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Lawrence English
Feliz, Mr. Lawrence?


Basta estar atento aos movimentos astrológicos e dar conta de que a reputação é um daqueles bens que se processa com uma rapidez diferente, consonante com os meios em que se movimenta. Isso leva a que um período áureo mantido no hip-hop equivalha quase sempre a um reinado. Num plano subterraneamente mais discreto, os diversos disfarces e metamorfoses dos alquimistas da electrónica baralham a motivação aos inquisidores, na hora de levar a cabeça de alguém à guilhotina. Lawrence English é, de há uns anos para cá, um imenso espectro que não se livra de um tentáculo sem de imediato substituí-lo por dois. Programa texturas adjectivadas pelo seu nome, compõe bandas sonoras imaginárias, produz discos que desafiam as convenções do hip-hop, faz dos seus field recordings uma nova geografia, colabora (em palco e fora dele) com meio mundo, serve de emissário à melhor electrónica do continente marsupial com a manutenção apaixonada da sua label Room 40. Todas elas representam facetas de um mesmo mapa. X marca o lugar onde jaz a felicidade. Lawrence English facilitou uma série de coordenadas ao Bodyspace.
No que se refere à tua viagem pela Ásia, eras capaz de partilhar connosco alguma experiência que te tenha levado a manipular a guitarra a partir de uma perspectiva diferente?

Na verdade, grande parte deste álbum progrediu a partir de situações ocorridas na Nova Zelândia. Fui convidado para lá actuar no Festival Alt.Music. Fui inserido num espectáculo ao lado de Tetuzi Akiyama, Alan Licht e Dead C, num pub chamado The Kings Arms, e isso fez-me repensar a forma de abordar a performance. Achei que podia ser interessante trabalhar com guitarra. Por isso, explorei uma série de coisas no processamento ao vivo de guitarra, quando ainda estava no meu apartamento antes do concerto. A noite acabou por revelar uma série de ideias. Tudo funcionou tão bem que me decidi a uma investigação mais aprofundada.

Na Ásia, o manga [nr.: nome atribuído à banda desenhada feita no Japão] parece ter um papel preponderante na vida das pessoas e normalmente acaba desgastado - como o vemos na capa de Happiness Will Befall [n.r.: numa foto de Aki Onda que confere imensa identidade ao disco]. És capaz de estabelecer a analogia com o teu trabalho? Acreditas haver um “pico” ou um tempo apropriado para absorvê-lo?

Questão interessante. Tenho pensado imenso na qualidade descartável das coisas, mas geralmente tendo em mente a música pop que tem vindo a ser desvalorizada – o que acho uma pena. Creio que no contexto de grande parte da música investigante ou experimental, existe uma intemporalidade que não pode deixar de lhe ser associada. É óbvio que alguns instrumentos podem avaliar a idade do trabalho, mas, se as ideias forem realmente fortes, é bem provável que resistam ao tempo.

Happiness Will Befall parece traduzir em disco aquele sentimento de “solidão entre as multidões”. Correcto?

Efectivamente, o título refere-se a uma canção de um filme japonês que, na sua tradução literal, apontava para a ideia de “alcançar a felicidade através da companhia de algumas pessoas ou objectos”. Ideia essa que me agradava.

De que forma será o disco transposto para as performances ao vivo? Acreditas na hipótese de terminares a digressão com uma concepção diferente do disco?

Claro, isso terá certamente acontecido no passado e, de facto, houve até concertos que moldaram novos trabalhos a serem editados no fim deste ano pela Noise Asia. Tenho outro disco baseado em guitarra chamado It’s Up to Us To Live, que deve ser lançado em fins de Novembro ou no início do próximo ano...

Sei que John Chantler [n.r.:autor do promissor Monoke já abordado por aqui] recentemente se juntou a ti numa das performances centradas em Happiness Will Befall. Como correu isso? Quão diferente foi de uma prestação a solo e que novidades trouxe John ao set?

Sim, juntámo-nos no Smallfish Café [n.r.: um estranho híbrido que reúne sala de espectáculos e distribuidora de discos]. Nem sequer foi directamente motivado pelo Happiness, mas usei algum processamento de guitarra e funcionou às mil maravilhas! O John Chantler contribuiu para o processamento de sons ao vivo, enquanto eu me ocupei do laptop e guitarra. A sessão tornou-se muito visceral e intensa. Foi um tremendo prazer. Creio que irá ser lançada em tiragem limitada pela Smallfish...

Que compositores te inspiraram na feitura deste disco?

Na verdade, desta vez nem andava a escutar muita música durante as viagens. Em vez disso, empenhei-me bastante em field recordings [n.r.: a serem escutados já no próximo ano, num disco que servirá de sequela a Transit], e isso levou-me a prestar uma maior atenção aos ambientes e à forma como poderiam encontrar reflexo na minha música. “Two Weeks I’ll Never Have Again” [n.r.: provavelmente, a mais representativa das faixas do novo disco] surgiu quase como que uma resposta a duas semanas a trabalhar nesse tipo de gravações em Adelaide [n.r.: cidade situada no sul da Austrália].

Fiquei com a impressão de que no novo disco exploras diferentes tons extraídos a sinos. És um apreciador de Gamelan [n.r.: uma das vertentes tradicionais da música Indonésia]?

É provável que te estejas a referir à modulação de dois sons, mas adoro Gamelan. Tenho escutado isso durante a minha estadia no Reino Unido, ao longo desta digressão que agora acaba. Também aprecio algumas banda sonoras em que foi utilizada, como por exemplo a do Akira.


Achas que Happiness Will Befall funciona melhor enquanto experiência auscultada ou escutada em espaços amplos? Ou será que funciona em ambos os casos?

Acho que pode resultar em ambos. Inclui imensos detalhes, mas, ao mesmo tempo, uma abertura que me agrada, algo que espelha os ambientes onde foi gravado.

Acreditas que o disco se enquadra no catálogo e estética da Crónica? Qual é a tua opinião sobre a editora?

Tive a oportunidade de tomar contacto com a Crónica enquanto estive em Portugal [n.r.: muito provavelmente através da companhia do mentor da editora portuense - Miguel Carvalhais]. Sinto que o álbum se enquadra no trabalho deles. Tenho para mim que um dos pontos mais interessantes da Crónica reside no facto de manter uma estética sónica, em vez de estilística. Os seus discos soam diferentes a nível de textura, etc., mas partilham de uma mesma qualidade genuinamente curiosa e dedicada à investigação. Isso acabará por se reflectir na durabilidade da Crónica ao longo dos anos. Estou muito satisfeito com o facto do disco ter sido lançado por eles, pois estão a fazer um excelente trabalho!

Fala-nos um pouco de “In Preparation” – faixa incluída na compilação Can I Have 2 Minutes of Your Time? [n.r.: lançada recentemente pela Crónica]. Está vinculada a algum disco teu?

Trata-se de uma peça isolada – algo especificamente meditativo em relação ao conceito da Rádio sobre o qual a compilação se debruçava. Foi interessante ver-me obrigado a um tempo tão limitado para tentar articular qualquer coisa.

Que tipo de software tens utilizado ultimamente?

Sobretudo o Ableton Live e Maxmsp para prestações ao vivo.

Nunca dás por ti a pensar se Brisbane [n.r.: onde Lawrence English se encontra actualmente a viver] não terá já secado enquanto fonte para field recordings? Quais são para ti as área mais férteis no que diz respeito a field recordings?

Acho que todos os ambientes possuem a sua fertilidade, desde que se esteja disposto a um maior empenho e redobrada atenção na senda de novas fontes sonoras. Antes do ano terminar, irei proceder a uma instalação sonora para pessoas com défice auditivo, baseada apenas em sons captados em Brisbane.

Acreditas que um dia tudo o que compões se venha a conjugar num atlas imenso? Cultivas a noção de uma dimensão englobante?

Não sei a que te referes com “atlas”... Mas posso afirmar que existe uma série de temas e conceitos que guiam grande parte do meu trabalho.

Colaboraste com Rosy Parlane, que, por sua vez, juntou-se a Fennesz numa série de ocasiões. Se ampliarmos isso à extensão de três graus, quase parece que toda a gente se encontra unida por uma vasta teia de colaborações. Não achas que a individualidade pode ser um pouco afectada por isso?

Na verdade, nunca cheguei a tocar com o Rosy. Apenas organizei uma das suas performances o ano passado. No que diz respeito a colaborações e individualidade, gosto de acreditar que, se mantiveres uma vincada visão sónica, as colaborações acabam por realçar isso – através do surgimento de novas possibilidades e ideias, em vez da repetição. Sempre achei que as colaborações estimulam o meu trabalho.

Quando te dedicas a colaborações, aprecias mais a oportunidade de fazer colidir universos ou de encontrar uma terceira via na fusão de duas ou mais visões?

Ambos os métodos podem ser interessantes. Há bem pouco tempo gravei algum material com Domenico Sciajno em Palermo e isso levou-me a explorar registos diferentes e, por isso, empolgantes. Acabou também por resultar, acho eu.

Já pensaste no novo disco de Object [n.r.: que já conta com um excelente tratado de hip-hop experimental na Quatermass e correspondente resenha aqui no BS]. Se assim for, quão diferente será?

Tem gravitado na minha mente, mas creio que será lançado apenas no fim do próximo ano, na melhor das hipóteses. Ainda estou a matutar sobre uma série de ideias.

© Teresa Ribeiro

Como correram as coisas no Porto? Apreciaste a estadia?

Fantástico – excelente cidade, excelentes pessoas, excelente comida. Um prazer autêntico.

Parece-me que a Austrália tem vindo a edificar a sua própria e vibrante cena de electrónica. Quão vital foi o papel da Cyclic Defrost [n.r.: a excelente zine australiana que pode ser lida em http://www.cyclicdefrost.com] nesse aspecto? Eras capaz de nos recomendar alguns talentos que possam consolidar essa ideia?

A Cyclic Defrost é uma óptima zine e o Sebastian Chan – que tem mantido as rédeas da publicação – é um brilhante embaixador da música australiana, o que me parece óptimo. No que toca a dicas, são demasiadas para serem aqui mencionadas.

Já leste o Fiskadoro [n.r.: livro de Denis Johnson que tinha sido anteriormente recomendado pelo escriba ao próprio Lawrence]. Se sim, consegues relacioná-lo com algum dos teus discos?

Estou actualmente a lê-lo...


Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
26/10/2005