10 discos para fazer a revolução
· 25 Abr 2012 · 23:50 ·
Aproveitando a data, o nosso muito querido 25 de Abril, a redacção do Bodyspace achou por bem escolher uma fornada de discos que, directa ou indirectamente, carregam nas costas o peso da revolução, que contribuiram para dar voz a uma geração, que serviram de arma de arremesso em tempos conturbados; registos que marcaram um ponto de viragem quer seja musicalmente, esteticamente ou socialmente, que apontaram no calendário um antes e um depois. Sem pretenções políticas, mas conscientes da importância do momento, juntamos dez discos de proveniências distintas, de cores e matizes amplas, com um objectivo. Aliás, dois. Aliás, três. São eles: fazer ouvir, fazer pensar, fazer agir. André Gomes

© Angela Costa


 

 

Gil Scott Heron
Pieces of a Man (1971)
Flying Dutchman/RCA


Pieces of a Man de Gil Scott Heron não surge nesta lista apenas por causa de "The Revolution Will Not Be Televised", nem apenas por ser uma espécie de poema da palavra cantada (embora o spoken word tenha um papel inferior quando comparado com o disco de estreia), nem somente por marcar o primeiro momento de colaboração com Brian Jackson (que tantos e bons frutos havia de produzir no futuro). Pieces of a Man está aqui porque Pieces of a Man é o álbum maior de Gil Scott Heron e porque Gil Scott Heron foi um homem dado a revoluções sonoras, estéticas (chamam-lhe o pai espiritual do hip-hop) e sociais. Posto isto, como insistiu o próprio Gil Scott Heron, Pieces of a Man é apenas político em "The Revolution Will Not Be Televised" mas é-o tão político aí que se tornou impossível interpretar todas as restantes dez canções à lupa dessa realidade. Mesmo que Gil Scott Heron não o tivesse feito propositadamente, Pieces of a Man serviu de matéria-prima para muita da música de protesto que atravessou as décadas até hoje. André Gomes


 

 

Can
Future Days (1973)

United Artists


Yes you CAN. Revolução é um disco eterno que passou despercebido na sua altura porque era MESMO à frente do seu tempo. Um disco daqueles que mal se agulha no vinil ou o indicador pressiona o play, custa sempre não ouvir até ao fim, sem parar. Quatro alemães e um japonês a falarem de dias futuros e de globalização na década de setenta, quando ainda não era o tema do dia. A guitarra de Karoli entre o branco e o negro, o rock e o funk e o afro-beat numa releitura minimal, de um gosto melódico que nos leva para Durutti Column, Stone Roses, Radiohead por exemplo, gente de uma, duas décadas depois! Para não falar do baixo de Holger Czukay completamente pré-No Wave, New Wave, Kim Gordon uma década antes. Sem esquecer os dedos de Irmin Schmidt a trazer electrónica numa perspectiva ambiental e chill-out já tão noventas!!, ao ritmo do robot Jaki Liebezeit que afinal é um ser humano mergulhado em jazz e tons brasileiros, criando talvez os primeiros tons de acid jazz e até drum n' bass!!! Tudo, pontuado com voz viciante e açucarada de Damo Suzuki, que também ela leva a melodia de imediato para o nosso presente, para o nosso século XXI, tudo em 1973, repito, em 1973!!!! Um disco que entrou na altura em poucos ouvidos mas fez eco, tanto eco que ainda ecoa em muita coisa boa que se ouve hoje, não há estúpidos pontos de exclamação que descrevam as sensações desta revolucionária obra-prima-filha-da-mãe-pai-avó-avô-Deus da música contemporânea. Vinte minutos de "Bel Air" > "qualquer outra música na história". Ouvir para crer. Nuno Leal


 

 

Prodigy
Music for the jilted generation (1994)
XL / Mute


Essencialmente nascido em resposta à criminalização da cultura rave decretada pelo governo britânico em 1994, Music for the Jilted Generation marcou uma espécie de rebelião contra a actuação da polícia em relação à cena. Enquanto manifesto de intenções, “Their Law†é contundente : â€What we're dealing with here, is a total disrespect for the law†anuncia uma voz sacada ao filme Smokey & the Bandit, antes da entrada de um riff de guitarra como quem reivindica o punk no seio de tudo isto – algo que os Atari Teenage Riot já andavam a fazer de modo mais incisivo – para acabar com um conclusivo â€Fuck 'em and their law†: um vazio ideológico que se sustenta numa confrontação tão genuína quanto inconsequente. Até porque a história da música de dança nunca foi fértil em actos de consciência social coerentes – pensemos nos acessos ecologistas dos Orbital.

Mais negro que Experience, Music for the Jilted Generation é o manifesto possível de quatro drogados a reclamarem para si o estatuto de porta-estandartes de uma geração abandonada, mas apesar do statement implícito, “Their Law†é das piores canções do álbum – antecipando os momentos mais embaraçosos de Fat of the Land. É quando a confrontação dá lugar ao hedonismo celebratório que a banda consegue soar verdadeiramente “revolucionária†- desculpem-me o termo - sem se esforçar por fazer disso bandeira. O chamamento comunal de “One Love†sem os tons melosos do clássico reggae do mesmo nome, os vidros a estilhaçar sobre o breakbeat de “Break & Enter†ou tensão cortante de “No Good (Start the Dance)†são disso exemplo. Ou de como a máxima atribuída a Emma Goldman de que “If I can't dance, I don't want your revolution†faz todo o seu sentido. Bruno Silva


 

 

Streetlight Manifesto
Everything Goes Numb (2003)
Victory


À partida, um disco de ska não é a banda-sonora ideal de uma revolução - o que não é dizer que o género em si é apolítico, mas apenas que não é agressivo ou efusivo o suficiente para acompanhar as hordas de idealistas que as fazem. No entanto, os Streetlight Manifesto conseguem em Everything Goes Numb aliar essas três vertentes: são idealistas ("If And When We Rise Again"), são agressivos ("A Moment Of Violence") e sabem que uma revolução não se faz sem alguma festa ("Point/Counterpoint"). Estas doze canções não servirão como manifesto de nada - passe o trocadilho idiota - mas, o que é melhor, alimentam a criatividade de alguém que queira escrever um. Assim funciona o punk e as suas muitas vertentes. Ainda que, por via das letras certeiras mas vãs, do espírito bipolar em que a alegria e a depressão oscilam rapidamente (ouça-se "Here's To Life" para se perceber melhor), sejamos obrigados a avaliar a sua importância de uma perspectiva puramente adolescente - sejamos francos, o disco não é adulto o suficiente para que inspire as revolucionários de hoje - Everything Goes Numb é daqueles discos que ficam para sempre se foram ouvidos na altura certa. E só isso é uma mini-revolução em si. Afinal de contas, é aí, nesse período, que nascem os ideais e se sonham milhares de revoluções. Depois formatam-nos o cérebro e limitamo-nos a sobreviver. Paulo Cecílio


 

 

Max Roach
We insist! freedom now suite (1960)
Candid


Em 1960 o baterista Max Roach era já um músico com uma sólida carreira, tendo contribuído para a afirmação e desenvolvimento do bebop, com um curriculum vastíssimo que se cruzou com quase todos os grandes da época: Charlie Parker, Dizzy Gillespie, Thelonious Monk e Bud Powell, entre outros (das suas obras icónicas faltava-lhe gravar apenas Money Jungle, trio sublime com Ellington e Mingus, o que acabaria por acontecer dois anos depois). Neste disco We Insist! Max Roach projectou um assumido manifesto de luta pelos direitos civis, numa "suite" composta em parceria com Oscar Brown Jr. Para este disco Roach reuniu um conjunto de músicos de créditos firmados, como Booker Little (trompete), Julian Priester (trombone) ou Olatunji (percussões), mas o sucesso do disco passa sobretudo pela participação da cantora Abbey Lincoln, que empresta a sua voz a um conjunto de temas fortes, com uma enorme entrega. Mais do que uma natural raíz jazz, esta música pega na tradição negra (sentido lato), em canções de protesto que incorporam elementos como o gospel e os espirituais, com uma energia próxima do free jazz que estava para chegar (ouçam-se alguns momentos intensos da bateria de Roach e os gritos de raiva/libertação de Lincoln). Destaque-se ainda a participação especialíssima do grande Coleman Hawkins, aqui já numa fase avançada da sua carreira. Nuno Catarino


 

 

Minor Threat
Out of Step (1983)
Dischord


Só se nos mudarmos a nós próprios podemos operar alguma mudança no mundo. Já Lao Tsé (Confúcio para os ocidentais) ensinava que o guerreiro mais forte é o que se conquista a si mesmo. E Out Of Step demonstra que cada um tem a capacidade de ser o seu próprio mestre, dominando vícios ou perniciosas influências. O primeiro passo para que tal aconteça é começarmos a pensar pela nossa cabeça, mesmo que isso nos transforme em ovelhas tresmalhadas, Out Of Step com o mundo, como o título deste disco e a música sugerem. Ao niilismo punk, o hardcore straight edge criado por Ian MacKaye e cia. contrapõe uma mensagem positiva mas igualmente crua e acutilante. No seu único LP (tal como na restante discografia esparsa) destilaram doses iguais de fúria e auto-consciência, através de malhas rápidas e pungentes, por vezes entrecortadas por pausas de tirar o fôlego, em que abordam relações pessoais - como em “Betray†ou “Look Back And Laugh†-, avisam cerra os dentes, não te lamentes (“Sob Storyâ€) ou acabam a puxar da mais fina ironia, na portentosa “Cashing Inâ€. Mais do que exporem uma cartilha de regras, lembram que a revolução se faz de dentro para fora. Hugo Rocha Pereira


 

 

Public Enemy
It Takes A Nation Of Millions To Hold Us Back (1987)
Def Jam/Columbia


“Yo! Bum Rush The Show!†tinha deixado o aviso um ano antes. Mas em 1988, It Takes A Nation Of Millions To Hold Us Back trouxe mais de tudo. Mais cheio, mais feroz, mais Ruidoso, mais politico, etc. Logo a abrir, ouvimos a voz de Flavor Flav num concerto a dizer “London, England! Consider yourselves warned!â€, e a partir daí é explosão atrás de explosão. Clássico atrás de clássico. Os Public Enemy, liderados pela voz grave e militante de Chuck D, exibiam aqui um programa claro de emancipação da sua comunidade, e denúncia do racismo institucional que tantas vezes passa despercebido. Mas não se ficam por aqui. “Don’t Believe The Hype†ataca os media que compreenderam mal a mensagem do grupo. “She Watch Channel Zero†a obsessão pelas figuras televisivas. “Night Of The Living Baseheads†o flagelo do crack nas cidades. Enquanto isso, a produção revolucionária da Bomb Squad, misto de samples vários, sirenes e explosões, criava momentos inesquecíveis como “Rebel Without A Pause†ou “Louder Than a Bombâ€. It Takes A Nation... é um bulldozer imparável, e um dos melhores discos de sempre. Nuno Proença


 

 

Marvin Gaye
What's Going On (1971)
Motown


Não, ninguém se esqueceu de pôr ali um ponto de interrogação. What's Going On é uma crónica íntima dum tempo e dum lugar: os EUA no início dos anos 70, com uma guerra no horizonte e o movimento dos direitos civis, entre outras convulsões sociais, entre-portas. Marvin Gaye não ficou indiferente às cartas que o irmão Frankie lhe enviava do Vietname nem à situação interna do seu país, factores que o fizeram reavaliar o que pretendia transmitir com a sua arte. E neste disco dirige-se como um despertador de consciências à sua geração, interpelando-a a agir para a mudança na faixa-título que abre o disco ("you see war is not the answer / for only love can conquer hate / you know we've got to find a way / to bring some lovin' here today") e abordando uma série de assuntos tão prementes quanto incómodos. Dos problemas ambientais de "Mercy Mercy Me (The Ecology)" à toxicodependência (em "Flyin' High") ou ao desemprego, uma das maiores vozes da soul pinta um quadro negro sobre a terra dos sonhos. E fá-lo com apurada sensibilidade pop, em malhas de groove influenciado pelo jazz e pelo funk, tecidas por orquestrações clássicas. O resultado final: uma obra-prima incontornável. Nem sempre o casamento é feliz quando a arte se debruça sobre as transformações sociais e políticas, mas esta musica é universal e intemporal, fazendo hoje tanto sentido (e soando tão bem) quanto há 40 anos atrás. Hugo Rocha Pereira


 

 

VA
Divergências (1986)
Ama Romanta


1986. O Maio de 68 invertido como cantavam os Pop Dell'Arte. Uma editora, historico-misticamente em paralelo com a Fundação Atlântica, mas sem dúvida a editora independente portuguesa que deu até hoje frutos musicais mais revolucionários. A essência dos nossos anos 80, onde o festival Rock Rendez-Vous tinha participantes com um fulgor criativo nunca antes visto no Portugal-Musical, e sem repetição histórica. Uma galáxia de planetas como os já referidos Pop Dell'Arte e Mler If Dada, Essa Entente, Santa Maria Gasolina Em Teu Ventre, Anamar, Sei Miguel, todos em órbita num duplo LP mágico, ao nível da magia contagiante de uma cassette C-86 do New Musical Express. Um pulsar contínuo de vida, canção a canção, ideias de gentes divergentes unidas na vontade de experimentar, infelizmente pérolas a uma imensa minoria de porcos, como se ouve numa das faixas, uma lendária entrevista electro-acústica de João Peste ao dr. Paquete de Oliveira, sim, o tal que foi mais tarde provedor do telespectador da RTP. Irónico, senão oiçam o senhor: http://www.youtube.com/watch?v=upL0enQokb4. Nesses idos tempos revolucionários, em que música se misturava com esperanças situacionistas, Guy Debord era leitura da juventude sónica, Portugal entrava na CEE, Abril tinha sido apenas há 12 anos, uma espécie de Summer of Love atrasado mas num espírito "mais vale tarde do que nunca", parecia que estávamos no bom caminho. Mas o nosso pequeno país tratou de secar tudo, a Ama Romanta foi sol de pouca dura, qual sonho de Torre Bela herdade-livre devolvida ao proprietário e tornada reserva de caça. O que nos consola é que se trata de um problema mundial. Quando muitos anos mais tarde Jim O'Rourke referiu como obra-prima outro disco revolucionário da Ama Romanta de 88, Plux Quba de Nuno Canavarro, Portugal não sabia quem era, do que se tratava. Como poucos são os alemães da Merkeland que conhecem Can, Neu ou Faust. Como a maior parte dos fãs dos Velvet Underground surgiram nos anos 80. Eu próprio tinha 9 anos em 86 e ouvia o The Final Countdown dos Europe. Não se pode perder a esperança. Nuno Leal


 

 

Stereolab
Transient Random-Noise Bursts With Anouncements (1993)
Duophonic


Hoje pouco mais do que uma nota de rodapé, os McCarthy foram uma banda com tendências esquerdistas que serviram de pano de fundo para que Tim Gane e Laetitia Sadier se conhecessem e pusessem em curso um das mais fascinantes histórias de amor nascidas nos últimos 20 anos. Ou como a política – no sentido mais lato da palavra – pode também servir como fundamento para algo bem mais apaixonante do que reivindicativo. Até porque, no que diz respeito a bandas tendencialmente politizadas, os Stereolab sempre tomaram uma posição absolutamente singular. Na verdade, a banda sempre rejeitou o rótulo de marxista ou propagandista, apontando antes nomes como Cornelius Castoriadis – um crítico de Marx – ou os Situacionistas como influência. No entanto, há todo um sentimento de mudança eminente nas letras sonhadoras – ou platitudes utópicas, se o preferirem – de Sadier; o desejo de uma sociedade perfeita erigida sobre a sociedade do espectáculo de Debord, onde o indivíduo toma um papel activo : â€What you decide to be is what you are†canta ela na primeira linha de “Our Trinitone Blast†sobre uma batida motorik.

Em 1993, a banda sonora para estes sonhos estava ainda firmemente alicerçada no pulso do Krautrock – via Neu! - mas estabelecem-se já pontes para o hipnotismo sensual do futuro (“Pack Yr Romantic Mindâ€), mesmo que seja o drone o fim último destas canções – “Lock-Groove Lullaby†é um título simbólico para o que se passa neste álbum. Ou como se a “Revolution†dos Spacemen 3 se deixasse inundar por alguma luz. Enquanto peça central, “Jenny Ondioline†são 18 minutos a recolher toda esta dialética : â€That what is exciting / Is a challenge as the new nation / But the tensions have to be creative with some timeâ€. Transient Random... é o primeiro grande álbum da banda britânica, antes desta se passear pelo lounge de bom gosto de um Martin Denny ou Esquivel – anos mais tarde Dots and Loops seria a encarnação dos princípios fundadores da Bauhaus – mas já com muito Bacharach no cérebro. O corpo era ainda rock, e é esse nervo que o separa de tudo o resto. Algures entre o cocktail molotov e o de chapelinho. Bruno Silva



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