Halloween, Cais do Sodré Most Wanted
· 07 Mar 2013 · 23:42 ·
Começa no sábado a curadoria mensal de Allen Halloween no Musicbox, em Lisboa. As “Noites da Lisa” apresentam novos e velhos rappers da linha do autor de “Árvore Kriminal”, escolhidos por ele próprio. O “freestyle” do eixo Bairro Alto – Cais do Sodré vai até ao palco.



Decorria o ano da graça de 2011, no fim de um Verão bem quentinho – talvez já a mandarmo-nos para o Outono – quando soube do regresso ao activo de Allen Halloween. Já tinha ouvido falar no rapper de Odivelas. E já tinha passado no YouTube algumas – poucas - canções do “Projecto Mary Witch”. Hoje vou atrás e penso: em 2006 não sei se tinha estofo para aguentar as cantigas do Allen. Aos 23 era um garoto que me deixava levar quase unicamente pelo brilhantismo de malta com guitarras, amplificadores e vozes certinhas. Fossem elas das escolas dos EUA ou de Inglaterra. Não sabia o que era a vida, no fundo.

Halloween não é cá para meninos arranjadinhos: por aquilo que diz e pela forma como diz. Pelos beats crus, com as tensões escolhidas a dedo. Soube da existência de “Árvore Kriminal” enquanto pisava relva verdinha e bem tratada, ao solinho durante uma partida de golfe num domingo à tarde, na Costa da Caparica. Enquanto afinava o “drive”, de cigarro na boca, um dos grandes “bateras” cá do burgo (Fred Ferreira, o que anda aí a tocar Orelhas, Burakas e OST de filmes porno) diz-me: “Olha que o novo do Halloween está aí a chegar…” Só não usou as reticências – essas são minhas, para criar algum dramatismo. Depois mandou mais uma passa, que ajudou a criar tensão no discurso. A mesma tensão que Allen Pires Sanhá carrega no nome artístico e na alcunha de “bruxa”.

Na segunda-feira, quando voltei à redacção, estava uma caixa de cartão em cima da mesa. Abri-a e lá estava um disco com uma capa em tons vermelho-sangue. Mandei-o para o play e a batida pesada em “3/4” de “O Convite” agarrou-me logo. Nunca mais larguei a “Árvore Kriminal”, aquela que dá frutos, mas que “também é a árvore que podes utilizar para te enforcares”, repete Halloween.

Allen deu-se a conhecer. Ao estilo dele, de forma vagarosa e sem pressas. Sem preocupações sobre os terrenos que estava a pisar, se eram do “underground” ou não. Mas as histórias da “bandidagem de Santo Adrião”, de “esconderijos”, dos “olhos inimigos” que “parecem serpentes” (“KILLA ME, CABRON!”) iam convencendo cada vez mais e atiravam-me lá para dentro, como se também eu – o tal que ouvia as guitarras e vozes fofinhas, às vezes com um pedal de distorção –fosse um destemido “bad ass”, pronto para aviar gangsters. E por que não um pouco de realidade? Por que não um pouco de histórias que acontecem tantas vezes à nossa porta?



Não estranhei que o meu disco favorito de 2011 estivesse em muitos topes (olá, Bodyspace) desse ano. Mais do que isso: fiquei feliz pelo Allen, por perceber que os terrores que ele ia colocando nas canções eram ouvidos e compreendidos. “Então e o underground?”, perguntei-lhe há uns dias: “Acho que existem vários tipos de underground: aquele que é verdadeiro e o que é forçado – há gajos que até já tentaram cantar kizomba para sair de lá!”, responde-me. “E ainda há o underground que é tudo o que não tem sucesso! E depois desculpam-se com isso… mas quem sou eu para definir? É para isso que existe o público. A minha cena continua a ser underground: será que é por as pessoas terem começado a ouvir a minha música que deixou de ser? Não sei.”

A caneta mais leve ou mais pesada
O reconhecimento de Allen Pires Sanhá como uma referência no género hip hop em Portugal está, entretanto, mais do que decretada. Independentemente de a sua música ser ou não ser escutada por massas – que não é – Halloween já é considerado, justamente, como alguém que está a marcar uma geração. A promotora Filho Único já o tinha convidado para participar num debate sobre música, em que dividiu a mesa com B Fachada. Agora é o Musicbox, no Cais do Sodré, que o convida para uma residência mensal em que é Allen a escolher quem sobe ao palco com ele.

A curadoria começa este sábado, às 00h. “Propuseram-me ser músico residente no Musicbox, mas preferi fazer algo diferente: montar uma noite que se chamasse ‘Noite da Lisa’”, conta. Esse é um dos temas de “Árvore Kriminal” em que Halloween demonstra ter um enorme poder de descrição. “A noite é um carrossel da morte/de gente alegre e bonita que sofre”, canta. Fazia sentido recuperar o título desse rap para o nome da sua curadoria: “Esse som foi inspirado no Cais do Sodré e no Bairro Alto. Toda aquela zona. Quando o escrevi morava ali no fim daquela rua, na Rua Nova do Carvalho, mesmo na ponta, por isso é muito influenciado por toda aquela zona. A minha ideia foi trazer pessoal que anda por ali a dar freestyle nos poucos bares em que somos bem-vindos e levá-los para o palco para mostrar o trabalho já feito.”



Allen não quis revelar quem vão ser os convidados desta primeira edição das “Noites da Lisa”. É meio para fazer surpresa. “Um deverá cantar em crioulo, outro em português. Vamos ver”, adianta. “Existem muitos MC nesta linha que não têm a visibilidade necessária. Quero mostrar que linha é esta de música em que nós trabalhamos.” Quando Allen fala de “nós” refere-se ao colectivo de hip hop com quem partilha o palco há já alguns anos: os ODC Gang lançaram no Natal o pungente “Escumalha – Sons da Padrada”. “A forma de composição é diferente se for para os meus discos ou para ODC Gang. Em ODC não vou dizer que é mais ou menos pensado, mas se estou a trabalhar com outros MC não mexo tanto na caneta, crio algo mais musical. Quando vou para o meu álbum, aí sim: procuro algo mais íntimo, a caneta tem de ser mais pesada.”

Sorrio quando ouço Halloween falar em “intimidade” na sua música. Era o que faltava era lembrar-me agora de Bonnie “Prince” Billy ou Walter Benjamin. Mas foi aí que consegui perceber o porquê do meu fascínio pela música de Allen Halloween. Então era isso: a música pesada, suja, violenta, circunspecta e às vezes aterrorizante está pejada de intimidade. É só a nós, que estamos a ouvir “Não Há Luz No Meu Quarto”, que Allen revela que tem medo dos “gangsters” que podem descobrir onde está a morar: num quarto sombrio onde a luz do sol não bate e nem a bênção de um padre lhe pode valer. É a mim que ele conta: “o ódio é uma coisa que te torna infeliz”. Só quem está de ouvido aberto é que entende que “o Halloween é uma alma perdida que vagueia na street”.

É essa intimidade que o rapper precisa para compor. “O processo de criação de discos é um bocado egocêntrico.” Só que o trabalho vai sendo feito, as ideias vão sendo desenhadas, as canções delineadas e, vamos a ver, o novo disco está aí quase a chegar. “Está a ser feito com toda a calma. A minha ideia é lançá-lo no Verão.” A única certeza que Halloween tem é que o sucessor de “Árvore Kriminal” vai chamar-se ‘Híbrido’.”
“Sigam o homem/Halloween, Portugal most wanted.”
Bruno Martins

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