O filme arranca com um excerto de um concerto. A secção rĂtmica que faz o acompanhamento Ă© medĂocre (Marino Pliakas e Michael WertmĂĽller, do trio Full Blast, que passou pelo Parque Mayer há poucos anos), mas o saxofone incendiário do velho Peter Brötzmann faz esquecer tudo o resto. Ficamos especados perante aquele incrĂvel saxofonista, perante a fogosidade daquele sopro, perante aquela energia incandescente, perante aquele som infernal. Lembremos: aquele veterano Ă© um dos mĂşsicos que desde meados dos anos ´60 definiu a improvisação europeia, que transformou a herança do jazz americano numa mĂşsica ainda mais aberta e explosiva. Voltamos ao inĂcio do filme: aquele saxofonista que celebrou em Março deste ano os seus 70 anos de idade ataca o seu instrumento com uma ferocidade inigualável.
Realizado por Bernard Josse, com o apoio do crĂtico francĂŞs GĂ©rard Rouy (entrevistas e fotografias), este Soldier of the Road nunca foge a uma estrutura linear tĂpica de documentário: entrevistas alternadas com excertos de actuações musicais. Mas apesar dessa permanente linearidade o filme nunca perde o interesse. O primeiro convidado a aparecer no ecran Ă© o inglĂŞs Evan Parker, a par de Brötzmann o mais importante saxofonista pĂłs-Coltrane. Há ainda contributos de mĂşsicos como Ken Vandermark, Han Bennink, Fred Van Hove, entre outros – tudo gente quem Brötzmann partilhou a carreira e muitos palcos. E chegam tambĂ©m as actuações ao vivo, registadas entre 2008 e 2009: Chicago Tentet (o incrĂvel grupo “allstar”, que junta Joe McPhee, Paal Nilssen-Love, entre tantos outros), o quarteto (com McPhee, Kessler e Zerang) e o trio Sonore (trĂŞs saxofones do inferno: Vandermark, Gustaffson e Brötz) – atenção, alĂ©m dos momentos no prĂłprio filme, nos extras há ainda mais mĂşsica.
Ă€ medida que o filme vai passando ficamos com a ideia que a abordagem musical que poderia eventualmente ser mais esmiuçada (e poderia abordar melhor a evolução da carreira, relação com outros mĂşsicos, revisitar discos e momentos marcantes, etc.). Ainda assim, nĂŁo falta a referĂŞncia a dois dos discos mais especiais: o explosivo Machine Gun (1968) e o mágico Schwarzwaldfahrt (1977), em duo com Han Benink, gravado (literalmente) no meio da Floresta Negra. AlĂ©m da mĂşsica o filme aborda diversas facetas da vida de Brotzmann: a infância, a actividade de pintor, a vida privada, a relação difĂcil com o pai. Pelo meio disso tudo, o velho Brötzmann tenta encontrar resposta para a sua inspiração: “maybe it´s the blues that everybody has inside”. Aqueles “blues” parecem nĂŁo ter fim.