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Rádio pública, um tema em cima da mesa
· 25 Fev 2012 · 01:34 ·


Esperemos que tudo isto seja em vão, inútil e precipitado. Mas perante os rumores de encerramento da Antena 3/fusão com a antena 1 numa rádio onde a música portuguesa existe em exclusividade por decreto sentimos a necessidade de falar com algumas pessoas. Músicos que fazem, exactamente, música em Portugal. Soubemos de tudo isto através do documento apresentado por um grupo de funcionários da Antena 3 – entre os quais Henrique Amaro, autor de, exactamente, um programa dedicado à música portuguesa – em que se pretende discutir dez temas para pensar a rádio jovem de serviço público. E não é que tudo isto dá mesmo que pensar? Resta esperar que, no final, tudo isto não tenha passado de, exactamente, um exercício de pensamento e discussão. Fomos falar com Miguel Nicolau (Memória de Peixe), Hélio Morais (PAUS, Linda Martini) e Tiago Sousa. E aguardamos neste momento mais alguns testemunhos. Só para não deixar isto cair em saco roto, na esperança que tudo isto não venha a ser mais do que uma saudável discussão acerca do que deve ser o serviço público de rádio.

Miguel Nicolau / Memória de Peixe

O termo “cultura†é fundamental para a construção de indivíduos conscientes e críticos. Se a Música é uma linguagem universal e é uma expressão artística, em que todos aprendemos constantemente com a sua história e com o seu presente, independentemente da sua fonte, torná-la exclusivamente nacional é dificultar o que rigorosamente tudo a que nos é externo de ser dado a conhecer aos ouvintes portugueses. Logo aí, se é uma rádio pública e, se vivemos numa democracia, estamos a filtrar o acesso a essa arte e a impedir os próprios ouvintes de construir a sua própria identidade estética. Dar espaço e airplay à música portuguesa, é fundamental, mas monopolizar uma rádio pública com uma única perspectiva sobre a música é fecharmo-nos por completo a uma realidade que sempre foi, acima de todas as nacionalidades, diversa. Há toda uma perspectiva cultural e global que considero imprescindível para o progresso do nosso músico e ouvinte português: aguçar o espírito critico e aumentar o conhecimento é fomentar a cultura, o diálogo e a variedade de opiniões. Tenho o maior respeito à música portuguesa, e gosto mesmo muito dela própria. Mas terei sempre na minha consciência que acima estará a própria Música, na sua matéria prima e na sua essência, Enquanto músico e ouvinte português só posso dizer que não me restringir nem condicionar a minha experiência auditiva, só serviu para potenciar a minha criatividade e aumentar o meu conhecimento. Fez-me humildemente perceber que a música é tão rica, que condicionar o seu acesso seria tornar-me um individuo mais pobre culturalmente. Assim, mesmo participando em projectos cantados em português, inglês ou instrumentais, posso tentar saudavelmente dar o meu pequeno contributo à música portuguesa.

Hélio Morais | PAUS / Linda Martini

100%? Acho ridículo. Da mesma forma que acho ridículas as cotas de mulheres na Assembleia. Percebo que sejam lutas que tenham que ser travadas e que acabe por ter que se impor regras, por falta de civismo. Sou contra a discriminação das mulheres na assembleia, seja ela positiva ou negativa. Acho que numa assembleia não devem existir homens e mulheres, mas sim pessoas capazes. Como somos uma sociedade maioritariamente machista, chegou-se a essa resolução. Mas não encaro isso como uma solução, pois na verdade é uma imposição. E ainda que mude o panorama da assembleia, receio que a mentalidade se mantenha. Com as cotas da música, acho o mesmo. Há muita música portuguesa boa. Mais até que a que diariamente se passa nas rádios nacionais. Se concordo com uma obrigatoriedade de 100% de música nacional numa das rádios? Não! Isso é um regime ditatorial e com isso não posso concordar. Se quem tem poder de decisão acha que há muito mais música portuguesa de valor do que a que é passada nessa mesma rádio, se calhar pode começar por nomear comissões mais alargadas de escolha de playlists, sem pressões das editoras, em vez de impor regimes dictatoriais.

Tiago Sousa

Serviço Público? Mas qual Serviço Público?

O famoso relatório do grupo de estudo do serviço público de rádio e televisão presidido pelo Prof. João Duque, conta com uma proposta a que poucos deram a atenção mediática que foi dada às questões relacionadas com o serviço público de televisão. Na tentativa de reestruturar o conceito de serviço público surge uma ideia peregrina: o serviço de Rádio deveria ver-se cingido apenas a dois canais um que se dedicasse à música e cultura erudita e outro canal que fosse exclusivamente de música e cultura portuguesa.

A ideia é por si só assustadora e mostra mais uma vez o que pode acontecer quando meia dúzia de tecnocratas se juntam para decidir as premonições de determinado serviço. O serviço de rádio em Portugal vive dias de claustrofobia cultural dramática! A cada vez maior homogeneidade entre todas as estações que ocupam o espectro FM em Portugal é absolutamente gritante e devia ser razão de preocupação. Não se pode dizer que os casos da Antena 1 ou da Antena 3 sejam um sucesso absoluto que contrarie esta lógica mas apesar de tudo iam conseguindo incutir algumas abordagens editoriais que já praticamente se extinguiram, como o caso dos programas de autor. Com maior ou menor eficácia, sempre mostraram uma preocupação em manter uma linha editorial diversificada e coerente com a sua missão de serviço público.

O que se passa é que, com estas políticas que nos estão a ser impostas, toda esta realidade verá um futuro ainda mais enviesado e cinzento. Por um lado a opção de supressão da abrangência possível pela existência de duas linhas editoriais distintas, por outro lado a ideia de que o serviço público de rádio tem como obrigação ser o canal de exposição do produto nacional. Ambos estes pontos demonstram uma visão absolutamente castradora e retrógrada.

Se pensamos que, pelo facto de incentivar a programação exclusiva de música portuguesa (seja lá o que isso for), estamos a dar oportunidade de exposição e sobrevivência aos nossos criadores, claramente não percebemos nada de dinâmicas culturais. Esta visão de entrincheiramento cultural é uma ideia perigosamente conservadora e que torna patente uma de duas consequências. Ou o esvaziamento do serviço público para a abertura de novos mercados para a exploração capitalista. Ou um retrocesso gravíssimo a uma ideia folclórica e provinciana sobre o que é ou deixa de ser a cultura nacional cujos efeitos perversos iremos sentir no pulsar da nossa sociedade. Quer uma quer outra visão mostram formas de reagir a esta crise que estão bastante patentes nas diferentes opções governativas que têm sido tomadas. Qualquer uma destas opções acabará sempre com um resultado semelhante: uma menor escolha e um prejuízo do sentido crítico e perspectiva cultural de cada cidadão. Precisamos pois, de recolocar as questões e repensar as formas como estamos a edificar o nosso futuro sob pena de criarmos uma sociedade mais embrutecida e menos justa e igualitária. Foi o que fez um grupo de profissionais da rádio pública ao escrever o seguinte manifesto.
André Gomes
andregomes@bodyspace.net

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