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Mler ife Dada
L’amour va bien merci: o regresso


1984. Portugal era diferente, outro, mas curiosamente com alguns paralelismos com este início de 2014: o FMI andava por cá e havia Mler ife Dada ao vivo e a cores. Uma das bandas mais importantes da música portuguesa, quiçá a melhor banda de sempre, lado a lado, com a Banda do Casaco ou o os Pop Dell’ Arte. A sua pop não era uma pop qualquer. Se precisam de rótulos posso dizer que era pop art musical, que misturava influências de estilos musicais diversos, da new wave ao jazz e ao canto lírico, passando pelo fado e a música africana. Tudo regado a letras complexamente geniais. Era o inconfundível estilo Mler ife Dada. Com enfoque em Dada (ver movimento artístico com esse nome).

Essa concepção arty das coisas deu-nos dois discos inesquecíveis, alicerçados no génio criativo à solta de Nuno Rebelo e Anabela Duarte - Coisas Que Fascinam e Espírito Invisível - obrigatórios em qualquer discografia que se preze. Todavia não fizeram carreira de continuidade como outros monstros sagrados dos nossos oitentas. Uma nova década e Nuno e Anabela foram à sua vida, e se muita coisa boa e interessante como é seu timbre têm feito até aos dias de hoje, interessa-nos muito seguir o ciclo que volta a colocá-los juntos, como Mler ife Dada, de novo. Ao vivo e a cores outra vez, agora com smartphones a filmar. O primeiro concerto será nem mais nem menos em Lisboa, no CCB, no dia dos namorados (para os distraídos: 14 de Fevereiro). A dias dessa noite especial, os dois falaram com o Bodyspace sobre o passado, o presente e este futuro maravilhosamente próximo.
A que sabe o regresso?

Nuno Rebelo: Sabe a caramelo.

Anabela Duarte: A framboesas.

Como surgiu a ideia de regressarem? Li algures que partiu de uma conversa entre o Nuno Rebelo e o editor Tiago Faden, confirma-se? Escolheram de propósito a celebração dos 30 anos ou simplesmente calhou?

Anabela Duarte: Calhou ser a celebração, podia ter sido outra coisa. Mas já havíamos pensado em qualquer coisa em 2003, ainda sem o Tiago, contudo não avançou.

Nuno Rebelo: Confirma-se, e o pretexto foi precisamente a celebração dos 30 anos de Mler ife Dada.

Já tive o prazer de ouvir "Valete (de Copas)", na maravilhosa versão 2013, que se encontra na net. Dá para perceber claramente a musicalidade mais cheia, mais densa, sente-se um revigor pop, com mais gente, mais arranjos. Imagino-vos satisfeitos com o resultado. Nesse tema em particular, em 1987, ficaram satisfeitos com o resultado? E com os outros temas? O minimalismo dos arranjos na altura (não menos maravilhoso) era assumido ou já nessa altura acharam que faltava algo mais?

Nuno Rebelo: Pessoalmente, sempre fiquei satisfeito com todos os temas dos Mler ife. Mas jamais chamaria “minimalistas” aos arranjos dessa época. O espírito com que faço os arranjos para os Mler ife agora é o mesmo com que os fazia então.

Anabela Duarte: Gosto muito do "Valete", é um clássico e tem muito espaço para a voz e efeitos de voz. E ainda não ouviram a versão completa que tem cerca de 6 minutos! Pelo meio, desenho algumas gaivotas com a voz – influências do “soundscape” de Lisboa, e as cordas também estão mais presentes. Os temas estão a ficar melhor e há um grande entusiasmo entre todos nós. Neste momento, é como se estivessemos a experimentar coisas novas e com mais meios. O som dos Mler é mais bifurcado e barroco, do que minimalista. Eram, talvez, menos texturados, os arranjos.



Francisco Rebelo (Orelha Negra, Micro Audio Waves) no baixo; Filipe Valentim (Radio Macau, Wordsong) nos teclados; Samuel Palitos (A Naifa, Radio Macau) na bateria; e um trio de sopros e outro de cordas. Como aconteceu este reunir de músicos, a que critério obedeceu? Provavelmente são todos fãs vossos e vós fãs deles?

Anabela Duarte: Eu já conhecia o Francisco de alguns projectos comuns anteriores e achei óptima ideia. Os outros vim a conhecer e estamos muito bem acompanhados. Resultou na música e se resulta na música, não há mais nada a dizer.

Nuno Rebelo: Eu já tinha trabalhado com estes músicos no passado. Das excelentes experiências que tive com eles, resultou uma cumplicidade musical e humana que muito prezo e que me levou a sugerir à Anabela que fossem estes os músicos a integrar o projecto actual. Isto aplica-se também ao Eduardo Lala (trombone). Os restantes sopros, (João Cabrita – saxes, e José Raminhos - trompete) vieram por sugestão do Francisco Rebelo, já que eu não os conhecia.

Além de concertos com novos arranjos nas canções, o vosso regresso vai passar por material novo? Há algum disco novo dos Mler ife Dada na calha?

Nuno Rebelo: Não se sabe. Por enquanto não há nada na calha. Por agora, trata-se de celebrar os 30 anos deste grupo que me deixou sempre com vontade de voltar a tocar aquelas músicas. E agora estou a poder fazê-lo.

Anabela Duarte: Depende da nossa vontade e das circunstâncias. A vontade só não é poder.

Podem falar um pouco sobre a recriação do vosso tema “Nu Ar”. Ele foi mesmo o vosso primeiro tema?

Anabela Duarte: O tema é ideal para abrir o concerto porque funciona como uma espécie de avatar dos Mler, como um manifesto da imaginação.

Nuno Rebelo: Sim, apareceu numa improvisação que fiz com o Nuno Canavarro e o Pedro d'Orey, ainda antes da existência dos Mler ife. Poucos meses mais tarde, nascem os Mler ife Dada, com o Pedro d'Orey (voz) e Kim (guitarra): resolvemos concorrer ao concurso de Rock Rendez Vous (que acabámos por vencer) e para o efeito gravámos uma maquete com este tema. Para essa maquete cristalizaram-se algumas ideias que vinham já da tal improvisação e o Pedro escreveu uma letra para o tema.

A voz da Anabela e a sua presença são tão marcantes que é fácil esquecer as outras vozes da vossa história. O que é feito de Pedro d’Orey primeiro, Sofia Amendoeira depois?

Nuno Rebelo: O Pedro d'Orey ainda recentemente era a voz dos Wordsong. Da Sofia Amendoeira nunca mais soube nada. Houve ainda um outro cantor, na fase pós-Pedro d'Orey e pré-Anabela, chamado Filipe Meireles que também marcou muito o grupo, apesar de infelizmente nunca se ter gravado nenhum disco com ele. O tema “Valete (de copas)” vem desta época com o Filipe. Mas se o Pedro lançou os fundamentos dos Mler ife, é um facto que foi com a Anabela que o projecto cresceu e existiu em pleno.

Anabela Duarte: Não vamos atafulhar este concerto com fantasmas, mas com “mortos” bem vivos!

Sobre a saída da Anabela da banda. Perdoem-me a indiscrição, mas vocês chatearam-se mesmo? Chegaram a deixar-se de falar e agora fizeram as pazes, ou a amizade prevaleceu fora da banda?

Anabela Duarte: As pessoas chateiam-se todos os dias. E cada vez mais. Por isso a musica é como um bálsamo, um oásis no meio do deserto – acho que é esse o segredo da nossa reconciliação. Na altura tentaram afastar-nos da música, tornámo-nos demasiado humanos e foi o que se viu. Voltámos e é o que interessa.

Nuno Rebelo: Chateámo-nos e nunca mais nos vimos até que a Universal resolveu fazer a proposta de nos juntar em 2003 para fazermos umas versões novas para a colectânea Pequena Fábula. Já tinha passado muito tempo e foi um reencontro feliz, que creio que abriu as portas para que possamos estar agora a preparar este concerto.

É verdade que houve muitos fãs que se manifestaram a favor do regresso da Anabela, depois da Sofia ter ficado com a voz da banda?

Nuno Rebelo: Nunca ouvi falar disso...

Anabela Duarte: Acho que foi no dia 15 de Setembro.....



Neste tempo todo arrependeram-se alguma vez de os Mler ife Dada terem acabado? Ou imaginaram alguma vez no que seria a banda se não tivesse acabado, se tivesse continuado a lançar discos a la Rolling Stones-Xutos? Como seriam esses Mler ife Dada ao 15º disco, por exemplo?

Nuno Rebelo: Nunca me arrependi do fim dos Mler ife Dada, e não gostaria nada de ter ficado agarrado a este projecto todos estes anos. A minha vida tem-me proporcionado inúmeras outras experiências musicais e artísticas que creio que me têm enriquecido mais do que se tivesse continuado ligado aos Mler ife Dada e, em geral, ao contexto da música como negócio e não como forma de arte. Quer se queira, quer não, os Mler ife situavam-se nesse contexto.

Anabela Duarte: Se não tivesse acabado provavelmente era uma grande chatice, aí concordo. Mas podia ter demorado mais um bocadinho, também é verdade. Acho que nos vamos redimir. E dentro do contexto de que o Nuno fala, acho até que não estivemos nada mal. O que sempre proliferou também, foi muita música a sustentar-se do discurso da Arte, e muito bem paga, por sinal. Como nunca fiquei rica com os Mler, nem com os restantes projectos individuais, não sei de que negócio se trata.

Coisas que fascinam . O nome do vosso primeiro e fantástico álbum leva-me a perguntar isso mesmo: que coisas vos fascinam, literalmente, nos tempos que correm?

Anabela Duarte: Coisas simples, minúcias. O vinho, o amor.

Nuno Rebelo: O meu filho Igor que tem 3 anos. E outras 343.927 coisas.

Que música têm ouvido neste anos?

Nuno Rebelo: Sobretudo música ao vivo, nomeadamente concertos de música improvisada. Actualmente, ouvir música gravada dá-me a sensação de estar a ver uma fotografia ou um vídeo, em vez de estar realmente na paisagem. Nesse sentido, o que gosto de ouvir em disco são as fotografias musicais da minha infância: Cat Stevens, Santana, Herb Alpert, Burt Bacharach...

Anabela Duarte: Alguns concertos rock e pop, música da vanguarda americana, anos 30 aos nossos dias, musica electro-acústica e ultimamente tenho vontade de ouvir alguma clássica. Tenho grande interesse pela Sound Art, mais até por motivos intelectuais do que propriamente sensoriais, e sobretudo pelos estimulantes cruzamentos disciplinares e pela vontade de experimentar. E também fazem discos, arquivos, é genial poder ouvir determinada localidade, tirar-lhe o retrato sonoro, cuja utilização, mobilidade e enquadramento são quase infinitos. No outro dia estava a pensar sobre o som das formigas, ou os hidrofones que captam vibrações geodésicas no fundo do mar.

E até porque estamos ainda pertinho das listas de fim de ano, não sei se são “haters” de listas, mas cá vai: discos que vos tenham marcado em 2013?

Anabela Duarte: Eu tinha um disco preparado para 2013 mas ficou a aguardar. Voto em Sonic Postcards, um projecto britânico de índole educacional.

Nuno Rebelo: Como disse, não oiço discos. Por esse motivo, se algum disco me marcou em 2013 foi o meu próprio CD Removed from the flow of time, que consiste em improvisações experimentais em guitarra, gravadas ao longo de 20 anos. Este disco foi editado pela editora Creative Sources.

Sempre vos quis perguntar isto: como chegaram ao vosso nome Mler ife Dada, ou a Zuvi Zeva Novi, são eles próprios remanescentes do vosso próprio dadaísmo, movimento que adorava criar palavras imaginárias?

Nuno Rebelo: O nome Mler ife Dada foi inventado pelo Pedro d'Orey, apareceu precisamente na letra do tal tema “Nu Ar”, foi aí que o fomos buscar. Por isso me pareceu importante tocar este tema a abrir o concerto, não só por ter sido o primeiro tema dos Mler ife mas também por ser o tema que baptizou o projecto. O "Zuvi Zeva Novi" é outra história: uma noite de insónia em que essas palavras se repetiam incessantemente na minha cabeça, impedindo-me o sono. Comecei a compor mentalmente um swing com essas palavras, para as exorcizar, e deixei uma nota num papelinho que dizia “zuvi zeva zuvi zeva zuvi zeva novi – fazer um swing com estas palavras”. Meses mais tarde encontrei esse papelinho e resolvi dar corpo à ideia.

Anabela Duarte: Ou a Pandra Bomba. Mais do que um nome, Mler ife Dada é uma maneira de ser diferente, um apelo ao imaginário e à inovação, em formato pop.

Zuvi Zeva Novi e muito obrigado!


Nuno Leal
nunleal@gmail.com
24/01/2014