É um dos mais recentes talentos emergentes da cena nacional de improvisação. Oriundo da Suazilândia, mudou-se muito jovem com a família para Portugal, estudou no Porto, mas é por Lisboa que vem revelando a sua música. Trompetista original, Yaw Tembe começou a fazer-se notar recentemente e tem já desenvolvido vários projectos, a solo ou em parcerias: Círculo de3 Pontas (solo), Zarabatana (trio com Bernardo Álvares e Carlos Godinho) e Sirius (com Monsieur Trinité). Tem ainda estabelecido laços com vários outros músicos nacionais - destaque para a colaboração com o violinista Gil Dionísio - e começa a ser presença frequente no circuito de improvisação portuguesa. A 14 de Março o jovem trompetista actua na Galeria ZDB, a solo, na primeira parte da dupla Ken Vandermark & Paal Nilssen-Love. Da Suazilândia para o mundo, com passagem pela ZDB, Yaw Tembe apresenta-se.
Como e quando é que te interessaste pelo jazz e pela música improvisada?
Desde novo que sempre estive rodeado de discos de jazz/free, cenas latinas e africanas que pertenciam aos meus pais, lembro de estar especialmente sugestionado com algumas ilustrações de capas de álbuns que achava muito estranhas na altura entre eles o
Bitches Brew, o
Karma de Pharoah Sanders, outros de Coltrane, Weather Report, etc. O interesse pela música experimental/improvisada talvez tenha surgido na faculdade quando comecei a pensar o som como elemento autónomo da música. Sem conhecer praticamente nada do mundo da improvisação/experimental, com tempo fui encontrando projectos que me iam dando forma a essas ideias, que na altura eram muito abstractas para mim.
Porque escolheste o trompete? Como decorreu o processo de aprendizagem e evolução?
Apesar do contexto musical enriquecedor no qual cresci, foi tardiamente que demonstrei algum interesse em tocar algum instrumento... Foi no final do ensino básico que decidi entrar numa filarmónica e por falta de opções fui “convidado” a tocar o trompete, com alguma relutância (o meu desejo era tocar saxofone) aceitei o desafio... A experiência na filarmónica foi muito curta - apenas um ano - mas deu-me as bases mínimas para iniciar a minha aprendizagem. De resto tem sido um percurso de um auto-didacta com a orientação de amigos músicos em alguns momentos... Como método de estudo tenho em muito aproveitado a linguagem jazzística como base de ensino.
Quem são os trompetistas que mais te inspiram?
Don Cherry e Lester Bowie – ambos os trompetistas têm uma linguagem muito própria fora de qualquer cânone e foram marcantes na exploração do trompete no free jazz e improvisação; Dizzy Gillespie – pelo seu som, fraseado pujante mas inteligente e por ser dos primeiros jazzmen a mostrar interesse por outras culturas musicais (neste caso afro-latina) - o bebop era um mundo pequeno para ele; Clark Terry - para mim o melhor som de trompete/fliscorne; Miles Davis - tornou o trompete num instrumento delicado e íntimo, sintetizou toda uma linguagem, poucos foram os músicos que passaram por tantas fases distintas mas nunca perdendo a sua essência; Hugh Masekela – trompetista sul africano que utiliza o trompete como uma extensão da voz de um modo muito particular e eficaz no contexto tradicional-urbano; Freddie Hubbard, Roy Eldridge, Art Farmer, Sacthmo, Lee Morgan, Wadada Leo Smith...
E discos?
Tenho sido um ávido consumidor de música... Para além desta lista a minha biblioteca musical estende-se a toda música africana e consequente diáspora – do Jazz ao Kwella, Rap, Rhumba, Funk, etc. – desde os clássicos bebop, hard, free: sou grande admirado de Monk, Art Ensemble of Chicago, Archie Sheep, Horace Silver, Ornette Coleman, Steve Lacy (o músico que me fez gostar de ouvir solos e duetos), Sun Ra, Yusef Lateef, Roland Kirk, James Newton, Steve Coleman, Last Poets, Wu-Tang, KRS-One, Public Enemy, De La Soul, A Tribe Called Quest, The Roots, X-Clan, Madlib, Hugh Masekela, Fela Kuti, Mulatu Astatke (e toda a cena Ethiopiques), HighLife, Rhumba Congolesa (Franco), Cachao Lopez, Chucho Valdés, Machaito, Ray Barreto, Ruben Gonzalez... Para além desta selecção tenho demonstrado algum interesse em conhecer os sons de outros pontos do globo, com grande enfoque às expressões tradicionais vocais e rítmicas, da Índia à Portugal, Indonésia, Grécia, Mongólia etc.
És originário da Suazilândia. Como vieste para Lisboa?
Nasci na Suazilândia em 1989, filho de mãe sul-africana e pai moçambicano. Por volta de 1993/94(?) decidiram emigrar para Portugal, àa procura de mais oportunidades (não que as coisas estivessem mal pelo sul de África). E desde então, instalado na Caparica, tem sido a luta de emigrante já conhecida em Portugal.
Tens actuado a solo sob a designação "Círculo de3 Pontas". O que apresentas nesse trabalho?
Circulo de3 Pontas surgiu no momento em que regressei para a Caparica, em 2011, depois de quatro anos no Porto, onde frequentei o curso de escultura nas Belas Artes. Precisava de uma pausa das artes plásticas e estava com vontade de explorar o som a um outro nível, sem ninguém por perto para me acompanhar. Nesta fase comecei a montar um projecto do tipo "one man band", por necessidade comecei a pegar em objectos sonoros, pedais e todo o tipo de instrumentos que tinha por casa, e criei um laboratório caseiro de experimentação... Neste projecto sempre esteve presente a vontade de desconstruir a linearidade da composição procurando criar estruturas exteriores à música que proporcionem uma deriva pelo som, entendendo a composição como um percurso escolhido dentro de uma infinidade de possibilidades onde não há hierarquias de instrumentos, o que interessa é a viagem que o som proporciona (quer seja improvisada ou não). O resultado é uma "assemblage" sonora e a constante desconstrução do som.
Um projecto em que estás envolvido é o trio Zarabatana, com o Bernardo Álvares (contrabaixo) e o Carlos Godinho (percussão). Quais são as características deste grupo?
Zarabatana para mim é uma extensão do método de exploração que iniciei com o Círculo de3 Pontas, mas num contexto de grupo e sem o apetrecho electrónico à mistura. Temos desenvolvido uma rotina de sessões de improvisação direcionada. Esteticamente é uma extensão da formula do free jazz psicadélico dos anos 70 (Art Ensemble of Chicago, CODONA, Pharoah Sanders, Old and New Dreams, etc.) com uma forte carga tribal/rítmica e, para isso, muito tem contribuído o contrabaixo do Bernardo pelo seu lado “mântrico” e a desdobrável percussão do Carlos, ora rítmico e efusivo ora bastante lírico ou pictórico.
Trabalhas num duo com o Monsieur Trinité, um projecto chamado Sirius. O que define a música deste duo?
Após inúmeros encontros muscais entre mim e o Monsieur Trinité, nas mais variadas formações, decidimos criar Sirius. Sirius caracteriza-se por uma música bastante etérea, onde me faço acompanhar pelo trompete processado, recorrendo a efeitos e à utilização de samples, e o Monsieur Trinité pela percussão e objectos diversos. Naturalmente criou-se uma música de paradoxos e contrastes entre o espacial e o “terreno”. Nesta primeira fase tem havido uma tendência para nos aproximarmos do tradicional e étnico através de uma visão muito particular. De qualquer modo, não entendemos a nossa música como parte da “world music”, mas como algo que surge de duas visões pessoais e específicas deste mundo que nos rodeia, das suas histórias e vivências. O processo de trabalhar com o Francisco tem sido bastante enriquecidor por toda a experiência que traz consigo e pela vontade em partilhar esse conhecimento, que em muito excede o plano musical.
© Vera Marmelo
Além destes, em que outros projectos estás actualmente envolvido?
Neste momento estou em Serpa, numa residência artística, onde estou a fazer uma estudo sobre o Cante alentejano e a traduzir essa pesquisa na construção de esculturas sonoras. Tenho interesse em voltar às artes plásticas (apesar de nunca ter saído) e de fundir com a música... Tenho tocado recorrentemente com vários músicos, entre eles estou a consolidar um projecto de carácter mais jazzístico com o Gil Dionísio.
Uma característica das tuas actuações ao vivo tem sido a utilização de máscaras. Porque o fazes e qual o significado deste gesto?
Nunca tive resposta para essa pergunta. Comecei a usar máscaras ao tocar na rua, não foi um acto muito pensado. Sempre gostei de máscaras, comecei a produzir algumas e decidi levá-las para a rua. Com o tempo comecei a perceber que isso criava uma relação muito interessante com o “público” (uma certa cumplicidade). Neste momento tenho usado em alguns concertos e a colecção de máscaras também tem aumentado. Mas, em geral, sempre me agradou a ideia de concertos serem mais que meros concertos… que haja uma componente mais performativa ou mais plástica ou simplesmente que aconteça algo de inesperado.
Em Março vais actuar na ZDB, partilhando o palco com Ken Vandermark e Paal Nilssen-Love. Quais são as tuas expectativas para este concerto?
É para mim um prazer tocar ao lado de nomes como Ken Vandermark e Paal Nilssen-Love, são dois músicos de referência do jazz actual. Julgo que toquei por três ocasiões na ZDB, sempre integrando grandes formações. Desta vez apresentarei um solo de trompete “a cru”, sem grande aparato electrónico, e será uma oportunidade para apresentar em público outras experiências que tenho explorado no trompete há já algum tempo, o que se poderá chamar de "trompete preparado". Para este concerto gostaria de trabalhar a textura sonora e existe uma preocupação em preencher o espaço físico vazio com o som. Através de mecanismos que tenho desenvolvido pretendo tornar o trompete num instrumento menos focado espacialmente e mais difuso, sinto que há mais espaço quando toco a solo. Apesar de dar grande valor à troca de ideias com outros músicos em palco, consigo gerir melhor a composição/improvisação quando estou sozinho.
Como vês o actual panorama da improvisação e do jazz em Portugal?
Não estou muito dentro do jazz português... Tenho visto bons músicos frutos das escolas de jazz, mas também sinto que uma cultura musical não pode ser avaliada apenas pelo desempenho musical. O jazz sempre foi mais que isso, não se pode ficar pelo reprodução de uma cultura/estética. Pessoalmente acho que é preciso criar de acordo com o contexto em que se existe, nesse sentido gostaria que o jazz em Portugal tivesse uma identidade mais própria, de certo modo sinto que o mesmo acontece na música improvisada, também tenho me deparado com estéticas muito distintas entre si e interessantes. Há muita vontade em tocar e escutar – é de salientar algumas inciativas que têm vindo a consolidar a música experimental por Portugal tal como o MIA, a Associação Terapêutica do Ruído, a Sonoscopia e o Sábaduos, entre muitas outras. Sinto que a cena lisboeta está muito activa e estimulante, falta talvez uma maior organização e cooperação entre os intervenientes para abranger um maior público.
Quais são os teus planos para o futuro?
Estou neste momento a trabalhar para o lançamento de álbuns de Círculo de 3Pontas, Zarabatana e Sirius, que deverão sair em 2014. Tenho também uma longa lista de músicos com quem gostaria de trabalhar, entre eles o Abdul Moimême. Quero dar continuidade ao cruzamento da música com outras expressões de carácter mais visual. E quero tocar e tocar em muitos sítios diferentes.