Sexta-feira, meia-noite. Dentro do Clube Mercado ainda não há muita gente, mesmo tendo o suplemento Y do jornal Público informado que o
set de DJ Spooky começava às 11 da noite. O Bodyspace, que estava até então a beber cerveja numa das mesas do clube, cá em baixo, é chamado para entrevistar o DJ Spooky. Sobe-se as escadas e vai-se dar a uma porta. Por detrás dessa porta existem umas pequenas escadinhas que dão para uma pequena sala.
Paul D. Miller está lá sentado. É careca, se bem que algures durante a sua carreira tenha usado
dreadlocks, está vestido com uma camisa e mostra-se, desde logo, extremamente simpático e prestável. Também é muito seguro do que diz, sabendo exactamente o que quer dizer. Oferece ao Bodyspace o seu último
mix CD, prontifica-se a enviar-nos
Drums of Death, a colaboração com Dave Lombardo dos Slayer e Chuck D dos Public Enemy, e mostra-se extremamente entusiasmado com o seu telemóvel novo, que manda e-mails e funciona em todo o lado. Ao falar com ele, percebemos que é um intelectual, um pensador, e, acima de tudo um falador. Entre gestos influenciados pelo domínio dos gira-discos, mostrando que até tem qualidades técnicas como DJ, e muitas conversas extra-musicais, não é estranho, portanto, que nos tenhamos estendido para além dos 15 minutos previstos para a entrevista.
Dono de um
curriculum invejável, trabalhou com toda a gente, desde Iannis Xenakis a Thurston Moore, passando por Arto Lindsay e Killah Priest, ou mesmo por Steve Reich. Depois da entrevista, fez um
set que pôs os poucos mas bons que decidiram assistir à sua actuação a dançar ao som de muitos dos seus
remixes, passando pelo
hip-hop, com muitos clássicos, o
r’n’b, o
drum’n’bass e pelo
house, infelizmente e já mais lá para o meio da noite (era virtualmente indistinguível de uma qualquer discoteca da moda de Lisboa, nessa altura). Mas isso não interessa, já que Miller não é uma só coisa, é tudo o que puder ser. Aos 35 anos, Miller ainda é DJ Spooky, that Subliminal Kid, o puto subliminar, como pudemos confirmar.
Ainda
vives em Nova Iorque?
Sim, na baixa...
Achas que a cidade influencia o teu trabalho?
Sim, muito, tem tudo a ver com descobrir tipos diferentes de urbanismo, e
isso quer dizer que a cidade é como uma máquina, estás a olhar para a máquina
e a tentar descobrir o
input e o
output, a música é um
input e as frequências são outro. Muito do meu trabalho é sobre estar a flutuar
na paisagem urbana pensando sobre cultura e média digital, mas sob a perspectiva
de como se usa a tecnologia de uma maneira que reflicta como os seres humanos
vivem agora. É diferente do que há 20 anos atrás. É sobre que eu penso.
Como é que ligas isso à ficção científica? Sei que
és um fã de ficção científica...
Bem, alguns dos meus artistas favoritos são gente como o Joseph Beuys, Andy
Warhol e Marcel Duchamp, de um lado, e do outro a malta dos computadores,
gente como o Tim Berners-Lee, que inventou a World Wide Web, pessoas que lidavam
com informação, ou o Norbert Wiener, que inventou o termo “cibernética”. Se
vires bem, estas pessoas influenciaram tanto a maneira como vivemos hoje em
dia, mas não são assim tão conhecidas. Gosto da ideia do subliminar, é daí
que vem a minha alcunha. Não é necessariamente ficção científica, porque o
mundo é mais estranho do que pensamos agora, é totalmente bizarro.
Gostas muito de cibernética e da web, não gostas?
Li um ensaio teu sobre sampling onde usavas a web como metáfora para muitas
coisas...
Sim, porque se olhares para as pessoas movendo-se entre páginas diferentes
e fazendo
download de informação, vendo o que quer que queiram ver,
vendo e tirando um bocado daqui, um ficheiro dali, isso é
sampling.
Mas tornou-se como um vocabulário para esta geração. Tanta gente está a olhar
para os fragmentos, não vendo necessariamente a imagem toda. Mas não sei se
ainda será possível ver a imagem toda, porque se calhar isso também era uma
ilusão, percebes? Por isso a música é uma das poucas maneiras que as pessoas
têm de comunicar fora dos média, fora das ficções diferentes desta guerra
contra o Iraque, ou a propaganda dos média americanos, o que queiras. Estou
a tentar perceber o
underground para fazê-lo vir à superfície.
És um escritor e pensador, para além de um músico.
Lidas com a música, o gira-disquismo e o sampling de uma forma intelectual?
Sim. Este é o meu primeiro livro [n.r.: mostra o livro], chama-se
Rhythm
Science, é sobre a cultura dos DJs e arte contemporânea e muitas das coisas
sobre as quais ando a pensar aparecem no livro. Aquilo que eu estou a ver
não é só o
deejaying como música, mas o
deejaying como informação,
jogando com a forma como as pessoas vêem esta ecologia/economia de informação,
percebes? Podes ver isso como a forma como as pessoas reagem à informação
e como rumores, guerra, colapso ecológico e o furacão Katrina, por exemplo,
desestabilização económica, que tem acontecido com toda a inflação e as políticas
do Bush, isto são coisas que são facilmente apenas baseadas em percepção.
Se tiveres alguém como o Alan Greenspan, o presidente da reserva federal,
a dizer que os mercados são estranhos, de repente isso perturba os mercados
e estes ficam incertos. E é só por ele falar. É uma coisa da linguagem. Gostava
de saber como usar esse tipo de abstracção para a música.
Trabalhaste com muitas pessoas diferentes, isso mostra
eclecticismo. O que é que tu ouves normalmente?
Quando estou em casa ouço muito
jazz antigo, coisas como o Charlie
Parker, o Count Basie, o Dizzy Gillespie e também muito reggae antigo, da
segunda metade da década de 60 e do princípio da década de 70.
A época dos soundsystems e dos soundclashes...
Sim, cenas como o U-Roy. Com efeito, o meu próximo
mix-CD é com a editora
Trojan records, vou ver se tenho uma cópia [n.r.: não tinha, depois de ter
procurado nas duas mochilas que trazia], são 30 anos de música jamaicana e
de facto ando a ouvir também muita música indiana. Talvin Singh, as cenas
antigas dele, DJ Tiger, que é um DJ indiano de hip-hop impressionante, que
trabalha a partir de Nova Deli e Detroit, estranhamente. Depois...ouço também
outros estilos, muito do que anda a vir do Médio Oriente, há uma cena de DJs
em São Francisco, como o DJ Cheb i Sabbah, que mistura muitas coisas do Médio
Oriente com hip-hop e música electrónica. Há o Bally Sagoo na Índia, há algum
hip-hop paquistanês interessante, baseado em coisas muçulmanas, Asian Dub
Foundation e cenas assim.
Falaste de hip-hop. Como é que vês o hip-hop hoje,
em 2005?
Bem, muito do hip-hop é como um fascínio comercial com patologia, as pessoas
gostam muito daquela cena das armas e dos gangstas. É um desenho-animado,
é como ver o Bugs Bunny e querer rimar como o Bugs Bunny. Alguém pega num
martelo e bate na cabeça do Bugs Bunny, e ele fica com um galo e depois anda
à roda e depois fica bem. Ou Demónio da Tasmânia esmaga o Speedy Gonzalez
ou assim, este tipo de desenho-animado. As pessoas não encaram isso como realidade,
apesar de dizerem que é a realidade. Porque se fosse a realidade eles estariam
a olhar para a guerra, o petróleo, esse tipo de coisas. Por isso as minhas
pessoas favoritas no hip-hop são gente como o Michael Franti, o Mos Def, o
Saul Williams [n.r.: com quem DJ Spooky já colaborou no filme
Slam em “Pledge to Resist”, um tema para a editora Protest Records, de Thurston
Moore dos Sonic Youth] e a Jean Grae, gosto da maneira como ela lida com tópicos
feministas. Sou progressivo, gosto da ideia de uma cena com gente que não
é parva onde há pessoas espertas a fazer algo interessante, não tem de ser
algo estúpido como uma pessoa com um rabo grande a dizer “Hey, eu tenho um
rabo grande”. Quem é que quer saber? Há maneiras de fazer com que seja divertido
mas também educativo, é por isso que gosto do KRS-One, ele é provavelmente
um dos meus MCs favoritos.
“O Professor”.
Sim, “edutretenimento”.
Quando trabalhas com compositores clássicos como o Steve Reich ou o Ianni
Xenakis, é difícil comunicar com eles musicalmente?
Não, muitas das pessoas mais velhas trabalham de uma forma intelectual, pensam
tudo. Colaboro com muita gente, o meu último álbum chama-se
Drums of Death,
é com o Dave Lombardo, o baterista dos Slayer e o Chuck D dos Public Enemy,
e tive de traduzir entre muitos estilos diferentes. Isso quer dizer que não
estás a traduzir só o estilo, mas também a forma como as pessoas reagem à
música. Por isso, todas as culturas e todos os estilos hão-de ter a sua maneira
de flutuar. Há regras, no hip-hop, por exemplo, tens de te mexer assim [n.r.:
faz uma postura hip-hop], estar um bocado mais calado, não é suposto comunicares,
a não ser que estejas em palco. No
dancehall reggae é suposto comunicares
a toda a hora, em todo o lado, no
drum’n’bass é só ouvires a técnica
de programação mais recente. É divertido ver. Mas eu movo-me entre cenas e
estilos, é esse o meu estilo.
É sempre difícil perceber, quando ouvimos os teus
discos com outros músicos, o que é que tu estás a fazer e o que é que os outros
estão a fazer...
Tenho tendência a pensar nisso como uma coisa boa. A maior parte das pessoas
querem delinear uma identidade de uma maneira que pensam ser original, mas
não é, é normalmente apenas uma cópia de uma cópia de uma cópia e podes ver
isso em todo o lado sempre que vês alguém. É sempre como ter espelhos em frente
de espelhos e ver a mesma coisa infinitamente repetida. A originalidade é
extremamente sobrevalorizada, tenho uma mentalidade um pouco mais hindu-budista,
onde tudo está ligado e toda a gente é um reflexo de outros processos. Mas
não sou budista.
Achas que há um preconceito contra os gira-disquistas,
em geral, e da gente do hip-hop contra ti, que não és um DJ tecnicamente tradicional?
Há sempre um preconceito contra algo que escave fundo dentro de qualquer meio,
porque as pessoas querem a superfície, não querem as profundezas. É por isso
que é preciso descobrires uma maneira de fazer as pessoas pensarem que as
profundezas são a superfície, conseguindo movimentares-te de uma forma muito
acessível, porque as pessoas só querem tocar no “play” e não querem pensar
nas
nuances e na complexidade. É sempre uma luta, eu quero as pessoas
percebam que não sou uma só coisa, sou múltiplo. Quero que as pessoas se rendam
à ideia de que a complexidade é a forma como vivemos hoje em dia, isto não
é simples, o mundo não é simples. Por muito que a América queira que as coisas
sejam simples, do estilo “Saddam mau, Bush bom” – que é treta –, se começares
a analisar...quem é que pôs o Saddam no poder? Foi o pai do Bush. Como é que
o Bush subiu ao poder? Foi o pai do Bush. Como é que toda a economia e o dinheiro
e a política e a corrupção aconteceram? A maior parte das pessoas não quer
sequer pensar nisso. Eles querem dizer que está tudo bem, que o Bush é presidente
e pronto e isso é muito estúpido. As pessoas nem sequer criticam nada porque
não têm mais informação, só pensam em divertir-se. Como é que conseguimos
adicionar informação à vida do ser humano normal? As pessoas são bombardeadas
constantemente com os média, a publicidade, as coisas electrónicas, tudo.
As pessoas nem sequer pensam. Alguma vez foste a Nova Iorque?
Não, nunca sequer saí da Europa...
Se fores ao Sul dos Estados Unidos, só existem prisões e igrejas, é tudo só
prisões e igrejas. Há uma população enorme de gente que existe fora do conceito
americano que vemos como democracia liberal. Viste o Katrina na televisão?
A merda do país é toda assim. Não é só Nova Orleães. Mas a ilusão é a de que
nos EUA tudo é óptimo, que somos progressivos e trazemos democracia e liberação...como
é que é possível fazer as pessoas olharem para essa ilusão e perceber que
há algo por debaixo? A minha música é sobre isso.
Como é que é trabalhar com tanta gente diferente
e lendária?
Para mim, estar na baixa de Nova Iorque é bonito: há montes de culturas diferentes
a movimentar-se pelo sistema, isso quer dizer que conheces pessoas de ambientes
diferentes. Vivo numa cidade onde posso conhecer alguém de Marrocos, do Brasil,
da Islândia ou da Mongólia, e isso dá uma situação divertida só na comunicação.
A baixa de Nova Iorque é como uma mini-Utopia, porque tem tudo a ver com a
troca inter-cultural, assim vou conhecendo gente só por viver lá, por fazer
parte da cultura e por sair para ver coisas. Estas são pessoas que podiam
ser teus vizinhos, ou viver na mesma rua que tu, não as vejo como lendárias.
É mais: “Está aqui o meu vizinho. Vamos fazer uma faixa, vamos tentar qualquer
coisa, OK?”.
Como é que te juntaste ao Dave Lombardo? Eras fã
de Slayer?
Sim, sim, sim, já andava a querer fazer alguma coisa com o Dave há uns tempos,
e estávamos só a tentar perceber o que ia resultar, e um amigo meu – Peter
Gordon, que gere a editora Thirsty Ear – perguntou-me porque é que não fazíamos
um projecto. Eu respondi que sim, que isso seria fixe. Depois voei até Los
Angeles e gravámos aquilo e depois voltei para Nova Iorque e editei e voltei
para São Francisco para trabalhar com o Jack Dangers na masterização final.
Foi como uma conversa. Trabalhei com montes de gente, por isso são só muitas
conversas.
Como é que vai ser o espectáculo hoje à noite?
É uma festa, hoje é só uma festa. Vou estar a girar dados digitais e não discos.
Este é o concerto [n.r.: aponta para a mala que contém um portátil]. Hoje
é um espectáculo pequeno para mim, é só para me divertir. Estou habituado
a espaços muito maiores. Este clube anda a ficar com uma boa reputação internacional,
as pessoas têm-me dito que devia vir ver o que se passava cá se estivesse
em Lisboa. É só diversão. Fui o primeiro DJ internacional a tocar no Lux.
Toco em muitos sítios diferentes, movo-me entre cenas e estilos, hoje é mais
underground [n.r.: literalmente, já que a sala principal do Mercado
é debaixo da terra]. Amanhã estou em Bruxelas e depois estou em São Paulo,
voltando para Nova Iorque a seguir. Vou tocar no Carnegie Hall para a Meredith
Monk, uma das minhas compositoras favoritas, é com a Björk e mais gente diferente.
Todas as noites são diferentes, amanhã à noite vai ser com 2000 pessoas, num
sítio grande. Hoje estou aqui e depois estou a ler o meu livro em São Paulo.
É óptimo, não é?
Bem, requer muita tradução, porque toda a gente quer sentir que há apenas
uma maneira de ver o que fazes. É aí que eu digo que não, que tenho e faço
isto e aquilo. É bom, é divertido, mas é preciso teres atenção. Estás sentado
à minha frente agora e provavelmente vais sair daqui a pensar que viste o
DJ Spooky num sítio pequeno. Depois amanhã estou num sítio grande e a pessoa
que me vai entrevistar vai pensar que está num sítio grande e que isto é uma
coisa enorme. A seguir vou para o Brasil e estou a ler um livro. Pergunto-me
se existe alguma maneira de toda a gente ter a mesma experiência, talvez pôr
uma câmara no meu ombro e andar por aí, mostrando como todas as noites são.
É sempre diferente.
Talvez fazer um reality show, como o Flavor
Flav [n.r.: dos Public Enemy, que participou em dois reality-shows do VH1 e noutro do Channel 5 inglês]...
Meu Deus, não comento.
Estou só a brincar.
Tenho de ter um sentido de humor quanto a estas coisas, porque as pessoas
querem sentir que isto é só uma coisa, e não é. São múltiplas coisas.