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Mr. Herbert Quain
Eu não me esqueci de me esquecer de ti


Manuel Bogalheiro é tudo menos uma personagem fictícia. Nascido há vinte e seis anos, estudou guitarra clássica no conservatório mas cedo se voltou para as possibilidades infinitas dos computadores, inspirado por nomes como Portishead e Massive Attack. Forgetting Is A Liability é o seu mais recente disco, que segue a veia dos seus predecessores - uma música electrónica suave em que os samples se confundem com as melodias, em que o fumo de um cigarro podia ser uma canção de amor. Antes de se aventurar pelo Festival Novo Cinema de Espinho, em que musicará uma curta na semana que vem, Manuel Bogalheiro - ou Mr. Herbert Quain - acedeu a responder-nos a umas poucas perguntas. Para quem queira conhecer mais da música, os seus discos estão disponíveis para download aqui.
Gostas mais do teu pai ou da tua mãe?

Não consigo responder. Sentimentalismos à parte, devo demasiado tanto a um como a outro.

Crês que a personalidade de alguém também se constrói através do nome? Achas que se te chamasses, por exemplo, "Tlön", farias algo parecido com psytrance?

Acho que depende sempre. Mas sim, pode acontecer haver uma relação entre o nome e a personalidade. No meu caso, ainda que não fosse algo assim tão consciente quando escolhi o nome de Mr. Herbert Quain, essa escolha acabou por marcar um pouco o imaginário da minha música. O nome é emprestado de uma personagem de um conto do Jorge Luís Borges e começaram a estabelecer-se relações a partir daí. Dizem-me que o nome tem uma solenidade qualquer e que soa a algo que não é do presente. A utilização dos diálogos de filmes nas músicas também deve ter contribuído para a autoridade deste "Mr.". Claro que depois uma coisa alimenta sempre a outra. Portanto, sim, no meu caso acho que isso se aplica. Quanto ao psytrance, acho que seria algo demasiado ambicioso para mim e para Mr. Quain.

«A questão da técnica sempre foi a de uma procura contra a finitude». É por isso que fazes a tua música recorrendo ao computador e não a meios mais tradicionais?

Sim, sem dúvida (acho que já li essa frase nalgum texto que tenha escrito). Já o disse em outras vezes e, tendo tido formação clássica em guitarra, vi o computador e as electrónicas como uma base praticamente infinita para criar e manipular sons que nunca tenham sido ouvidos. Há uma plasticidade nos meios electrónicos que não existe nos instrumentos tradicionais, sem querer desvalorizar o papel primordial que têm na música, até porque eu continuo a recorrer a estes no processo de composição e de arranjos. Mas a forma como o computador permite, por exemplo, manipular o tempo de um excerto/sample de som é algo único. Começar a compor a partir de um sample que originalmente tem 5 segundos e que depois de manipulado fica com 30 segundos e que gera elementos percussivos dentro dele é algo que penso que procura contrariar essa finitude dos meios tradicionais.

© João Pedro Fonseca

Nos teus concertos ao vivo, tens o João Pedro Fonseca a acompanhar-te enquanto VJ. Quão difícil é saber que no final é ele quem vai engatar as miúdas todas?

Pensei que fosse mais difícil lidar com isso. Normalmente, como ele desaparecia com alguma conquista (agora deixou de o fazer por razões conjugais), eu acabava por ficar com mais protagonismo para recolher os louros!

Forgetting Is A Liability é o teu segundo disco, e parece-me um pouco mais "sombrio", a nível do ritmo e do tom em geral, do que o How I Learned... . Como é que chegaste a estas canções novas, criativamente falando? Que coisas novas aprendeste desde o primeiro registo? Em que se inspira o título?

O meu segundo disco era para inicialmente ser um EP mais curto, com três ou quatro faixas. A ideia era fazer uma espécie de peça única dividida em várias faixas, com as músicas todas entrelaçadas entre si. Ao longo do processo senti que havia fossos que tinham de ser preenchidos e outras abordagens que tinham de ser experimentadas. Ganhou-se em duração e perdeu-se em coesão, talvez. De qualquer forma, este disco é mais assente na composição do que nos arranjos a partir de samples, ainda que existam muitos ao longo das faixas. Mas o processo foi, por assim dizer, diferente. Em relação ao primeiro álbum, houve uma dedicação mais assumida em relação a texturas, à composição de ambientes e a variação das estruturas. Talvez seja essa também uma diferença, considerando que as músicas do primeiro disco [talvez] fossem mais lineares. É também, e só o venho percebendo melhor agora, um disco mais pessoal e daí que exista possivelmente um tom mais íntimo. Quanto ao título, acho que se relaciona um pouco com isto tudo: tendo sido pensado como um disco de transição, a necessidade do esquecimento estava implícita. E tal necessidade também é mais assumida, enquanto condição de se seguir em frente, por ser um disco mais pessoal.

© João Pedro Fonseca

Considerando que a tua música também é feita de samples, parece-me que dizeres que «esquecer é uma responsabilidade» faz com que este disco seja um bocado paradoxal... Concordas? Não será sobretudo a memória que molda a forma como vivemos no presente?

Esse paradoxo de que falas, essa ambivalência entre passado e memória, entre o que nos escapou e o que retemos, é algo que me interessa muito. Portanto, sim, acho que este disco é um bocado paradoxal. Os samples representam essas fatias de passado que nunca mais poderemos reconstituir exactamente como aconteceram mas que nos perseguem, e a única alternativa é recuperá-los para novos contextos, através da manipulação e da montagem electrónica. No fundo, trata-se de se esquecer a sua origem ou de, pelo menos, não querer saber dela. É essa nova existência no presente que interessa. Porque claro que o passado molda sempre o presente, mas como o antes é sempre mais pesado e mais vasto do que o agora, o passado pode bloqueá-lo. Penso que esquecer seja uma responsabilidade, justamente, por ser tão difícil de o fazer.

Entraste na compilação de 2013 dos Novos Talentos FNAC e tiveste alguma exposição na rádio. Apesar disso, e tu assume-lo, a música que fazes continua a apelar mais a um determinado nicho. Sentes-te mais darling dos críticos do que do público em geral? O que é que falta a Mr. Herbert Quain para explodir por todo o lado, considerando que em Portugal ainda existe um grande apreço por este género de música electrónica?

A ideia de editar a minha música foi um pouco acidental, apesar da visibilidade e das reacções serem sempre gratificantes. Daí que essas coisas boas que acabaram por acontecer não tenham deixado de me surpreender. Mas também, por essa falta de expectativa inicial, nunca esperei chegar facilmente ao público em geral. Sem que isto diga alguma coisa sobre o que eu acho da qualidade da minha música, não acho que lhe falte nada no sentido de a poder tornar em algo que venha a "explodir". Isto é aquilo que faço com o gosto que ponho nas coisas. Seria impossível fazê-lo a pensar nesse tipo de exposição. Claro que algum reconhecimento que tenho tido é sempre muito bem-vindo.

Sendo que há um lado visual impossível de retirar da música que fazes, vês-te algum dia a fazer a banda-sonora para um filme? No que toca a cinema, quais são as tuas grandes referências?

Sim, seria algo que gostaria muito de fazer. Aliás, a primeira experiência vai acontecer já na próxima semana (26/6) no FEST – Festival Novo Cinema de Espinho onde vou musicar uma curta-metragem. Há também um outro projecto cinematográfico mais ambicioso a ser pensado sobre o qual poderei dar mais detalhes em breve. Quanto a referências, são várias. Posso destacar o Kubrick, o Mallick, o Haneke, o pai e a filha Coppola, os irmãos Coen ou alguns filmes do Lynch.

Tens um grande apreço pela ZigurArtists, a editora independente na qual lançaste os teus trabalhos, e fazes questão de o frisar em várias entrevistas. Vamos ser diferentes: qual é o maior defeito da malta de Lamego?

Essa não é fácil. Tornei-me parte do grande grupo de amigos que eles são. E isso é um pau de dois bicos: é obviamente bom pela amizade mas, por outro lado, às vezes descompromete e torna um pouco informais as coisas. E isso tem as suas vantagens mas também tem as suas desvantagens, tendo-se que saber lidar com isso. De qualquer forma, acho que tudo isso é compensado pelo prazer de os ter conhecido e por tudo o que já fizemos juntos.


Paulo Cecílio
pauloandrececilio@gmail.com
21/06/2014