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A chama de Elliott Smith apagou-se há dez anos
· 21 Out 2013 · 23:11 ·


Faz hoje dez anos que Elliott Smith deixou o mundo físico para passar a ser lenda. Faz hoje uma década que Elliott Smith se tornou imortal. Para trás ficou uma discografia memorável, um legado de canções que poderá muito bem ser recordado para sempre. O norte-americano nunca apresentou as suas canções em Portugal mas houve quem não tivesse visto nisso um problema. John Almeida, o músico luso-descendente que viveu muitos anos em Londres, é uma dessas pessoas. A convite do Bodyspace, o homem por detrás de Little Friend contou-nos como foi ver Elliott Emith ao vivo no Shepherd´s Bush Green no dia 21 de Abril de 1999:

"Começou com uma ressaca. Uma ressaca enorme. Gigante. Daquelas que ultrapassa o físico, e afecta a mente, nos torna vulneráveis, frágeis, indefesos. Eu sabia que era o dia do concerto. Por isso mesmo senti um profundo ódio por mim próprio ao acordar. A mesma história de sempre. Na noite anterior eu tinha sido invencível, indestrutível, de aço. Nada me iria abater, o dia seguinte ia ser na boa. Porque não irmos todos para minha casa? E então, perpetuamente a controlar um vómito, arrastei-me para fora da cama, tomei banho, vesti-me, olhei pela janela, e preparei-me para sair de casa. Com o bilhete para o concerto do Elliott Smith no bolso, entrei no metro e fechei os olhos, com a esperança vã de adormecer por uns minutos e acordar rejuvenescido, como que por milagre. De Chalk Farm a Shepherd’s Bush são 35 minutos, e embora não conseguisse dormir, fui capaz de furar a névoa mental e relembrar como tinha conhecido a música de Elliott Smith, e de como ela me foi prendendo, enredando, mesmo contra minha vontade, até me obcecar. O álbum foi o X/O. Foi a porta. Música a música, letra a letra. Era o meu refúgio, a minha escapatória quando o ruído, as festas, as conversas vazias e as multidões me faziam encolher e questionar todas as minhas escolhas. Quando entrámos no auditório, eu e o meu amigo (e guitarrista) João, igualmente ressacado e frágil, dirigimo-nos ao bar, e matámos a ressaca com um pint da cerveja mais barata. Olhámos em redor, comentámos os amplificadores em palco e as frequentadoras deste tipo de concertos. Instalámo-nos no meio da sala, atrás da mesa de mistura, e esperámos. Os Quasi, a banda que acompanhava Smith ao vivo, foi adequada na primeira parte, até fantástica, mas não o que queríamos nessa noite. Quando começou o concerto, tínhamos derrotado um pouco a ressaca, mas a fragilidade mental persistia. Pensando nisso agora, não era o estado ideal para ouvir aquela música. Enquanto os temas se foram sucedendo, cada um de nós se foi perdendo cada vez mais dentro de si, hipnotizados pela voz simultaneamente frágil e forte. A certa altura, separámo-nos, propositadamente, para não nos sentirmos tentados a conversar, a comentar, a reduzir aquilo a adjectivos. Alternando entre a banda e momentos a solo, Elliott Smith era sempre genial, instrumental e artisticamente. Conseguia fazer com que centenas de pessoas sustivessem a respiração para que nada se ouvisse durante a "Between The Bars". Sem pedir, convencia-nos a deixar os nossos mundos lá fora, e a entrar no dele. Ao soarem as primeiras notas da "Bled White", senti demasiadas coisas, mas não lutei contra isso, não quis saber quem me via, quem me rodeava. Imaginei que a sensação, se bem que não a música, fosse semelhante à de ouvir o punk rock em 1977. Emoções completamente despidas de artifício, violentas e por vezes desagradáveis. Uma proximidade com o público diferente de tudo o que vira. Uma força cujo motor era justamente toda a fraqueza que nos une como espécie. Foram horas difíceis de descrever, porque não se pode pôr em palavras a sensação de ver o concerto certo, na altura certa, na cidade certa. Muitos já tentaram e alguns conseguiram. Muito melhor do que eu poderei alguma vez fazer. Sei que nunca mais fui o mesmo. Nesse mesmo dia comecei a compor músicas que praticamente negavam a pessoa que fora até então, que surpreendiam quem me conhecia e que me faziam temer o fim, já então inevitável embora ainda longínquo, da identidade que eu usara toda a minha vida adulta. Já tentei contar muitas vezes como foi o concerto, quais as músicas que ele tocou, como me senti. Desta vez não foi diferente: tentei mas falhei. Não chega aos calcanhares do que foi a realidade".

André Gomes
andregomes@bodyspace.net

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