte de lutas históricas do povo brasileiro, como as Diretas Já, que buscavam o voto directo durante o fim da ditadura, e os Caras-pintadas, em prol do impeachment do então presidente Fernando Collor em 1992. No entanto, ao contrário dos movimentos antigos, as chamadas “jornadas de Junho” não tinham uma grande pauta central. Em Porto Alegre, cidade natal da Apanhador Só, elas nasceram da esquerda radical, com os protestos contra o aumento das passagens de ônibus e contra a privatização do espaço público. No entanto, quando o número de militantes cresceu absurdamente, chegando a levar 10 mil pessoas para as ruas, a diversidade das revoltas cresceu junto. Ao lado da esquerda organizada, houve quem pediu melhor educação, fim da corrupção estatal, qualidade dos serviços públicos de saúde, fiscalização nos gastos com a Copa do Mundo de 2014 (ou até o abandono da organização da Copa) e menos impostos. Tudo isso ao mesmo tempo.

Ninguém teve dúvidas: era um novo tempo. As redes sociais trouxeram para a rua uma massa com vários pontos diferentes, com o descontentamento como lugar comum entre todos. Se você pegasse dois manifestantes separados, no meio do protesto, seria muito possível que eles discordassem em quase tudo. Enquanto um defenderia a taxação de grandes fortunas e uma política fiscal pensada na distribuição de renda, o outro pediria pela queda brutal nos impostos e desejaria o fim dos grandes programas estatais em prol da igualdade económica e social. Os movimentos chegaram a reunir 100 mil pessoas no Rio de Janeiro, e fizeram a presidenta Dilma Rousseff elencar e divulgar em rede nacional cinco propostas de políticas públicas na direcção do que era ouvido nas ruas. Dois meses depois do início, os protestos já estavam de volta ao seu formato antigo: cerca de 200 a 500 pessoas ligadas directamente a movimentos sociais de actuação histórica ou a partidos de esquerda, que continuavam a se organizar em uma periodicidade curta. Mas o que a Apanhador Só tem a ver com tudo isso?

Porto Alegre foi uma das cidades precursoras nos movimentos que deram origem a Junho de 2013, e os integrantes da Apanhador Só estavam ligados a essas primeiras manifestações através de amigos presentes e da própria ideologia. Do meio de 2012 até o início de 2014, houve um crescimento visível no número de protestos e ocupações de espaço público nas ruas da cidade, principalmente com festas e movimentos nocturnos. A figura da banda estava sempre lá, nas conversas, no som, na presença dos próprios integrantes. Bloco de Lutas pelo Transporte Público, Massa Crítica, Largo Vivo, Defesa Pública da Alegria, Serenata Iluminada, Bloco da Laje, Geramores, festas nocturnas organizadas pelo colectivo Ovos e Llamas, as manifestações pela sobrevivência do bar Tutti Giorni e, depois, as ocupações ao redor do local nas terças à noite. Muitos nomes diferentes expressavam ideais semelhantes, e a juventude da cidade vivia uma efervescência de ideias políticas e artísticas. Tudo isso surgiu de acções autoritárias da prefeitura da cidade, que fechou um grande número de bares por trazerem consigo uma grande concentração de frequentadores nas ruas que os cercavam (mais detalhes aqui). Outro fato importante para o crescimento gradual foi um protesto no Largo Glênio Peres, situado na região central de Porto Alegre. O movimento que visava ocupar o espaço público adentrou um espaço, no meio da praça, destinado a um boneco inflável do grande FULECO, tatu-mascote da Copa do Mundo de 2014, patrocinado pela Coca-Cola. O policiamento reagiu com muita agressividade e, no meio do caos, o tatu inflável caiu. O caso teve grande repercussão, com os media definido o ato dos manifestantes como exagerado e desnecessário. Naquela noite, naquele local, a Apanhador Só era uma das atracções confirmadas, mas a banda precisou desmarcar a apresentação por causa de um show no Rio de Janeiro. No vídeo abaixo, um registo dos momentos mais extremos da manifestação.



O episódio inspirou uma das primeiras composições presentes em “Antes Que Tu Conte Outra”, a faixa de abertura “Mordido”. Ela foi escrita enquanto o disco ainda estava em sua pré-produção, e traz claramente uma letra de protesto. No final de 2013, a música embalou um vídeo-manifestação, dando “boas-vindas” irónicas ao ano de 2014 e à Copa do Mundo.

Quando os grandes protestos de junho chegaram, o coração de toda essa juventude se encheu de esperança de que suas pautas viriam à tona como nunca. Enfim os media estavam atacando a repressão policial e não a acção dos manifestantes, que quase sempre era pacífica. Como já citado acima, não foi bem assim que aconteceu. Muitos foram às ruas, mas a realidade passada foi de um “novo” caos político, supostamente ligado a organizações que estão no poder actualmente, mas que na verdade sempre existiu no status quo do país. Alguns especialistas citaram as redes sociais na internet como um dos factores decisivos para o clima de confusão de ideias presente nas manifestações, mas, dentro disso, falta perceber que essas novas redes são o hoje, e que a diferença está em como se organiza e se troca ideias dentro delas. O próprio Apanhador Só está nesse contexto, e não vive uma grande confusão de ideias. A segunda faixa de “Antes Que Tu Conte Outra”, “Vitta, Ian, Cassales”, começou a ser escrita a partir de uma postagem de Lucas Cassales, um dos três amigos da banda registados no título, em uma rede social. Ela desenvolve uma história profundamente pessoal, com personagens presentes na vida dos integrantes, mas ao mesmo tempo ganha universalidade na letra que representa fatos simples da vida quotidiana, e alguns fãs, sem conhecerem a história, começaram a construir interpretações próprias para o que era cantado. Outro exemplo das redes estando presentes na banda é o próprio disco, que foi financiado colectivamente em Setembro de 2012, arrecadando quase 60 mil reais na plataforma Catarse.

“Antes Que Tu Conte Outra” é um sintoma dessa juventude indignada de esquerda, que depois foi às ruas em Junho de 2013, mas que não viu sua visão de mundo universalizada pelas manifestações. Mais do que isso, os próprios colegas de luta pareceram muitas vezes romperem com os valores, ou desvalores, apreciados e expostos pelos militantes. Ao explicar a construção da faixa “Por trás”, em uma entrevista à Revista Noize, o vocalista Alexandre Kumpinski explica que, assim como “Mordido”, a canção carrega um tom de revolta contra o “uso recorrente de discursos bonitos em benefício de práticas calhordas” (questão que se evidencia também no título do álbum). Kumpinski também denuncia o “discurso de movimentações supostamente libertárias que repetem em seus actos os mesmos anseios que se propõem a combater”. Entre os exemplos, fala sobre agências de marketing querendo se apropriar de movimentos sociais para criar portfólio próprio, facto já ocorrido explicitamente em Porto Alegre na época, mas o mais interessante é que o sentido geral da revolta, os libertários anti-libertários, ainda eram uma noção privada aos frequentadores mais assíduos desses movimentos quando o álbum foi lançado, em especial aos mais próximos dos organizadores. Alguns meses depois dos protestos e do lançamento do álbum, um grande caso chegou para pôr à mesa o que a banda já tinha denunciado. Os integrantes do colectivo porto-alegrense e ~libertário~ sete/nove foram acusados de machistas e racistas pelas peças de divulgação da festa SELVA, que mostravam, primeiramente, mulheres em poses sexualizadas, e, depois, uma mulher branca pintada de preto, na tentativa de caracterizá-la como uma mulher negra. Vários militantes protestaram em redes sociais contra os cartazes, mas o colectivo não respondeu, o que resultou em um protesto em frente à festa. No local, os integrantes tentaram argumentar, mas obrigaram-se a silenciar após algumas trocas de ideias. O dono do bar apareceu e exclamou que os manifestantes estavam atrapalhando seu negócio, agredindo a militância. Dá para ter uma ideia do que aconteceu através de um vídeo gravado na noite (ainda mais detalhes sobre o caso aqui).

Hoje, há alguma incerteza sobre o que o futuro promete às organizações jovens. Muitos ainda mantêm o formato antigo de actuação, focado na sustentabilidade mínima quanto à economia, tentando estar presente em todos movimentos de vanguarda artística e política. O Apanhador Só já está se envolvendo com grandes festivais e shows, criando um público fiel e se estabelecendo como uma das bandas mais promissoras da música brasileira. Eles até ganharam o prémio de álbum do ano pela Associação Paulista de Críticos de Arte e foram indicados ao Grammy Latino (!) pelo projecto gráfico do “Antes Que Tu Conte Outra”. Mesmo que a banda comece a utilizar de recursos que vão contra sua ideologia, não haverá dúvida de que a maior mensagem ainda estará no corpo de acção da Apanhador Só: a música. E, nesse ponto, a banda ainda não saiu da rua e parece estar longe de sair. Eles só precisam continuar produzindo bons sons e manter a grande percepção do espírito do tempo que está presente em “Antes Que Tu Conte Outra”. O disco é a produção cultural mais relevante entre tudo o que está acontecendo em Porto Alegre nos últimos anos. É o filho de uma ânsia por igualdade e por uma sociedade menos doente, que deixe de lado os valores tradicionais e autoritários por uma ideia de horizontalidade e de democracia extrema.
Leonardo Baldessarelli

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