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Natasha Llerena
Dar tempo ao tempo


A carioca Natasha Llerena tem apenas 24 anos mas o seu disco de estreia, fruto de quatro anos de trabalho, parece indicar-nos que o seu percurso musical começou há muito mais tempo. Influenciada por referências diversas da música brasileira, africana, árabe e ibérica, a brasileira desenvolveu um trabalho de pesquisa em parceria com o produtor musical Eduardo Andrade. Canto sem pressa, assim se chama este disco, é um documento apurado, um trabalho de quem sabe muito bem o que quer para si.

Numa entrevista em tudo reveladora, Natasha Llerena falou-nos do seu processo de criação, das suas influências, dos músicos que a rodeiam e até da conturbada situação política actual no Brasil. Aprendam com ela: às vezes vale mesmo a pena dar tempo ao tempo.


Leio que tens referências da música brasileira, africana, árabe e ibérica. Como é que isto nasce? Tem a ver com a tua formação musical ou com a tua curiosidade?

Minhas referências são muito diversas. Mas considero que para esse trabalho especificamente essas foram as mais importantes para a construção musical do disco. Música brasileira sempre fez parte da minha formação, é o meu principal alicerce, está totalmente dentro de mim, e me influenciou muito principalmente na forma de compor. Mas considero que a construção da minha musicalidade também passou muito pelo que conheci da música moderna de Cabo Verde. Artistas como Tcheka e Mayra Andrade são grandes referencias para mim. De curiosa, e pela oportunidade que tive de assistir shows de artistas como Rokia Traoré, Oumou Sangaré, Fatoumata Diawara, Toumani Diabaté, acabei por me interessar mais e mais pela música africana em geral. É um universo muito vasto esse, tenho muito a descobrir ainda, mas a sonoridade de todos esses artistas que mencionei me despertam muito interesse. No último ano, me tornei uma curiosa do fado. Mais do que do estilo musical, vidrei na técnica do canto. Não tem como não ficar encantado com a precisão daqueles vibratos e melismas. Foi uma experiência e tanto para mim ficar imitando aqueles cantores, para tentar me aproximar um pouco daquele universo, que sentia ser tão distante de mim, mesmo a família da minha mãe sendo inteira de Portugal, inclusive ela. Tenho sangue português, mas nunca tinha me aproximado dessa música. Foi uma surpresa enorme, e um grande prazer descobrir esses cantos. Me fez crescer muito como cantora, e acabei por levar muito disso para o disco. Ainda nesse universo ibérico, tenho grande admiração pela música flamenca. Os arranjos, os gritos roucos, o violão, as palmas, e como tudo conversa, me toca. Tudo aquilo que toca no fundo do meu coração, eu considero uma referência. Acabo pegando um pouquinho emprestado para a minha musicalidade. Quanto a referência árabe, acabei por me interessar por algumas coisas depois das trocas que tive com o produtor musical do disco Eduardo Andrade. Ele escutava alguns sons da região que eu percebi que o influenciavam muito na escolha de instrumentação e arranjos. Foi nessa pesquisa que acabamos por trazer para o disco alguns instrumentos muito usados na música árabe: frame drum, daf e riq.



Desde a descoberta da música até aos dias de hoje, como foste construindo a tua voz? Sei que fizeste parte da Banda Novíssimos…

Sim, comecei com os Novíssimos. Eu e mais 8 meninos. Eu era muito jovem, tinha 16 anos. Nos tornamos não só um grupo musical, mas um grupo forte de amigos. Frequentávamos muito a Lapa, aquelas noites de forró, samba, shows que contavam com grandes músicos cariocas. Toda semana estávamos lá, e com certeza eu aprendi muito sobre música nesses ambientes. Eu ia para vê-los tocar, para conhecer novas músicas, perceber os arranjos, e de praxe ainda dançava muito (o que acabou por influenciar a minha formação como artista também, pois sou formada em dança). Foram dois anos vivenciando isso, e sempre depois da noitada, íamos para casa de um dos integrantes da banda, o Alberto Americano, para ficar tocando música até de manhã. Fiquei dois anos no grupo, fizemos shows em diversas casas no Rio de Janeiro, mas decidi sair para começar o meu próprio caminho, que na verdade ainda era muito escuro. Eu era apenas cantora, e os meus principais parceiros musicais eram os meninos da banda. Mas a minha vontade era descobrir novas pessoas, novas coisas. Foram mais dois anos que tive que trilhar para me estruturar, buscando encontrar a minha verdade como artista. Nesse tempo entrei para a faculdade de música, curso de Arranjo Musical na UniRio. Adorava, até descobrir a Faculdade de Dança Angel Vianna. Sempre tive interesse e facilidade com a dança, mas depois de descobrir essa faculdade, que trabalha a dança a partir da consciência e da sensibilização corporal, percebi que ali eu seria uma artista mais completa. Foi lá que me formei. O que engraçado é que assim que saí da faculdade de música, eu comecei a compor. Parece que alguma coisa destravou dentro de mim. Eu já tocava violão, já tinha um bom conhecimento teórico, já era cantora, mas não tinha experimentado ainda compor. Um dia tocando violão, algumas coisas foram surgindo, e só a partir de então que comecei a encontrar a minha verdadeira voz dentro desse desafio-delícia que é ser artista. Eu fazia as melodias e harmonias e mandava a música gravada em voz e violão para o meu parceiro letrista, o Lucas Noleto. Ele me enviava de volta uma música letrada. O processo sempre foi fácil, lindo, poético, foi um momento de muita descoberta, nos tornamos muito parceiros, amigos, curiosos dos processos da vida, intrigados com as questões humanas, querendo melhorar o que havia de ruim ao redor, e percebendo que isso dependia sempre de nós mesmos. Para termos um entorno melhor, era necessário se perceber, se transformar e mudar padrões que carregávamos, hábitos ruins que eram intrínsecos a nós, seres humanos, por diversos motivos... A minha voz passou a querer falar sobre isso: sobre a importância de se observar, de se conhecer para se viver em paz. Foi bom poder buscar isso internamente, e aos poucos ir descobrindo como construir isso dentro da minha carreira.

Como foi chegar a este primeiro disco? Demoraste quatro anos a chegar a ele…

Esse disco foi um grande processo de transformação e amadurecimento. Foi como uma jornada do herói (risos). Digo que o caminho para chegar até esse disco começou quando comecei a compor. Pra mim não faz o menor sentido trabalhar, viver, sem sentir que há um propósito. Preciso sentir no meu coração, preciso que ressoe comigo. Dentro do meu caminho, cantar somente músicas dos outros não me preenchia. Por isso, começar a compor foi um verdadeiro encontro comigo mesma. Neste período fértil de criação, me aproximei de um parceiro chamado Dalus Gonçalves. O Dalus é músico e compositor, e tem músicas bem bonitas. Vi ele tocar a primeira vez e me lembrou o Andy McKee. Muito interessante. Tocamos juntos um tempo, acompanhada por outros músicos, e comecei a experimentar as minhas músicas nos palcos. Fizemos alguns shows aqui no Rio, mas ainda sentia que não era exatamente aquilo que queria firmar. Sentia que eu ainda precisava crescer, e que as músicas também poderiam ganhar mais contorno, mais identidade. Na imensa vontade de querer gravar um disco, comecei a buscar um produtor musical. Passei por algumas pessoas, mas o grande encontro mesmo foi quando comecei a trabalhar com o Eduardo Andrade. Já nos conhecíamos, ele era amigo de alguns amigos, mas foi depois dele ir num show meu e de trocarmos um pouco mais, que percebi que ele era a pessoa certa para o que eu estava procurando. Eu não imaginava o que iria acontecer desse encontro. Foi uma explosão que só agora, depois de dois anos e meio, com o lançamento do disco está se assentando. Eu me apaixonei por ele, completamente. Ele me tocou profundamente. Começamos por compartilhar nossas referências. Eu apresentei bastante música brasileira para ele (já que a formação musical dele passa por outros cantos), e ele me apresentou uma enxurrada de sons fantásticos, como Avishai Cohen, Lokua Kanza, Zap Mama, José Gonzales, e muitas outras coisas. Ele percebeu que o que eu ouvia eram sons com muita percussão, e foi a partir daí que começamos a buscar o conceito musical do disco. Foi uma longa, divertida, intensa e cansativa viagem. Muitas horas de estúdio, muitas noites viradas, montamos um show nesse meio do caminho onde a gente pôde experimentar bastante os arranjos, experimentamos muito mesmo, tivemos muitas ideias, cortamos algumas, fomos montando cada camada, realmente tivemos muito cuidado, muita escuta nesse processo. E nos apaixonamos de fato, fomos morar juntos, e agora estamos construindo uma família. Eu cresci muito, amadureci como nunca havia amadurecido antes, como ser e como cantora. Realmente esse encontro com o Eduardo me potencializou muito. Quando iniciamos as gravações, depois de captar o dinheiro para a realização do disco através de crowdfunding, já tínhamos toda a pré produção estruturada, já sabíamos muito o que queríamos, mas sempre abertos ao que os músicos tinham para nos oferecer de suas experiências. Tudo o que havíamos programado foi ganhando vida quando tocados pelos músicos incríveis que chamamos para o disco. E no meio de todo esse processo, eu engravidei. Engravidei uma semana depois que as gravações começaram. Então vivi um longo período de gestação do disco, que acaba de nascer, e do bebê, do José, que vai nascer daqui a algumas semanas.



É daí que vem o nome do disco? Desse longo processo?

Sim. Na verdade ‘Canto Sem Pressa’ é o nome de uma música minha que está no disco. Inicialmente não queria que o nome do disco fosse o nome de uma música, pois acho que todas as músicas tem uma importância semelhante para mim, e não havia razão em dar maior visibilidade a uma especificamente. Mas na busca de um nome, perguntando opinião pro Dudu e para Bela Souza (produtora que trabalha comigo), os dois mencionaram o nome dessa música como uma possibilidade. Fui pensar sobre o assunto, e quando percebi que o processo de construção do disco falava sobre um tempo alargado, onde cada etapa necessitou muita tranquilidade em seu florescer, achei que calhava muito bem intitular o disco dessa forma.

Fala-me das várias colaborações deste disco, daquilo que cada uma trouxe ao álbum…

Tudo começa com o Lucas Noleto, o principal letrista das minhas músicas. Ele conseguiu mesmo traduzir em palavras aquilo que as minhas melodias diziam. Foi algo muito lindo de ver e de vivenciar. Construiu comigo a mensagem geral do disco. Os músicos que participaram da construção dos arranjos quando estávamos montando os shows. Michel Nascimento, Alexandre Berreldi e Pedro Amparo. Com eles a gente pôde experimentar ao vivo os timbres, as poliritimias, o que funcionava e o que não dentro do nosso conceito musical. Eles se entregaram muito ao projeto, acreditaram de verdade e gravaram também no álbum. Béla Carpena, uma grande amiga, irmã, que foi a diretora de arte e fotógrafa do projeto. Ela é sensível, ela tem uma escuta gigante, ela se entrega no processo, é profunda, usa muito de sua intuição para se guiar no caminho. Isso pra mim é essencial... Com ela não tem tempo ruim, faz o que deve ser feito, coloca a mão na massa, mão na terra, carrega tudo pra lá e pra cá e está sempre sorrindo. Trabalhar com gente assim é um presente da vida! Vivian Melchior e Ana Carolina Bolshaw, as designers que fizeram o projeto gráfico do CD. Conseguiram unir todas as nossas ideias e vontades dentro do encarte do disco, que resultou também em outros desdobramentos visuais. Entenderam perfeitamente a nossa forma de trabalho, de troca, de escuta, e sempre tinham em mente fazer o melhor trabalho dentro do que era possível. Foi muito prazeroso esse processo com elas. Há também os 181 contribuintes do projeto de crowdfunding que possibilitaram a gravação desse disco. Foi uma campanha linda e bem-sucedida e um grande ‘empurrão’ para a realização desta etapa. E coloco por fim, Eduardo Andrade, produtor musical, arranjador, engenheiro de gravação e mixagem do disco. Na verdade ele é o grande pai desse projeto. Esse disco é mesmo uma parceria nossa. A alma dele está ali, ele se deu muito, se entregou muito, foi além de todos os limites. Ele trouxe essa excelência técnica na produção e execução de todas as coisas, tem uma visão musical que eu considero brilhante. Ele é um produtor musical maravilhoso, ousado, que se permite. É uma aventura incrível trabalhar com ele.



Como achas que este disco se insere no mapa da música brasileira?

Acho que se insere no mapa da música brasileira pelo simples fato de ser feito por uma cantora e compositora brasileira. Mas não saberia te dizer exactamente em que estilo específico ou a que grupo pertenço dentro dos mais variados estilos que existem na nossa música. Sou muito influenciada por cantores e compositores brasileiros, sou feliz por poder ter escutado tão boa música dentro do meu país, mas quando fui fazer o meu percebi que saí misturando um monte de coisas diferentes do mundo, não se limitando ao meu território. Tenho muita dificuldade de categorizar a música que faço, e as vezes acabo falando ‘world music’, apesar de não gostar tanto desse termo, por achar muito abrangente também. Estou ainda vendo a repercussão do disco aqui no Brasil, e vendo aonde exactamente este trabalho pode se inserir, até mesmo o público que está se construindo, isso ainda estou a descobrir.

Li que este disco nasceu apoiado por uma acção de crowndfounding. Foi um empurrão importante para o tornar realidade?

A corrente que se cria em uma acção de crowdfunding é super positiva! Cria-se uma rede de pessoas que apoiam seu projecto e o querem ver pronto, então essa força e expectativa, com certeza, dão muita energia para as coisas acontecerem. Fizemos o show de lançamento recentemente, tivemos casa cheia, e uma parte do público eram os contribuintes do projecto. Eles ficam curiosos para ver o trabalho ganhando corpo, ganhando forma...

Que vozes brasileiras da actualidade admiras realmente? Quem é que te inspira diariamente na música brasileira?

Confesso que hoje em dia as vozes que mais me inspiram não são brasileiras. Carminho, Regina Spektor, Silvia Perez Cruz, Mayra Andrade, são cantoras que escuto muito e me influenciam muito no modo de cantar. Mas agora, está vindo uma nova geração de cantoras conterrâneas que gosto demais, e que tenho grande admiração: Julia Vargas, Daíra Saboia, Juliana Linhares, Luiza Sales, são cantoras de grande talento... Gosto muito de ouvi-las cantar.



É fácil organizar uma digressão para mostrar o disco pela maior parte do território brasileiro? Como funciona tudo isso?

Isso ainda estou a descobrir. A vontade de levar a minha música não só a outros territórios brasileiros, mas para o mundo todo, é imensa, claro. Temos planos, metas e ideias para poder circular e estar tocando, fazendo música... Mas estou indo aos poucos. Depois que engravidei percebi que vale mais um passo de cada vez. Estou sentindo cada movimento e isso me faz entender melhor por onde seguir. Algumas pessoas chegam para mim me falando como eu deveria fazer, como deveria ser, mas confesso que ainda estou descobrindo os caminhos por onde esse trabalho vai trilhar. Buscamos estar sempre conectados com nossa arte, com a clareza na mensagem, com a entrega, com a dedicação e trabalho intenso. E acredito que de pouco em pouco, dentro desse propósito de ser verdadeiro em todas as relações e principalmente com o trabalho artístico, os caminhos vão se abrindo, as oportunidades vão chegando. Agora estou sentindo as primeiras reverberações pós lançamento digital e pós show de lançamento. Já com o show pronto vamos buscando criar espaços e oportunidades para poder rodar o mundo!

Como olhas para o que se está a passar no Brasil nos dias de hoje? Politicamente falando…

Estamos vivendo um momento muito delicado dentro do cenário político brasileiro. A cada dia que abrimos os jornais nos deparamos com notícias que dão nó na garganta. Agora estamos sob um governo ilegítimo que está no poder por esquemas e articulação política, e daí percebemos a fragilidade da nossa democracia. A população está indo às ruas, e acho que nunca se discutiu tanto sobre política nos bares, nas esquinas, nas escolas, nas ruas, na internet, desde que me entendo por gente, e acho isso muito positivo, pois em algum momento nós, brasileiros, deveríamos olhar profundamente para essa questão. São muitos e muitos anos de corrupção, de políticos que só governam pensando em uma parte da população, de esquemas, de propinas, e com certeza queremos todos dar um basta nessa situação. Mas é delicado, pois quando começaram as investigações mais recentes, parecia que finalmente uma real mudança aconteceria, mas depois nos deparamos com um processo perverso, com uma seletividade nas investigações, que ilustrava um interesse em só afastar alguns políticos específicos, e não exatamente acabar com a corrupção, como parecia ser o propósito da operação Lava Jato. Como pode o Eduardo Cunha, um dos maiores corruptos brasileiros, presidir um processo de impeachment? Quando os deputados e os senadores foram votar a favor ou contra este processo, só se ouvia sobre os interesses pessoais de cada um, junto de um discurso contra a corrupção. A grande contradição é que muitos desses estão sendo investigados, e comemoravam previamente a ascensão de um candidato ficha suja. É uma situação muito complicada e sinceramente muitas vezes me sinto de mãos atadas nesse processo todo. O que penso e almejo politicamente está longe de ser real dentro do Brasil. Ir para as ruas, lutar, se expressar com certeza são ações muito importantes dentro do cenário atual. Esperamos que a pressão popular possa modificar o cenário político brasileiro, para conseguirmos implementar uma real reforma política. Quem sabe um dia a gente vai poder viver num país governado por aqueles que tem o bem-estar do povo como seu maior interesse, e não mais vermos com tanta recorrência essa palhaçada que vivemos diariamente.


André Gomes
andregomes@bodyspace.net
20/05/2016