É sexta-feira e estou no bar do último andar do Hotel Éden, onde Burnt Friedman está hospedado para uma curta passagem por Portugal. Já é final de tarde, e apesar da brisa mais fresca, preferimos ficar na esplanada com uma magnÃfica vista sobre Lisboa, dos Restauradores até ao Castelo.
Este músico alemão é considerado um verdadeiro futurista na criação de música electrónica. A sua imagem de marca é a desconsideração de limites na música, arriscando-se a combinar, através de um sentido de ritmo muito próprio, uma mirÃade de sons que vai do jazz, dub, ou reggae aos ritmos de CaraÃbas e Ãfrica.
À minha frente está um homem alto e magro, que veste t-shirt preta e calças de ganga da mesma cor. Burnt é muito calmo, fala pausadamente, expondo as suas ideias de forma sucinta e sem grande alarido. A sua posição é rÃgida, senta-se direito e mexe-se pouco. Apenas sorri quando descobrimos o gosto comum pelo grupo australiano The Necks (“I have all their albums†diz com um sorriso tÃmido). A conversa – curta, dado o avançar da hora - gira à volta do seu último trabalho,
Can’t Cool (editado este ano), da sua actuação inserida na Bienal Experimenta Design (www.experimentadesign.pt) e da sua música, algo tão particular como indefinÃvel.
Os
teus trabalhos anteriores percorrem um repertório muito diversificado
que atravessa o jazz latino (Con Ritmo), calypso beats (Secret
Rhythms) e o afro-dub do teu último trabalho, Can’t Cool.
No meio de tantas influências, como é que defines a tua música?
Eu não consigo definir a minha música. Só lhe posso chamar
“nova música”. È uma música do futuro que está
a ser inventada agora. Durante a maior parte do ano estou a viajar, para ir
ter com músicos, com contactos que me dão, e é a partir
desses encontros que surge a minha música.
E
achas que há outros projectos no mundo da electrónica que tentam
seguir a mesma direcção do teu?
[pausa para pensar] Não, sinceramente não conheço nenhum
outro projecto que trabalhe da mesma forma. Nem mesmo na Europa.
No teu último trabalho chegaste a trabalhar
com 20 músicos de diferentes países (Argentina, Chile, Nigéria,
Alemanha, etc) e géneros. Como é que conseguiste coordenar todas
essas influências?
Foi um processo bastante natural. Conheci muitos desses músicos através
de contactos de amigos meus, e aproveito as minhas viagens para trabalhar com
eles. Hoje em dia, com as novas tecnologias, é muito fácil trabalhar.
Temos programas comuns de computador, a mesma plataforma de trabalho, o email.
Tudo isso facilita o trabalho.
Quase não precisam da presença física,
não?
Não, isso continua a ser importante. É importante estabelecer
uma ligação, conhecer as pessoas, nem que seja por dois ou três
dias. O que se passou com este trabalho é que muitas das faixas já
estavam no meu computador há três anos. Durante estes últimos
anos recolhi muito material, e acabei só por usar metade. Por exemplo,
com o Patrice, um cantor bastante conhecido na Alemanha, gravei logo quatro
faixas.
Então podemos esperar algo como um Can’t
Cool 2, no futuro?
Sim, mais ou menos. Estou a trabalhar nisso agora. O
Can’t Cool é
um CD que vai muito às raízes da música, que tem como principal
influência África. Neste trabalho tenho a participação
de Abi, que vem da Nigéria e tem trazido muito dessa influência
africana. O meu objectivo é continuar a viajar por África em busca
de novo material.
E nunca pensaste trabalhar com músicos
portugueses?
Não, eu não planeio as coisas dessa forma... “agora falta-me
trabalhar com artistas deste ou de outro país”. A maior parte das
minhas viagens é feita no mundo anglo-saxónico. Costumo viajar
bastante por Inglaterra, pela Austrália, pela Nova Zelândia.
Apesar dessa procura de novos músicos e
influências, nunca deixaste de trabalhar com a tua banda, The Nu Dub Players,
desde o teu primeiro álbum (Con Ritmo). Consideras que eles
são a base da tua música que te permite ir ao encontro de outros
músicos?
Não acho isso. Os Nu Dub Players não existiam quando comecei a
trabalhar em 1999. Eles são o produto da minha imaginação.
Eu sou um programador, não sei tocar nenhum instrumento. O meu objectivo,
quando comecei a trabalhar a minha música, era que os instrumentos de
uma banda reproduzissem sons humanos. Que com uma guitarra pudesse fazer o “hum”
da voz humana [exemplifica soltando alguns “hums” tocando na barriga
para que eu compreendesse melhor]. O objectivo final é chegar aos sons
sexuais. É para isso que trabalho com a minha banda. Por isso considero
que são projectos em paralelo e não uma base.
Mas não é um paradoxo tentar reproduzir
sons humanos através da manipulação do computador?
Sim, é verdade, é um paradoxo. É um paradoxo porque as
máquinas nunca vão poder imitar os humanos. Isso nunca vai acontecer.
Além da tua actividade musical também
geres a tua própria editora, Nonplace (www.nonplace.de). Quais são
os principais projectos da editora?
Agora temos trabalhado muito com Olivier Beige, que é um músico
de Colónia. Na realidade ele e eu vimos da mesma terra. Ele tem feito
o seu próprio trabalho com a sua banda.
O que é que podemos esperar da tua actuação
amanhã à noite?
Amanhã à noite vou tentar fazer um mix de todos os meus álbuns.
Os que estão mais familiarizados com o meu trabalho vão de certeza
reconhecer algumas faixas. Quero também apresentar ao vivo, pela primeira
vez, uma faixa nova, que espero sinceramente que resulte, mas que ainda não
sei qual vai ser o impacto final. Além disso, nesta actuação
não estou com o Jaki [Liebezeit, o baterista dos Can que costuma pontificar
nas actuações de Friedman e que tocou para o álbum
Playing
Secret Rhythms, de 2002). Vou ter lá a sua bateria, mas ele não
vai estar lá.
Então
quem é que vai tocar a bateria?
Ninguém, a bateria está em sentido figurado. Tenho toda a actuação
dele já gravada num mini-disc. O que se vai passar é que vou ter
cinco mini-discs a funcionar em simultâneo, e vou programar por cima dessas
gravações. Vai ser algo complicado, porque os mini-discs têm
de estar todos sincronizados e não se vai poder voltar para trás.
Mas acho que vai resultar bem. Também vai lá estar o D-Fuse, um
amigo meu de Londres, que vai apresentar uma instalação de vídeo
que acompanha a música.
Só espero que as pessoas não fiquem por lá a passear de
copo na mão, a conversar, mas que prestem atenção à
música. Gostava de voltar a Portugal para um evento maior, onde pudesse
trazer mais músicos. Espero voltar ainda este ano, ou no próximo.
O que te falta criar? Visto de fora parece que
já experimentaste de tudo…
Não, acho que ainda falta muito para criar. Acho que não há
limites à criação. Não tenho medo de experimentar
coisas novas e de trabalhar com material novo. Há ainda muito por descobrir,
não me sinto nada limitado…
E
o que é que pensas da indústria musical, que parece viver mais
do ‘revival’ que da criação de nova música?
Eu acho que é uma situação muito triste, os músicos
viverem da música do passado. A palavra que encontro para descrever essa
situação é “redundância”. É redundante
continuar a recriar a música. Eu continuo a querer criar coisas novas.
Voltei
a encontrar Burnt na noite seguinte, no restaurante panorâmico de Monsanto,
para a sua actuação na Noite Super Panorama, integrada na bienal do
Experimenta Design em Lisboa. Por uma noite o restaurante foi transformado numa
nave espacial gigante, para receber uma série de DJ’s numa festa
em que se pretendia encerrar a semana inaugural da Bienal. Os pisos do restaurante
foram remodelados para acolher pistas de dança e bares.
Vi-o
passar com ar algo aluado, entre o primeiro e segundo piso, e perguntei-lhe
quando ia actuar. “Oh, I think at 8 a.m… They‘re running late”.
Não foi às oito da manhã, mas quase. Já passavam
das quatro quando Burnt começou a actuar no segundo andar, para um público
meio receptivo. Muitos já se tinham ido embora e a maioria estava no
andar de baixo, onde a música house continuava a atrair mais gente.
A actuação foi intimista. Conseguia-se discernir, na música
de Burnt, todas as camadas referidas na entrevista. Ali estava o beat das Caraíbas,
acolá um trombone, ou o som de batuques e tambor que acabou por transformá-la
em algo muito tribal. Os mais atentos sentavam-se nos degraus do palco, mas
a maioria - como previra o músico - estava a dar as suas voltas de copo
na mão, a conversar. Ruídos interferiam com a música; quando
esta baixava de intensidade, eram as vozes das pessoas que se ouviam, como se
tivéssemos voltado ao tempo do restaurante. Uma pena…