O Som da Imagem ou a Imagem do Som?
· 17 Mar 2008 · 07:00 ·
  O cinema existe desde 28 de Dezembro de 1895, data em que as experiências incipientes dos irmãos Auguste e Louis Lumière, com o “cinematógrafo”, espantaram o público burguês do Grand Café de Paris. Os inventores do cinema lançaram as bases desta emergente linguagem artística com filmagens de um minuto, nas quais mostravam a vida quotidiana de cidadãos comuns. Apesar do sucesso popular imediato daquelas sessões de projecção cinematográfica (por onde passou o escritor Eça de Queiroz), os irmãos Lumière não auguravam futuro para o cinema. Felizmente que outro francês, George Méliès (realizador do célebre filme Viagem à Lua, considerada a primeira ficção do cinema), não pensava da mesma forma e desenvolveu, sobremaneira, a linguagem cinematográfica, ainda que muito ligada à estética teatral. Depois, outros notáveis realizadores se encarregariam de desenvolver a linguagem do cinema de distintas formas. O que é certo é que durante os primeiros 30 anos da sua história, o cinema foi mudo. Ou quase. Significava isto que o som estava ausente das imagens, apenas havendo um ou outro acompanhamento de piano durante a exibição pública, geralmente tocado por detrás da tela de projecção. Algumas ténues experiências foram feitas na conjugação som-imagem, nomeadamente, na utilização que alguns realizadores fizeram utilizando a música de compositores clássicos, como Saint-Saëns, Pizzetti ou Satie.

Curiosamente, outros grandes compositores como Stravinsky, Bartók, Ravel ou Schoenberg, que se aventuraram na criação de música para filmes, manifestaram-se ineptos criadores de bandas sonoras para cinema. Daí que a relação entre o cinema e a música seja uma relação artística complexa e problemática, uma vez que se reveste de múltiplas facetas e visões distintas, levantando determinadas questões pertinentes que praticamente se mantêm vivas até hoje: será a música para cinema meramente ilustrativa? Os compositores para cinema são compositores de primeira ou de segunda? A banda sonora para filme é um género à parte da restante produção musical? Um filme fica mais rico se tiver sempre uma partitura original (como Spielberg) ou bandas sonoras adaptadas (como Kubrick)?
 

Metropolis

  Nos primórdios, por impossibilidade técnica, o filme era desprovido de som (banda sonora ou diálogos), e os realizadores e espectadores pouco se importavam com isso. A interpretação dos actores era mais física e expressiva, uma vez que o som dos diálogos era inexistente. Dava-se relevo às imagens e suas múltiplas formas expressivas. Mas não foi por isso que não se fizeram inúmeras obras-primas de arte cinematográfica, como O Couraçado Potemkine (1925) de Sergei Eisenstein, Nosferatu (1922) de Murnau, O Homem da Câmara de Filmar (1929) de Vertov ou Metropolis (1927) de Fritz Lang. Quando o sonoro surgiu, no filme The Jazz Singer (1927, com o actor Al Jonhson a imitar um cantor de jazz negro), houve alguma resistência por parte de grandes vultos do cinema à novidade técnica do som. O próprio Charlie Chaplin chegou a dizer que o som iria “matar o cinema”. E Greta Garbo foi das poucas actrizes que se conseguiu afirmar no período sonoro com a mesma veemência com que o tinha feito no mudo.
 

Charlie Chaplin em Tempos Modernos

 

A revolução do sonoro tinha começado. Apesar da ausência de som e de música, este foi um período extremamente criativo no que se refere à consolidação da linguagem artística do cinema, enquanto forma estética (montagem, realização, fotografia, cenários) e objecto semiótico (narrativo, ficcional, documental). Determinados filmes foram efectivamente silenciosos durante décadas. Chaplin musicou, ele próprio, os filmes Luzes da Cidade (1931) e Tempos Modernos (1936) apenas durante a década de 60. Buñuel fez o mesmo com a obra-prima Un Chien Andalou (1929), à qual adicionou a banda sonora (tango argentino) 35 anos depois da estreia. Ou seja, os realizadores de cinema cedo se aperceberam da grande importância que a música detinha como complemento das imagens. Por isso Eisenstein trabalhou logo em 1938 com o compositor Sergei Prokofiev, que compôs a banda sonora épica do filme Alexander Nevsky, num exemplo acabado da perfeita sincronia criativa entre imagem e som. Os sons (no sentido da sonorização da narrativa) e a banda sonora (a música propriamente dita com funcionalidade dramática) desempenham um motor emocional próprio no espectador, desencadeando reacções que não seriam possíveis caso não houvesse essa componente sonora. No entanto, no campo do cinema experimental, cineastas houve que rejeitaram o som como complemento da imagem (ou que o suaram de forma muito residual): Maya Deren e Stan Brahkage são apenas dois exemplos. Durante o período áureo da indústria de Hollywood - dos anos 40 a 60 do Século XX – revelaram-se grandes compositores para cinema: Bernard Herrmann. Elmer Bernstein, Nino Rota, Ennio Morricone, Henri Mancini, Alfred Newman entre muitos outros. Hoje qualquer cinéfilo identifica a ligação estética entre determinados cineastas e músicos: David Cronenberg e a música de Howard Shore, Sergio Leone e a música de Ennio Morricone, Steven Spielberg e a música de John Williams, Hitchcock e a música de Bernard Hermann, Tim Burton e a música de Danny Elfman, Peter Greenaway e a música de Michael Nyman, etc.

Durante os últimos anos, uma das estratégias de reabilitação do cinema mudo tem sido conseguido com o fenómeno dos cine-concertos (ou filmes-concertos). Isto é, filmes que são acompanhados com música original interpretada ao vivo e em tempo real da projecção. Há inclusive compositores e grupos musicais que se dedicam exclusivamente à criação de bandas sonoras para filmes mudos. Projectos de diversas proveniências estéticas e nacionalidades têm criado música original para filmes imortais do período mudo: Art Zoyd, Cinematic Orchestra, Alloy Orchestra, Clã, Nuno Rebelo, Pet Shop Boys, etc. No fundo, novos campos de experiências estéticas se abriram com a confluência dos filmes com os concertos ao vivo.

Outra manifestação elevada da conjugação entre as imagens e a música é a extraordinária trilogia Qatsi, realizada por Godfrey Reggio e musicada por Philip Glass. Três filmes com uma sublime composição plástica da imagem e uma música perfeita que acompanha as mutações visuais que vão ocorrendo. Quando pensávamos que nos dias de hoje seria impensável conceber um filme sem banda sonora (original ou adaptada), eis que os irmãos Coen surpreendem tudo e todos com o seu original “Este País Não é Para Velhos”. Indo completamente contra a corrente convencional da linguagem fílmica actual, os Coen optam por uma solução radical e ousada nos dias de hoje: imagens sem acompanhamento musical. Esta opção acaba por contribuir para dar uma maior dureza às imagens dramáticas do filme, transformando o visionamento da obra dos Coen numa experiência extremamente crua e austera. Significará o regresso às origens do cinema?

 
Victor Afonso
chaplin.afonso@gmail.com

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