Um género como o Metal (nas suas diversas variações) sempre se pautou por um apego ao tradicionalismo de tal modo excessivo, que, qualquer mudança que este possa sofrer é desde logo confinada ao fracasso pelos inúmeros puristas que ainda insistem em levantar o indicador e o mindinho ao som de “Fear of the Dark” e não descuram da bolorenta t-shirt de Megadeth em festivais de Verão. Obviamente que esta situação é comum a todos os géneros, no entanto, o Metal parece ser particularmente vitimado por um sonambulismo latente. Bem vidas chapadas na cara na cara do conformismo são matéria para estudo e mais do que isso para que entorpecimento não se instale, para que um género possa subsistir, sem que se arraste constantemente pelos mesmos caminhos, e por conseguinte caia constantemente nas suas próprias armadilhas.
Curiosamente, um dos subgéneros mais vitais na revitalização do Metal, tem sido o Black Metal, que, fora dos holofotes que insistem em iluminar anedotas como Cradle of Filth ou Dimmu Borgir, tem vindo a revelar uma capacidade de se reconstruir assinalável. Seja pela via das experimentações mais radicais de grupos como Wold ou Spektr, ou da capacidade de fundamentar uma linguagem tão pessoal como o fazem Xasthur ou Leviathan, este género tantas vezes confinado à sua mística em torno de acontecimentos muito pouco musicais na década de 90 (dos quais nem vale a pena estar a falar), parece ter tido um crescimento notável nos últimos anos, injectando nova vida num corpo que durante muitos anos se remeteu a um coma profundo. Algo paradoxalmente, esta reinvenção parece afastar os tradicionais metalheads, mas acaba por os aproximar das franjas mais experimentais da música americana (caso paradigmático: Black One dos Sunn 0)))), seja através de palavras elogiosas em sites como a Dusted ou a Aquarius, ou pela boca de nomes como Pete Swanson (Yellow Swans), Thuja ou Wolf Eyes. Inevitavelmente, acaba por se dar o encontro físico entre estes dois mundos cada vez menos distantes, e da troca de cassetes e elogios à partilha de palcos é um caminho extremamente curto, que a espaços tem sido percorrido.
2007 pareceu ter dado origem a uma "nova" forma de estar no Black Metal, essencialmente americana, mas já com tentáculos espalhados por países devotos ao género como França ou Finlândia. E muito embora não se possa falar de um movimento ou cena (como nós críticos/jornalistas tão gostamos), é inegável que bandas como Bone Awl ou Akitsa partilham um mesmo território, sem que tal signifique necessariamente cópia. Esse território parece remeter-se essencialmente numa herança do crust-punk dos anos 80 (e uma banda como Brainbombs é essencial nesta equação), e no uso inteligentemente abrasivo do lo-fi como forma de consubstanciar as composições. Nunca intrusivo, o abandono característico de uma banda como os Germs serve aqui de ponto de partida para um número de bandas que descartando os artifícios que tornam o black metal tão caricatural, almejam a uma seriedade puramente sensitiva. Recusando o uso do corpsepaint e das habituais temáticas satânicas ou depressivas, a misantropia atinge-se recorrendo a uma postura confrontacional e de alto volume, que não destoaria alinhada com o dada/punk/noise dos primeiros Sightings.
Reportando-me a uma linha condutora onde, partindo de premissas herdadas do punk, se encontra o negrume e rispidez dos Darkthrone, parece existir um nome essencial para que tudo isto tome forma. No final de uma década de 90 em que o género se auto-consumia nas suas ambições de grandeza e de pendor épico, foi fundamental o aparecimento do lendário Ildjarn, no reordenar das coordenadas do género numa altura em que a sua capacidade de reinvenção se mostrava moribunda. Foi o tal ascetismo punk que veio dar o primeiro abanão de um "algo" que agora começa a vir à superfície. A sua respiração DIY parece ser uma das formas de sobrevivência, sentindo-se a urgência que hoje aparece tão ligada às movimentações free/noise/drone made in usa. A fluente edição de cassetes, cd-r`s e vinis de edição limitada, é o formato preferencial que escolhem estas bandas, encontrando-se também aqui um outro paralelo com projectos como No Neck Blues Band (atenção a Malkuth, projecto paralelo de dois NNCK virado para o old school black metal), Sunburned Hand of the Man, Robedoor ou Pocahaunted, na emergência palpável que é, afinal de contas, a grande força motriz de projectos com tais características libertárias. Manda a seriedade que não se tome elações precipitadas, para não correr o risco de que o entusiasmo se torne desmedido. Mas, por enquanto, o sangue ainda ferve, e os cinco focos de incêndio aqui descritos são apenas aqueles que, neste momento se mostram mais capazes de manter o manter a fervilhar durante mais algum tempo. Até que a dormência se faça sentir.
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Bone Awl |
He who Gnashes Teeth (guitarra e voz) e He who Crushes Teeth (bateria), são os curiosos pseudónimos adoptados por estes americanos de S. Francisco, que ao longo de 2007 viram crescer o culto em seu redor, às custas de concertos avassaladores e inúmeras edições (espalhadas por editoras como a Hospital Productions ou a Klaxon). O burburinho em torno deste duo, que já chegou a sites de referência como a Volcanic Tongue, torna-os no nome mais forte do "movimento" e com maior possibilidade de virem a aparecer com destaque na cada vez mais influente Pitchfork. O 12" com edição da Nuclear War Now! Meaningless Leaning Mess é um ponto de partida perfeito para se acercar do lo-fi vital em distorção rugosa com que o duo joga na sua criação de temas curtos e incisivos, de riffs herdados directamente do punk em tonalidades nórdicas, e uma voz que mais do que linha condutora, lhes confere uma carga opressiva que não aceita indiferença. Que tudo isto seja feito através de temas memoráveis é apenas uma prova de que o tempo e a justiça os tornarão enormes. |
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Akitsa |
Perante o ataque cerrado algo hermético que caracteriza estes projectos, o duo canadiano Akitsa mostra-se muito mais permeável a influências mais diversas e menos óbvias do que aquelas que alimentam o imaginário dos seus pares. As reedições de Goetie (já analisado neste espaço) e Sang Nordique demonstram a volatilidade da banda, em aproximações ao drone ou a paisagens mais expansivas de carácter ambiental/psicadélico. Os seus alicerces encontram também lugar no black metal/crust de dentes cerrados, mas abrem a boca do lo-fi, para experimentar diferentes abordagens à produção sem que se sinta uma perca de consistência. O recentemente editado La Grande Infamie consegue o feito de habitar o limbo entre a tradição e a experimentação sem que essa ambição seja sinónimo de pretensiosismo. |
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Ash Pool |
Que Dominick Fernow sempre foi um dos maiores impulsionadores do metal actual, seja através da sua Hospital Productions ou dos vários artigos que presta a diversas publicações, já era mais do que sabido. Faria por isso todo o sentido que além do seu projecto noise Prurient, também ele desse o seu contributo musical para o género. Surpreendentemente melódicos, os Ash Pool deixam parcialmente de lado a produção exacerbada de outros congéneres, para se mandarem para dentro de um poço, onde os riffs de inspiração roqueira coabitam com uma voz demoníaca arrancada a ferros, para nos deixar a coçar a cabeça de espanto quando damos por nós a trautear algo tão negro e profundo como aquilo que se encontra na essencial Genital Tomb. |
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Alkerdeel |
Da Bélgica que nos ofereceu óptimas propostas de Ignatz ou Silvester Anfang (com quem partilham a editora Funeral Folk), aparecem estes Akerdeel envoltos em nuvens doom. O fôlego recupera-se em passagens lentas de pendor incendiário, mas sem que se instale qualquer conforto. Luizig peca apenas por ser ligeiramente unidimensional, apesar das tentativas de expandir o seu som para águas mais estáticas. O futuro tratará de resolver estas questões (ou não). |
Ancestors |
Se os Bone Awl se pautam por uma produção tão "no vermelho", que já foram apelidados de Mainliner do Black Metal, este epíteto parece assentar melhor ainda a estes Ancestors. Quase literalmente vindos de lado nenhum, tendo em conta a escassa informação em seu torno, na cassete homónima editada este ano pela Nocturnal Sky Productions, os Ancestors alimentam-se da sua própria distorção, submersos num lo-fi tão subterrâneo como essencial, elevam-se para além das suas próprias limitações técnicas através de tácticas herdadas do noise que acaba por os aproximar do confronto dadaísta. Voz, guitarra e bateria tomam forma de um corpo bestial (de besta, ou não fosse isto metal), que trucidando tudo à sua passagem, não concede espaço a subtilezas para se deixar drenar sujo e cansado. |