bodyspace.net


Théo Ceccaldi
Chegando mostarda ao nariz do jazz


Um ano depois, o violinista Théo Ceccaldi volta a tocar no Anfiteatro ao Ar Livre da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. É já esta terça-feira, às 21h30, que o músico francês se apresenta ao público do Jazz em Agosto como líder do quarteto Petite Moutarde. A actuação, que deverá centrar-se no homónimo álbum de estreia, será acompanhada pela projecção de filmes surrealistas dos 1920s, como películas de Man Ray, Marcel Duchamp e René Clair. O músico explicou ao Bodyspace como nasceu o fascínio por esse período do cinema e qual a importância de ser distinguido por uma publicação francesa, entre outros assuntos. Mas Théo Ceccaldi começou por recordar a passagem pela edição do ano passado do festival lisboeta. Segue-se a conversa mantida via email com um dos mais jovens e atarefados valores do jazz europeu.
A Orchestre National de Jazz, de que também fazes parte, tocou no Jazz em Agosto 2015. O que recordas dessa noite de Verão?

Foi um noite soberba e a última noite do festival do ano passado... se bem me recordo. Descobri a Fundação e aquele jardim magnífico que se ilumina com o cair da noite. Foi um grande momento poder tocar no meio de toda aquela vegetação impressionante. Toda a orquestra ficou muito emocionada por poder apresentar aí o trabalho “Europa Berlin” pela primeira vez em Portugal.

Desta vez, voltas como líder do Petite Moutarde. Porquê “moutarde”? Querem chegar a mostarda ao nariz do jazz?

Sim, exactamente. Esse nome surgiu-nos depois de várias sessões com a Alexandra Grimal [saxofone e voz]. Brincámos com o facto de tocarmos com instrumentos pequenos uma música poderosa e picante. Em França, diz-se “petits mais costauds” [tradução livre: pequenos mas valentes], daí “Petite Moutarde”. Depois, no disco, ainda demos nomes como “Petite Harissa”, “Petit Chipotle” e mesmo “Petit Gingembre” às canções.

A actuação será acompanhada por filmes surrealistas dos anos 1920. O que tem esta época do cinema de tão especial para ti?

Eu recebi uma encomenda de um teatro de Paris sobre realizadores que filmaram a cidade. Então, voltei atrás no tempo e visionei tudo o que podia, mergulhando nos grandes realizadores franceses... Leos Carax, Jean-Pierre Jeunet, depois Truffaut, Godard... até que cheguei a uma pequena jóia de René Clair, “Entr’acte”, um filme de inspiração dadaísta que me interpelou de imediato pelo humor, o absurdo, a revolta e a pujança poética.

© Boby Allin

O que fazes é uma homenagem ao surrealismo?

Depois desta descoberta, cavei mais fundo e aproximei-me dos trabalhos de Man Ray, Marcel Duchamp, Antonin Artaud, André Breton, Erik Satie, Salvador Dalí, Paul Éluard. Por isso é que resolvi integrar trabalhos de Duchamp e Man Ray na criação visual de Petite Moutarde. Chegámos mesmo a montar uma cenografia muito simples que nos fazia viver em cena, inspirando-nos no espírito “bricolage” da época. Com o Jean-Pascal Retel, que trabalhou nos vídeos, queríamos prestar tributo às imagens confrontando-as com música de hoje.

E agora, no jazz, quem é que segues com particular atenção?

Acho que todos os trabalhos feitos hoje por colectivos de músicos por toda a Europa são apaixonantes. O Tricollectif, de que faço parte, mas também COAX, Grolektif, Umlaut, JazzKollektiv Berlin, entre outros, recuperam o legado de músicos aventureiros que descompartimentam estilos, quebram barreiras entre artistas e acabam por beneficiar toda a cena actual. Aqui em Portugal, vocês têm a sorte de ter músicos criativos e hiperactivos que fazem as coisas avançar e fazem a música avant-garde portuguesa irradiar por todo o mundo. A JACC Records, a Cipsela Records e a Clean Feed são editoras de que eu gosto muito e de que estou muito próximo.

Começaste na música clássica mas o jazz prevaleceu. Porquê?

Sempre fiz as duas coisas. Desde muito cedo, os meus pais encorajaram-nos, a mim e ao meu irmão Valentin, a termos mais do que o Conservatório Clássico, uma prática mais criativa, baseada na improvisação e no prazer de tocar em grupo. Aos 12 anos, começámos a formar as nossas primeiras bandas de rock e a tocar as nossas próprias composições. Mais tarde, senti necessidade de me isolar mais na música clássica e na música contemporânea para ir ao fundo do aperfeiçoamento do instrumento que me parecia indispensável. Ao longo de 20 anos, a música criativa, a improvisação, a composição agarraram-me e nunca mais me soltaram. Esta emoção de criar e esta excitação de procurar novas formas, timbres, instrumentações, modos de tocar, nuances, assim como encontrar sempre músicos novos, são hoje coisas indispensáveis para mim.



Que importância teve o prémio revelação que a Jazz Magazine te atribuiu em 2014?

O prémio foi apreciado pelo seu justo valor, ou seja, como um incentivo a cavar o sulco da minha própria música e a continuar a trabalhar, a procurar, a sair do tractor, como diria [a contrabaixista francesa] Joëlle Léandre. Chegou num momento da minha vida em que se passam muitas coisas musicalmente. Toco actualmente em muitas formações francesas como a Orchestre National de Jazz, Quatuor IXI, toco com a Joëlle Léandre, as formações do Tricollectif, com o Louis Sclavis, Vincent Courtois, Bruno Chevillon... e começo também a colaborar com um grande número de músicos europeus, o que é muito importante para mim. Christian Lillinger, Hans Lüdemann, Ronny Graupe, Daniel Erdmann na Alemanha, Giovanni Guidi, Paolo Damiani em Itália... E depois a magnífica e muito activa cena portuguesa de hoje: Luís Lopes, Marcelo dos Reis, Luís Vicente, Hernâni Faustino, Rodrigo Pinheiro, Gabriel Ferrandini… 

És membro de muitos colectivos. Como consegues gerir a sua agenda? Não é difícil?

Não fale sobre isso com a minha namorada! Sim, por vezes é muito difícil encaixar entre os concertos, as residências artísticas, as gravações. É sempre excitante passar de um repertório para outro todos os dias mas, por vezes, é importante arranjar recursos para recarregar as baterias e as energias criativas. Vou tentar ser menos hiperactivo nos próximos anos... ou então não!


Hélder Gomes
hefgomes@gmail.com
08/08/2016