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Cavalheiro
Cavalheiro de Falsa Fé


Cavalheiro, projeto de Tiago Ferreira, está de regresso aos discos com Falsa Fé, que sucede a Mar Morto, segundo longa duração da carreira, lançado em 2015. Pelo meio, três EPs depois da estreia, com o LP Primeiro, em 2010. O músico do Porto, “exilado” em Braga, regressa em fevereiro de 2018 depois de apresentar o anterior e de um processo de produção dividido com Ricardo Cibrão, com um disco que é “o trabalho mais pensado e demorado em todos os aspetos”.

O resultado é um tratado sobre a ideia de falsa fé, que vai da traição ao próprio até à “desilusão da vida adulta” e a “maior fraude de todas, a das certezas, neste caso da falta delas”, com um disco que acaba por somar ainda mais perguntas a “um conjunto pequeno de questões que ambicionava responder”. Cavalheiro já tem a agenda de concertos preenchida para os próximos tempos e vai atravessar o país, começando com o Passos Manuel, no Porto, a 15 de fevereiro, antes do Theatro Circo, em Braga (10 de março), o lisboeta Musicbox (23 de março) e o Museu Abade de Baçal, em Bragança, a 30 de março, antes de passar por Coimbra e pelo Teatrão (12 de abril).
Depois de quase três anos desde Mar Morto, como foi regressar ao estúdio e à conceção deste novo disco?

Este foi, claramente, o meu trabalho mais pensado e demorado em todos os aspectos. Tentei fazer algumas inflexões, quer nas líricas quer nas músicas, o que não quer dizer que não seja um trabalho tipicamente meu. Estas mudanças levaram o seu tempo, acabo por editar oito temas de um total de quase 30 em que trabalhei e que por uma razão ou por outra descartei. A gravação em si foi relativamente breve, pouco mais de uma semana, e decorreu na nossa sala de ensaios, onde nos sentimos confortáveis e onde temos condições para trabalhar com a calma necessária. A fase da gravação dos discos é a mais breve, quando comparada com a criação ou a apresentação ao vivo, mas é seguramente a minha favorita.

Conta-nos o processo de conceção e criação de Falsa Fé, desde a ideia e conceito até ao que procuravas no que toca ao lado instrumental e às letras.

A primeira coisa que estabilizo quando começo a trabalhar num disco novo é usualmente o seu nome. Desta vez, falsa fé veio de ouvir a expressão tantas vezes e de a decidir adaptar a uma espécie de fase da vida em que estava e ainda estarei com certeza. Em termos instrumentais, a coisa mudou bastante porque todas as canções foram originadas em teclados, sobretudo em Mellotron, e a partir daí ia construindo toda a outra instrumentação. Poderá parecer um disco de guitarras, mas é essencialmente um disco de teclados, pelo menos para mim. Fui durante muito tempo fazendo as demos em casa, tocando todos os instrumentos e depois mostrava ao Ricardo Cibrão, que me ia ajudando, até estarem terminadas.

© Carlos Lobo

No plano das letras, qual foi a motivação por detrás do tema da traição e falsa fé?

Falsa fé é o acto de nos trairmos a nós próprios com expectativas desmedidas sobre o que viremos a ser na vida. É a desilusão da vida adulta, ainda que ela possa ser plena e válida, é uma sombra do que pensei que seria quando era criança. E para mim, a maior fraude de todas é a das certezas, neste caso da falta delas. Se tinha um conjunto pequeno de questões que ambicionava responder, a única coisa que fiz foi engrossar essa lista com muitas mais.

Há já uma série de concertos marcados em várias cidades, do Musicbox ao Theatro Circo e o Passos Manuel. Que expetativas para a apresentação ao vivo do disco?

Tenho a sorte de contar com uma belíssima banda para me acompanhar ao vivo e estou bastante otimista relativamente aos concertos que por aí vêm. Apenas entrou um músico novo, o João Oliveira, que curiosamente já tinha tocado comigo durante uns anos, por isso estamos bastante familiarizados enquanto banda.

Tens planos para a apresentação do disco noutros países?

Não sei até que ponto tocar para pessoas que não falem ou entendam português faz algum sentido, e isso cerceia muito o meu público. Diria que no máximo é peninsular, o que não quer dizer de forma alguma que não gostasse de tocar lá fora.

Como viste a receção dos dois primeiros singles, em especial “Bundy”?

Estava parado há muito tempo, e a “Bundy” veio de certa forma relembrar algumas pessoas que ainda estava vivo. O segundo single, “Remocei”, acho que é mais facilmente aceite pelas pessoas. De qualquer das formas, até agora tenho tido muito boas reações ao que fui apresentando.

© Carlos Lobo

Tens a intenção de produzir material de estúdio de forma mais recorrente? Há já alguma coisa no horizonte?

Na minha cabeça estou já a pensar no próximo disco e no que gostava de fazer, não sei quando sairá, mas já tenho uma vaga ideia de como será. Tenho um pequeno projeto paralelo com um amigo chamado José Pedro Vinagre, Malapata, com quem tenho escrito belíssimas canções e que gostava de editar um destes dias.

Encontraste diferenças no mercado discográfico e de promoção e venda do disco em relação aos trabalhos anteriores?

Encontrei, claramente, e devo confessar que não sei de todo dançar esta nova música. Quanto muito, eu sei escrever canções e depois cantá-las, o que hoje em dia parece ser manifestamente pouco. Felizmente, estou a trabalhar com um management novo, da Leitura Tropical, que me tem ajudado imenso a navegar esta contemporaneidade.

Quais as diferenças entre a audição do disco e a atuação ao vivo? Qual a abordagem que fazes aos palcos?

Creio que a atuação ao vivo é muito mais intensa do que no disco, com tudo o que isso tem de bom e de mau. Eu tenho um terrível hábito de tocar alto e enquanto isso é fácil de controlar em disco, ao vivo por vezes perco a mão. Ainda assim, tento fazer uma reprodução fiel das canções ao vivo.

© Carlos Lobo

Qual é o processo que atravessas até concluir uma canção, ou um álbum? Que abordagem utilizas?

Há essencialmente dois processos que utilizo na minha composição, ambos reveladores do músico acidental que sou. O primeiro é uma espécie de transposição da teoria do “macaco infinito”, em que toco aleatoriamente um instrumento até que algo me soe bem, construindo depois a partir daí. O outro é um pouco mais místico e raro, e resume-se a uma espécie de epifania musical. Posso estar no supermercado e ocorre-me uma canção, quase completa, altura em que tenho que correr para casa e registá-la de alguma forma, antes que se esfume na minha cabeça e a perca. Em termos de letras, estas surgem sempre depois da música estar terminada, e são sempre uma consequência desta. Creio que serei um músico mais interessante do que um letrista, razão pela qual tenho que esperar para que as músicas me digam sobre o que devo escrever.

O espaço parece um tema recorrente nos teus trabalhos com canções como “Bom Jesus” a remeterem para isso. Há locais que servem de inspiração no teu trabalho?

O espaço físico não me diz grande coisa, aliás o “Bom Jesus” é sobre tudo menos o Bom Jesus do Monte. Acho que fico mais interessado pelas pessoas, pelo que sentem e como se comportam. Basta olhares em teu redor e consegues ver muita coisa interessante. É isso que me inspira no fundo, pessoas a viverem as suas vidas, calha que por vezes uma dessas pessoas sou eu.

Como pergunta cliché, podes apontar alguns músicos ou projetos musicais que te tenham inspirado na orientação musical e lírica de Cavalheiro?

Curiosamente dois músicos de Sheffield, o Richard Hawley e o Jarvis Cocker, pesaram fortemente neste disco, mas há muitos mais. Um músico que comecei a adorar nos últimos anos foi o Julio Iglesias, e acho que ele também influenciou muito o que ando a fazer agora.


Simão Freitas
spfreitas25@gmail.com
12/02/2018