Quando Lisboa ultrapassou Londres
· 07 Abr 2013 · 23:28 ·
Comecei a viajar regularmente para Londres em finais dos anos 80. E mesmo partindo sempre com uma agenda de museus e exposições, com lojas de roupas ou passagens pelas salas de cinema também na lista do “a não perder”, o destino prioritário eram sempre as lojas de discos. E só depois de todas elas corridas, dedicava o tempo (e as libras) de sobra a outros destinos e outras compras. Inevitavelmente passava pelas Megastores da Virgin e HMV em Oxford St, pela soberba Tower em Picadilly (ali encontrava também as importações americanas e japonesas), isto sem esquecer a mítica Rhythm Records (Camden Town), a Sister Ray (e as outras muitas lojas que faziam da Berwick St, em pleno Soho, um verdadeiro kashbah de vinil a 33 e 45 rotações), as Vinyl Exchange em Notting Hill Gate, a histórica Rough Trade, e as outras mais que ocasionalmente iam passando à minha frente. Regressava a Lisboa invariavelmente com um ou dois (ou três) sacos cheios de LPs e singles... (na era dos CDs deixava lá as caixas de plástico, e trazia só os discos e inlays, que sempre ocupavam menos lugar na mala)...
 
No fundo o que fazia em Londres não era senão a expressão em modo “turismo” de hábitos lisboetas de visita a lojas de discos que, semanalmente (e isto nos oitentas), corria aos sábados de manhã (deixava os “furos” sem aulas em dias de semana para visitar a Compasso, em Campo de Ourique, mais perto do Liceu Pedro Nunes, onde estudava). Como sempre morei perto da baixa começava a “ronda” na Calçada do Sacramento, na secção de música dos Armazéns Novo Figurino. Passava depois pela secção de discos do Jerónimo Martins (no edifício onde hoje mora a Zara da Rua Garrett). Depois a Valentim de Carvalho na Rua Nova do Almada, ainda a Melodia e Discoteca do Carmo na Rua do Carmo e, do outro lado da rua, as secções de discos do Grandella e dos armazéns do Chiado. Em cada uma pedia para ouvir um disco (eram mais os singles que os LPs). E no final, já a olhar para o relógio a dar a hora do almoço, escolhia o que levaria de volta para casa... E se fosse poupado durante duas semanas, à terceira em vez de um single levava um LP.
 
Hoje o panorama discográfico em Lisboa é de dieta (sendo que entre o Chiado e o Camões há ainda alguma oferta, dos fados da carrinha na Rua do Carmo à loja da CNM e Fnac, com a Louie Louie, Discoleção e outros espaços de vinil e/ou usados ali perto). Mas mais gritante foi constatar quão desértico é hoje o mapa das lojas de discos em Londres, com as duas Rough Trade, a Selectadisc e a versão “compacta” (e de oferta magra) das Vinyl Exchange a concentrar o pouco que existe onde outrora ali reconhecíamos a capital europeia das lojas de discos. A HMV de Oxford St., que revisitei há duas semanas (em cenário de liquidação, com estantes vazias e discos em pilhas e em saldos), foi entretanto “salva” pela mesma firma que tornou novamente rentáveis as lojas da mesma rede no Canadá (mudança que muito se deve a uma nova política de loja que abre espaço aos tablets e outros novos espaços de consumo).
 
Mas fará ainda sentido, no século XXI, a existência de grandes superfícies de música? Talvez esteja na hora de as repensar (e ampliar a outras ofertas).
 
Os destinos da música gravada mudaram definitivamente com a globalização dos consumos online. Sem ter de falar da pirataria, a conquista de espaço da música digital (das lojas por download aos novos serviços de streaming) caminha para a definição de um novo paradigma sem retorno possível (votando o CD a uma morte anunciada, talvez mesmo a curto prazo). O ressurgimento do vinil impede contudo a desmaterialização total do consumo de música, em territórios nórdicos tendo já surgido novas lojas mais próximas da exploração de cultos e nichos e com a capacidade de, além dos discos, promover a realização de eventos.
 
Quando me dizem que as lojas de discos estão a caminho de desaparecer prefiro assim olhar para o que está a surgir entre a Noruega e Suécia. O Record Store Day, que se celebra este mês, é também mais uma achega a um panorama em mutação e que, longe de caminhar para a extinção, está hoje a descobrir novos hábitos e novos públicos... Há um futuro para as lojas de discos. E de resto, se olharmos para o que são as dinâmicas de trabalho de algumas lojas lisboetas mais dadas ao vinil e aos cultos, devemos reconhecer que estamos agora até mais bem servidos que o centro de Londres (por incrível que isso pudesse parecer ao mais otimista dos futurologistas de há 30 anos)!
Nuno Galopim

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