A história da música não vem nem a meio...
· 26 Mai 2008 · 08:00 ·
© Teresa Ribeiro

Sempre que sai uma notícia sobre a quebra de vendas de CDs a Associação Fonográfica Portuguesa traça um quadro negro para a música portuguesa, actual e futura. A minha mais imediata reacção é de perplexidade. Como é possível que se continue a traçar um cenário catastrófico para a música portuguesa quando o que observamos à nossa volta revela exactamente o contrário: nunca em Portugal se consumiu tanta música, tão variada, de todos os géneros e épocas, sob os mais variados formatos, nas mais diversas circunstâncias. Nunca houve tantos e tão talentosos músicos no activo, dos mais novos aos mais velhos, do mais pop ao mais erudito, do mais popular ao mais experimental. Nunca houve tantos festivais, tantos concertos, nunca apareceram tantos projectos novos. Nunca foi tão grande o potencial de internacionalização. E mais, nunca se editou tanta música em Portugal, apesar de se venderem cada vez menos CDs. Na verdade aquilo que podemos dizer sobre a situação em Portugal não reflecte senão o que se está a passar a nível global, com algumas nuances próprias na nossa especificidade.

O que está em causa é um modelo de produção e de distribuição, não o produto em si. O que está em vias de desaparecimento é a chamada “Indústria Discográficaâ€, nos moldes tradicionais que foram os do seu desenvolvimento durante o Sec. XX. A música enquanto expressão artística é uma manifestação humana primordial e milenar, é uma das formas de expressão mais universais. Existe há muitos milhares de anos e em todos os países, todas as culturas e civilizações. A música é uma forma de elevação, de afirmação, de terapia, de conforto. Nela afogamos mágoas, depositamos esperanças, louvamos os deuses, chamamos a chuva, lançamos maus olhados! A música tem um grande poder. Não se estranhe por isso que toda a gente queira música — e que, sobretudo num mundo com muitos ‘vazios’, se procure na música uma forma de realização. Como é possível pensar que possa a Música possa estar em perigo, aqui ou em qualquer parte do mundo?…

As formas de produção e circulação de obras musicais têm sofrido alterações ao longo da história, fruto dos desenvolvimentos sociais, industriais e tecnológicos. Para compreendermos um pouco o que está a acontecer é útil olhar para a história, mesmo que superficialmente, e perceber o que aconteceu em alguns momentos chave (uma visão mais profunda é dada no livro de Siva Vaidhyanathan, Copyrights & Copywrongs - The Rise And Fall of Intellectual Property).

A invenção da Imprensa por Gutenberg, no Sec. XV, deu início à era da reprodução mecânica, levando a que fosse finalmente possível editar obras musicais em ampla escala. Todos sabemos os proveitos que daí resultaram. Mas essa primeira “revolução†não deixou de ter os seus efeitos colaterais: os copistas, até aí encarregues de copiar as obras uma a uma, perderam os seus empregos. Seguiram-se 4 séculos de crescimento para a edição de música impressa. No final do Sec XIX, a invenção da ‘Pianola’ popularizou a música em rolos perfurados, para ser tocada nos pianos mecânicos instalados em bares, salões e demais espaços públicos de convívio. Mais uma vez houve quem temesse o impacto dessa inovação: os músicos-intérpretes insurgiram-se contra o que descreviam com uma “banalização†e “desumanização†da música, alertando para as consequências que daí resultariam. Afinal, a única coisa que aconteceu foi um maior interesse e democratização do acesso à música. Pouco tempo depois - a história acelera… - a invenção do fonógrafo gerou mais uma vez o pânico no seio dos músicos-intérpretes. E as respectivas associações de interesses corporativos vieram a público pedir legislação que proibisse a produção de fonogramas: “A música gravada é o fim da Música!â€, anunciavam catastróficamente. Já com a indústria de produção de fonogramas em plena expansão, e com os medos iniciais transformados em ambiciosas perspectivas comerciais, o aparecimento das Juke-Boxes veio repetir a história da Pianola: de novo houve quem argumentasse que essas máquinas iriam comprometer o florescente negócio da venda de discos. Mais uma vez se verificou o contrário. Com o aparecimento da Rádio a história repetiu-se. E viria a repetir-se ainda, embora com menor expressão, com o aparecimento da Televisão. Seguiu-se nos anos 50 a guerra contra a fita-magnética e os gravadores, primeiro de bobines, depois de cassetes; primeiro só áudio, e depois, já nos anos 70, áudio e vídeo. Mais uma vez houve quem anunciasse o fim da música (e do cinema)… e pedisse proibições, leis e taxas…

Agora, e desde há alguns anos, assistimos à guerra da “Industria Discográfica†contra uma nova realidade: a música na era digital. Convêm recuar de novo um pouco no tempo. Durante o Sec XX a indústria discográfica impôs-se como incontornável intermediário entre o artista e o público. O acesso aos estúdios de gravação, à fabricação de fonogramas e às suas redes de distribuição era demasiado dispendioso para que os músicos individualmente ou em pequenas organizações independentes a eles tivessem acesso. Sem a indústria discográfica não teria havido a revolução e consequente democratização da música no Sec XX. Mas, tal como em muitas outras actividades características da sociedade capitalista, esta indústria - desta vez aliada com a indústria tecnológica - acabaria por inventar o seu próprio caixão. Com a invenção do CD e a passagem para o mundo digital a música mudou de novo e para sempre. No momento em que foi possível “registar†música sob a forma de “zeros e uns†a música abriu-se à sua reprodução ad-infinitum. Se num primeiro momento o objecto “CD†criava a ilusão de que a música continuava a existir sob a forma de produtos transaccionáveis, com o desenvolvimento da Internet e dos novos formatos de compressão de dados essa ilusão desvaneceu-se. As transformações que essa nova realidade desencadeou eram impensáveis para os responsáveis da Indústria (e para todos nós) na altura da invenção do CD. Desde aí, e ao longo dos últimos 25 anos, a circulação de registos musicais desmaterializou-se. No entanto, o tempo decorrido deu ainda para que a Indústria “engordasse†à conta do novo formato digital. As re-edições em CD foram vendidas como o formato ideal, no qual as pessoas iriam guardar as suas músicas preferidas para sempre, levando milhões de consumidores a adquirirem de novo as suas colecções de discos, e desfazendo-se dos velhos, pesados e volumosos discos de vinil (e pagando preços absurdos pelos novos discos, produzidos a custos muitas vezes irrisórios, sobretudo as re-edições). Foi o primeiro passo no corte da relação afectiva que prendia o amante de música aos objectos que a continham. O CD mostrou-se um formato incapaz de gerar grande afectividade, por mais voltas que se lhe dê. Ainda por cima envelhece mal: quando se risca fica inutilizado (o vinil ficava só com uns estalidos mas continuava a tocar), as caixas de plástico riscam-se e partem-se (as velhas capas de cartão impresso ainda hoje nos encantam…); o CD é um objecto pequeno, o texto é sempre pequeno, as imagens são pequenas (um LP, por outro lado, tem uma escala aproximada à do rosto humano). Nos últimos 10 anos, com a popularização dos gravadores de CD e a progressiva fusão entre a informática e os conteúdos audio-visuais, foi dado o último passo no sentido da desmaterialização. A quebra vertiginosa na venda de CDs deve-se essencialmente a estes dois factores: quebra da relação afectiva com o suporte musical e desmaterialização do mesmo. Não há volta a dar e a história não anda para trás. Se os maiores lesados desta revolução são as grandes editoras e demais agentes da indústria discográfica, os impactos estendem-se a todos os que vivem da música.

Quando há uns dias dei boleia a um filho de uma amiga - um adolescente de 17 anos para quem, como a maioria dos adolescentes, a música faz parte integrante do quotidiano - e ele pegou num pequeno monte de 10 ou 12 CDs que estavam no banco da frente, disse: estes CDs são mais do que os que eu alguma vez já tive. O que este episódio revela é uma realidade impossível de ser ignorada. Para esta geração a música não é uma coisa que exista sob a forma de objecto que se adquire. A música é uma experiência e é um serviço: seja no computador, no I-Pod, na televisão, na rádio (muito pouco), na discoteca, no bar, na sala de concertos ou no festival de verão. E mais, para esta geração a música gravada existe em formato digital e, à partida, é gratuita. Partilha-se infinitamente entre colegas, amigos, conhecidos e desconhecidos; copia-se livremente de I-Pod para I-Pod, pen-drive para pen-drive, CD para CD, computador para computador, directamente ou pela Internet. A música é uma componente dos novos modos de interacção social. Nada de novo aqui: já com as gerações anteriores a música serviu de catalisador para relações sociais e convívio entre amigos: primeiro o baile e o concerto, depois os discos emprestados e as festas em volta de um gira-discos, mais tarde as cassetes trocadas entre amigos e namorados… Só que, se até à revolução digital a música estava presa a objectos físicos (se um amigo não nos devolvesse um disco, ficávamos sem ele) agora não. A música espalha-se sob a forma de “zeros e uns†infinitamente reprodutíveis sem que isso seja materialmente observável.

É por isso que o conceito de “pirataria†que a Indústria Discográfica (infelizmente secundada por alguns músicos que ainda não perceberam bem o que se está a passar) evoca para descrever a livre troca de ficheiros de música é ontológicamente desadequada. Não é correcto utilizar essa expressão, não se trata de um acto de pirataria. Pode ser uma infracção contratual, pode até ser uma ilegalidade, mas não é um acto de pirataria. Nem é comparável à contrafacção - de onde a expressão ‘pirataria’ foi importada. O negócio não autorizado com criações alheias é uma actividade condenável. Mas perante uma partilha gratuita a atitude tem forçosamente que ser outra. Se formos mais longe, o que está em jogo é a própria noção de partilha, na medida em que esta assenta no princípio da generosidade e não encaixa na lógica do capitalismo liberal. A guerra contra os livres downloads é uma guerra perdida, porque é uma guerra contra o próximo passo civilizacional da humanidade. Não é preciso ser-se tão radical quanto os editores da revista Wired que anunciaram na capa do número de Março passado “Why FREE is the future of businessâ€. Mas vale a pena registar a opinião de Peter Jenner, antigo empresário dos Pink Floyd e dos The Clash, entre muitos outros (citado no site remixtures.com) “No final, serão os utilizadores, bem como as editoras independentes, os músicos e os compositores, que ficarão a ganhar. Dentro de dois ou três anos muitos países terão uma licença global (â€blanket licensing†- mais informação em http://cyber.law.harvard.edu/media/content_and_control) que permitirá o download e partilha ilimitada de música por apenas alguns euros mensais.†Esta é uma via muito mais sensata e inteligente, porque tira proveito da enorme massa crítica que constitui a rede global. Ou seja, os proveitos gerados por alguns euros mensais, a multiplicar pelos milhões de utilizadores da internet, correspondem a somas astronómicas, muito superiores ao que a indústria ‘tradicional’ alguma vez foi capaz de gerar. Uma distribuição justa destes proveitos (seguindo o método já utilizado para os direitos cobrados às rádios, televisões, bares, etc…) permitirá aos criadores uma recompensa financeira muito maior, e sobretudo mais estável, do que alguma vez poderiam esperar cobrar pela sua música em formato digital.

O que está a acontecer é uma transformação profunda nas formas de capitalização e disseminação da música. Tal com em todos os momentos anteriores da história, o que daí virá pode vir a ser muito melhor, tanto para músicos como para ouvintes. As oportunidades são agora muitíssimo mais, para quem as souber aproveitar. Não é um processo que tenha só ganhos. Alguns formatos terão a sua sobrevivência comprometida, outros emergirão com enorme potencial. O CD eventualmente estará condenado a uma existência residual. Outros formatos aparecerão. O Blue-Ray acaba de entrar em cena… As taxas de compressão dos formatos digitais, e a ‘largura de banda’ da internet, irão permitir trocas de ficheiros cada vez mais rápidas. Chegaremos daqui a não muitos anos à possibilidade de transmissão em tempo real sem percas perceptíveis na qualidade áudio. Perante estes cenários cabe aos músicos e aos seus parceiros de negócio, saberem reinventar as formas de capitalizar a sua criatividade. A música não poderá nunca ser inteiramente gratuita. Mas a possibilidade de uma cobrança mais justa e directa, eliminado as margens dos intermediários, nunca foi tão grande.

A luta que tanto a Associação Fonográfica Portuguesa (tão longe desta realidade que não tem sequer um site na net) como a sua congénere americana - RIAA (Recording Industry Association of America) travam, não é uma luta em defesa da música, é uma luta em defesa de um modelo de negócio e de alguns (muitos) postos de trabalho. Compreende-se que travem essa luta, mas não é aceitável, nem produtivo, que tomem as atitudes que têm tomado, quer seja a pressão junto dos legisladores quer seja junto dos tribunais. Só estão a atrasar um processo do qual todos podemos tirar imensas vantagens. E pelo caminho vão conseguindo ‘cobrar’ pesadas multas a jovens que adoram música e só estão ávidos em descobrir os seus próximos artistas favoritos. Seria bom que os legisladores, e todas as instituições implicadas na regulação da actividade musical, tivessem consciência do que está em jogo, não se deixando iludir por um pequeno mas poderoso grupo de agentes que não pretende outra coisa senão continuar a controlar um mercado em aceleradíssima transformação e expansão. Ao contrário do que defende a AFP, o que antevejo é uma idade de ouro para a música portuguesa. Agora que finalmente a música se está a libertar de uma indústria altamente controladora e concentracionária, agora que estamos todos ligados, o melhor ainda está para vir… Todas as evidências assim o apontam.

Originalmente publicado em http://blog.joaopaulofeliciano.com/.

João Paulo Feliciano

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