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Moxila
Tweeeeeeeeee


Na minha mochila cabe um portátil, um disco externo, uma capa cheia de papéis da faculdade e o ocasional livro ou jornal que me entretenham no comboio, para além das canetas, lapiseiras e borrachas do costume. Na mochila da Mariana, ou em Moxila, cabem canções saudáveis sobre animaizinhos, trolls, gordos a comer Nestum ou temas de abertura de animes das quais já ninguém se lembrava - gente que perde as memórias da infância é gente que não interessa a ninguém, contudo. Por falar em infância, a Mariana, para gáudio nosso, canta com a candura de quem nunca a perdeu (talvez por isso um conhecido ilustrador do Porto e fã do País do Sol Nascente nos tenha tido que ela odeia asneiras). Depois de editar no ano passado dois EPs que deixam sobretudo um sorriso na cara de quem os ouve, a Moxila abriu-se connosco e deu-nos a conhecer melhor o seu pequeno mundo. Em discurso directo.
Quem és, de onde vens, para onde vais?
Eu queria ser disléxica, mas não mais do que sou neste momento. Queria que alguém me disse-se [sic] «Mariana, tu és disléxica, toma um certificado com o carimbo oficial do gabinete mais superior dos médicos da dislexia». E assim nunca mais ninguém se podia sentir bem ao acusar-me de não saber escrever as palavras da maneira correcta. Isto responde à tua pergunta? Não... mas parece-me a mim que entretanto já respondi a uma pergunta! Vamos passar às outras? Sim! E já vão duas.

Que é que costumas guardar na tua mochila?

Depende de para onde a levo, mas há coisas que costumam andar sempre por lá: o meu diário gráfico (que raramente uso, por isso é quem passa mais tempo dentro da mochila), um caderno pequenino para escrever letras que usei por duas vezes e depois nunca mais, um caderno do Snoopy (que comecei a usar quando pensei que tinha perdido o diário gráfico), e o Sou'wester para quando chove. Costumo ter também um estojo que antes das viagens mais longas encho com uma selecção de marcadores ou lápis de cor. Neste momento só tem lá lápis de grafite, mas para o bem da entrevista escolhi agora alguns marcadores como se me estivesse a preparar para sair de casa. Escolhi o cinzento escuro, o cinzento claro, o ocre, o azul-marinho, o vermelho-rosa-escuro (aquele que na caixa guardas entre o vermelho e o cor-de-rosa se quiseres que os teus marcadores estejam organizados num degradé bonito como mostra na ilustração) e o azul-claro.

Quando é que começaste a fazer música e o que é que mais te inspirou para que o fizesses?

Comecei a fazer música há quase dois anos atrás porque o Filipe me perguntou se eu queria fazer uma banda com ele, uma banda só de cavaquinhos (os Sr Eduardo Urso). Eu disse que sim e apesar de na altura já tocar cavaquinho há dois anos nunca tinha tentado fazer música. Parecia-me complicado e pensei que não fosse para mim. Mas como fiquei entusiasmada com a ideia da banda não hesitei em tentar, e quando o fiz descobri que escrever uma música é das coisas mais fáceis. Isso chegou-me para me manter interessada, era mais um meio, mais uma forma de criar, e tem uma vantagem que os outros meios que eu usava até à altura não têm. A minha parte preferida quando crio alguma coisa é o início, ter ideias, sonhar com o resultado, e o fim, o ver finalmente como ficou (essa parte normalmente só gosto se correr bem). O processo aborrece-me imenso - principalmente se for muito longo, porque entretanto tenho outras ideias que fico ansiosa de concretizar, e porque como os meus projectos costumavam surgir de ideias um bocado absurdas, a meio do projecto esquecia-me da razão pela qual o comecei a fazer em primeiro lugar (não que eu ache que isso seja mau para o resultado final, só me deixava mais desmotivada para continuar a trabalhar nele quando na minha cabeça se iam acumulando outras ideias absurdas desejosas de se porem em prática). Acho que as minhas ideias já não são tão absurdas agora, acho que descobri uma coisa importante, mas isso ainda é segredo e não vos digo. «Está bem, Mariana, mas agora volta a responder à pergunta que era sobre música...» Ah! Sim, onde é que eu ia? Pois, porque quando eu escrevo uma música às vezes consegue ser tão rápido que nem dou conta do processo (isto é assim para mim e para as minhas músicas, que são simples, mas admito que seja diferente para outras pessoas). Enquanto vou improvisando a letra e a melodia, o início mistura-se com o final e eu gosto disso. Por isso não gosto de pensar muito nas músicas antes de as fazer; assim posso fazer desaparecer o processo. Claro que eu não estou a contar com as gravações (odeio gravar), para a mim uma música está acabada assim que a posso cantar a alguém.



Não temes que rotular os discos no Bandcamp com "retarded" leve a que as pessoas não te levem a sério?

Ahahah, não. Vou-te contar, então, a história de como isso aconteceu. Eu estava a ouvir coisas aleatórias no Bandcamp com a tag twee, estava a ouvir LA Beard Club pela primeira vez e a pensar que me lembrava Daniel Johnston. Achei que eram parecidos não só na sonoridade mas principalmente nas letras e nos temas que escolhem cantar - a falta de auto-estima, misturada com uma fé quase ingénua no amor, na humanidade ou no futuro. Achei que podia ser um género e que se fosse que se iria chamar retarded pop. Passados uns minutos depois desta minha brilhante descoberta começa a tocar uma música chamada "I Might Be A Moron", e a letra começa assim: Thinking is so hard, maybe I'm a retard... claro que nesse momento fiquei ainda mais orgulhosa dos meus super-poderes de avaliação. Cheguei mesmo a pesquisar na net se este género existia já oficialmente. Não me lembro de grandes resultados; para além de ter encontrado a Micachu classificada como retarded pop no Last.fm, não era bem o que eu tinha pensado... E também não acho que Moxila encaixe completamente nesta categoria, acho que me falta pelo menos mostrar um pouco mais de falta de auto-estima nas minhas letras, e acho que o mesmo se pode dizer da Micachu. Eu pus o rótulo de retarded no meu Bandcamp porque era o meu rótulo, fui eu que o inventei, e achei-lhe piada, mesmo que não esteja completamente de acordo com o que ele inicialmente designava. Talvez por isso é que só está lá retarded em vez de retarded pop. Ou não. Já não me lembro, mas vou trocar. E agora vou responder à tua pergunta outra vez: não, não tenho medo que não me levem a sério, teria mais medo do contrário. São só músicas pop, algumas até um bocado parvas, e têm tanto valor como outras que as coisas parvas também tem direito, mas se me vou levar tão a sério que não lhes posso chamar de retarded então fazer música passa a ser uma coisa séria e perde parte da piada.

Onde é que gravaste os teus discos e como? Porquê um ukulele?

Gravei-os em casa com o microfone do computador, no GarageBand. É um cavaquinho e apareceu-me um dia em casa e eu adoptei-o. Quando andava no secundário eu ia pedindo de vez em quando um instrumento e aulas à minha mãe; o primeiro acho que foi um violino, mas foi variando. Os meus pais não tinham grande confiança em mim por eu ter desistido das aulas de piano quando tinha 12 anos e nunca mais lhe ter ligado nenhuma (agora o meu teclado está com a minha prima e eu nunca mais o voltei a ver), e por isso decidiram ignorar os meus pedidos visto que as aulas eram caras. Um dia, já quando eu andava na faculdade, apareceu o cavaquinho. Era fácil de tocar, portátil e divertido, óptimo para quem está a começar, e também é barato para quem não tiver a sorte de ter um primo do sobrinho que lho deixe em casa. Agora os meus pais já têm mais confiança nas minhas aptidões musicais, ou então já não duvidam do meu interesse, e ofereceram-me um banjo depois de eu ter construído um com uma lata de bolachas por ter decidido que os banjos eram o meu instrumento de cordas preferido. E porque agora sou mais crescida e sei que os instrumentos que eu gosto mais são os de sopro e que o meu preferido de todos é a flauta transversal, os meus pais ofereceram-me uma em segunda mão pelo Natal. A minha mãe perguntou-me se eu queria aulas, eu disse-lhe que não.

Baleias, pombos, abelhas... a Mariana é a futura varredora de rua ou é a futura veterinária?

Cães, gatos, tartarugas, ratazanas, minhocas, baratas... todos estes que eu mencionei agora aparecem na música "Pat É O Cão Do Lixo", que está relacionada com a "Camião Das Folhas" que é a música da varredora de rua. Essa música, a do "Camião Das Folhas", é a minha preferida entre todas as minhas músicas e é a que tem a letra que eu mais gosto. Diz lá muitas coisas que me interessam mas a minha parte preferida é esta: Há o Bob O Construtor e o Carteiro Paulo , mas a Mariana é a futura varredora de rua. Isto é porque eu reparei que é mais comum haver programas para crianças sobre trabalhadores de colarinho azul (ou verde, ou cinzento, ou cor-de-laranja, ou vermelho, não vou fingir saber muito sobre estes termos mas gosto dos nomes) enquanto que nas séries para adultos é mais comum o colarinho branco. Para além do Paulo e do Bob, há o Noddy que é taxista e o Bombeiro Sam, e existem outros mas estes que eu mencionei mencionei-os porque as suas séries não são só sobre uma personagem que por acaso faz parte da classe trabalhadora mas sim sobre eles no trabalho. Acho que é fácil de perceber porque é que é mais interessante para uma criança ver um carteiro ou um taxista a deslocar-se pela cidade a interagir com os seus amigos e conhecidos do que ver pessoas de fato a trabalhar num escritório. E depois há as fardas: quantas crianças não preferem usar um capacete de bombeiro a um fato e gravata? Por alguma razão eu gosto tanto do meu Sou'wester. Claro que na realidade um advogado tem a oportunidade de trabalhar sobre temas mais interessantes e certamente mais complexos do que um carteiro que deixa as cartas na morada certa, mas isso só significa que para tornar o trabalho de carteiro mais apelativo tem de se romantizar mais. É esse movimento que me interessa. E é por isso que eu achei que ser varredora de rua seria um óptimo emprego, e também um óptimo tema para um desenho animado infantil. Ora, o carteiro Paulo tem um gato preto e branco, mas a varredora de rua prefere um cão vadio, com o pêlo comprido e despenteado para ter um ar mais sujo; seria a Pat, o cão do lixo. Os animais costumam ter um papel muito presente em desenhos animados e séries infantis: mesmo quando não falam ou não são as personagens principais costumam existir na mesma para serem fofos ou engraçados. Basta pensar nos filmes da Disney; quando não têm animais é porque foram substituídos por objectos inanimados que no filme ganham vida. Uma série sobre veterinários também podia ter interesse para crianças, desde que os animais não morressem demasiado, e provavelmente já existe. Mas não é tão blue collar, não é tão romântico. Quanto às abelhas e às baleias e aos kría [andorinha-do-mar-árctica] (os kría aparecem mais nas minhas músicas do que parece, e se não sabem o que são vão pesquisar, são mais assustadores ao vivo do que dá a entender no Youtube), aparecem várias vezes no álbum porque é um álbum sobre a Islândia e a Islândia tem muita natureza.



A tua versão do tema da Joaninha é genial. Que desenhos animados mais te marcaram e/ou continuam a marcar?

Os que eu me lembro de gostar mais em criança são: Angela Anaconda, Mr. Bogus, Chicken Minute (não são desenhos animados, são marionetas, mas também conta, certo?), Navegantes Da Lua, Madalena, Courage The Cowardly Dog e Doreamon. Não sei se estes todos eram mesmo os que mais gostava, mas são os que eu me lembro mais agora por isso devem ser os que mais me marcaram. Actualmente as minhas preferidas são as animações mais antigas do Fred Wolf. Gosto muito do The Point, dele e do Harry Nilsson, gostava de um dia conseguir fazer uma coisa assim. E também gosto muito das curtas que o Jonh e a Faith Hubley fizeram a partir de gravações das vozes dos seus filhos. Há uma musica de Sr Eduardo Urso que ainda não foi gravada levemente inspirada [na curta] Windy Day dos Hubley, e outra que é sobre uma personagem do Chicken Minute.

Tens planos para gravar em formato físico ou vais manter-te para já no digital e continuar a permitir o sacanço no teu Bandcamp?

Não, sim e sim.

O que é a Gentle Records e como é que te associaste a eles?

A Gentle Records é uma editora da Internet. Foi criada pelo José Cardoso e pelo Leonel Sousa. O Zé esteve no segundo concerto de Sr Eduardo Urso, e deve ter gostado porque depois convidou-nos para a editora. E foi assim.

Como surgiu a oportunidade para teres uma residência artística na Islândia?

Eu queria ter ido fazer Erasmus em Reykjavík mas eles lá não me quiseram. Então, quando acabei a faculdade, fui lá fazer uma residência de dois meses para não ficar triste, para não me sentir tão excluída de ter sido a única dos meus amigos que não fez Erasmus. Gostei muito da Islândia e quero lá voltar.

Para além da música também és ilustradora. Já que os teus desenhos são igualmente as capas dos teus discos, a Moxila ilustradora é diferente da Moxila cantora ou são indissociáveis?

Para já acho que ainda são coisas diferentes, mas não tenho muito bem a certeza de onde está o limite. A minha conta do Facebook mistura as duas coisas mas ainda não assino as minhas ilustrações como Moxila. Por vezes as minhas músicas e as minhas ilustrações partilham universos comuns; isso parece-me inevitável mas não é oficial. Talvez passe a ser um dia, quando eu fizer um projecto maior que inclua os dois meios, como quando eu vos disse em cima que gostava de fazer um filme como o The Point, [mas] ainda falta muito tempo para isso.

E o que vai acontecer à Renata e os Índios?

Ainda bem que perguntas. Não sei o que vai acontecer mas espero que aconteça alguma coisa. Vou aproveitar a tua pergunta para fazer um anúncio: quem quiser tocar na Renata e os Índios que me mande uma mensagem no Facebook (sou Moxila Nãoé Môxila). Não há nenhum critério para já, apenas assiduidade - e têm de gostar da banda, obviamente (os ensaios são no Porto). Ok, já está. Agora vou-vos contar a história de Renata e os Índios. Esta história começa quando eu acabei de construir o meu cookie tin banjo. Aquilo não estava a correr muito bem; eu tinha colado a nut no sítio errado e a afinação estava a sair toda mal - já tinha partido duas cordas a tentar afiná-lo e estava prestes a desistir dele mas, antes disso, decidi que ia fazer pelo menos uma música. Com o banjo completamente desafinado, a faltar-lhe uma corda, fiz uma música só de um acorde, o único que me soava bem. Chama-se "A Tartaruga Nos Alpes". Esta música foi a primeira que eu gravei sozinha e isso foi muito importante para mim na altura. Dei o nome à banda de Renata e os Índios para parecer que éramos muitos mas era só eu. Renata e os Índios nasceu depois de Sr Eduardo Urso e antes de Moxila. Pouco depois de lhe ter arranjado um nome achei que devia ser uma banda com mais de duas pessoas, mesmo sem nenhuma Renata e nenhuns Índios, especialmente sem nenhuma Renata e nenhuns Índios. Tinha uma ideia muito romântica do que deveria ser esta banda, muito inspirada pela facilidade com que aquela primeira música saiu dum banjo mal feito; era para ser uma banda de pessoas que não sabem tocar. Era para ser assim, também, para que eu pudesse ser a pessoa na banda que mais percebe de música, o que não acontece em Sr Eduardo Urso. Isso faria de mim uma espécie de líder não-dita, não-oficial, mas que todos reconhecem. Convidei amigas para entrar na banda, e ainda continuo a convidar, mas as coisas não correram tão bem como eu estava à espera. Se calhar porque estas pessoas estão como eu quando ainda não sabia que escrever músicas é fácil, e quando eu achava que não era para mim, ou se calhar não é igualmente fácil para toda a gente. Eu não estava à espera que tocassem logo bem, mas estava à espera que quisessem tentar e que se sentissem à vontade com isso. [Para já] está a ser complicado mas está a acontecer. Neste momento somos três, eu a Catarina e a Joana. A Joana escreve letras e eu tenho feito as músicas para as letras. Temos algumas músicas novas que eu gostava de as poder mostrar em breve mas ainda não está nada gravado. Escrever músicas no banjo é mais difícil por alguma razão que eu não sei mas isso torna o desafio mais interessante. Neste momento estou só a escrever musicas para Renata e os Índios, sem cavaquinho nem guitarra. Gostava de experimentar fazer mais coisas instrumentais e outras mais dançáveis. É por isso também que precisamos de mais alguém na banda para dar concertos, para eu poder ficar livre para dançar.


Paulo Cecílio
pauloandrececilio@gmail.com
25/02/2014