Será muito provavelmente tempo perdido todo aquele que se ocupe de descobrir um padrão absoluto nas formas aleatórias do caleidoscópio. Não adianta, por isso, cagar sentenças que procurem fazer de um disco de Animal Collective uma tábua escrita em hebraico. Importa primeiro tentar descobrir se não terão sido a ganga e a televisão por satélite os responsáveis pelo desuso da manifestação afectuosa por instinto. A arrogância do que se auto-proclamou Sapiens tem vindo a desviá-lo dos compromissos primordiais a que obriga a vida em comunidade. O cão só é o melhor amigo do homem porque nunca meditou muito sobre essa sua subserviência indulgente. Talvez o melhor seja mesmo mijar de pata levantada ou chorar baba e ranho, e, na despreocupação desses comportamentos, voltar a apreciar a sensação do dar por dar (e não porque é socialmente gratificante, Paula Bobone).
Feels é mais uma dádiva. Simplificada e gloriosa na sua essência.
Parece haver uma qualquer urgência radiante em descobrir e reparar os elos perdidos que contribuíram para corromper a natureza daquele que um dia usufruiu do fogo para se aquecer e alimentar e agora o usa para se auto-destruir. Isso não faz da matilha que Brooklyn (Zoo) amamentou uma nova seita evangelista. Contudo, os discos de Animal Collective serão, na maior parte dos casos, comparáveis a fabulosas experiências “maiores que a vida” (“larger than life” à escala de assistir aos Radiohead num dos Coliseus). Panda Bear (Noah Lennox segundo o registo civil) falou-nos disso e do impacto do
habitat luso na sua música, enquanto integrante do Collective ou fora desse.
Como
se sentem agora que o novo Feels está pronto? [n.r.: a questão soa melhor
em inglês e a entrevista começa com: ”How does it “Feels” having this new
record ready?”] Eras capaz de me falar do processo que até ele conduziu
e da vossa reacção perante o resultado?
Estávamos completamente “passados” em relação ao disco, mas fomos muito exigentes
em relação ao material, de maneira que não parámos até estarmos realmente
satisfeitos. Tocámos as músicas de
Feels durante mais de um ano, em
digressão e por aí, daí que esteja pronto para avançar rumo a novos sons.
Mas ainda estou imerso no disco. Despendemos um mês de gravação constante
com o Scott [n.r.: Colburn, ultimamente dedicado a compilar música do mundo para
a especializada Sublime Frequencies, membro dos obscuros Clímax Golden Twins
e colaborador de Mark Kozelek nos Sun Kill Moon] na sua casa-igreja e acabou
por ser o mais divertido dos discos nesse aspecto. Organizávamos patuscadas
e assistíamos a filmes à noite.
Não consegui deixar de pensar em Feels como um disco de “paisagens
emocionais”, em parte porque as suas ambiências me recordam o teledisco “Jòga”
da Björk [n.r.: que na música refere as tais “emotional landscapes”]. Concordas?
Acreditas que o termo se aplica mais a este do que a qualquer outro disco
de Animal Collective?
Sim, concordo, mas acho que todos os nossos discos correspondem a essa definição,
pelo menos para mim. A maioria das coisas abordadas são muito pessoais e muitas
vezes estamos a cantar uns sobre os outros. A maioria das músicas de
Feels correspondem a expressões de amor e do próprio amar, e isso será certamente
algo emocional. Nada disso foi totalmente intencional, mas houve tanto amor
nas nossas vidas durante o último ano que suspeito que isso haveria de se
manifestar.
O que levou Eyvind Kang a integrar as gravações
do disco? Parece haver uma afinidade natural entre o Feels e o The
Story of Iceland. Concordas? O Eyvind moldou de alguma forma o vosso material?
Conhecíamo-lo minimamente antes de ter gravado connosco e agora todos o achamos
o mais dócil dos tocadores de violino e cordas. Gravámos em Seattle, bem perto
de onde ele mora, e o Scott Colburn conhece-o bem. Achámos que seria porreiro
tê-lo a tocar nas nossas músicas porque nunca tínhamos incluído cordas e ele
foi a nossa primeira escolha. Sorte a nossa que ele estava disposto a isso.
Ele é um tipo bastante “meloso” e gosto muito dele. Não me parece que tenha
moldado muito os nossos sons. A sua intervenção é superminimalista. Ele começou
por não conhecer as músicas, mas, após tê-las escutado, “apanhou-as” muito
rapidamente. Gosto muito do
The Story of Iceland. Ofereci-o à minha
mãe certa vez.
E a Anna Valtysdottir [n.r.: parte integrante dos parceiros de editora Múm que
em Feels se ocupou das teclas]? Como aconteceu? Fiquei com a sensação
de que o seu contributo reduz a temperatura que sobe a cada vez que se lançam
nos refrães e percussão. Achas que ela trouxe para o disco um pouco daquele
esplendor glaciar aliado ao aconchego hibernal dos Mùm?
Sim, creio que sim, mas essa também é a natureza do piano. Julgo que tínhamos
consciência disso e também procurámos isso mesmo. Tínhamos partilhado uma
série de digressões com os Mùm e conhecíamo-los muito bem. Sabíamos que ela
aceitaria acompanhar as nossas músicas ao piano e damo-nos optimamente. Por
isso, pareceu uma excelente ideia. Ela já conhecia bem as músicas, tendo em
conta a regularidade dos concertos que partilhámos com os Mùm.
A amplitude de temperaturas de Feels parece
ser mais vasta que a de qualquer outro dos vossos discos. Explode com aqueles
primeiros delírios uptempo, revolve a um núcleo gélido e depois estabiliza
num campo intermediário. Achas que o Collective responde a experiências diárias
um pouco como os animais respondem às várias mudanças de luminosidade durante
um eclipse ou às vibrações que antecedem um terramoto? Isso aplica-se aos
vossos concertos, não é?
Creio que toda a gente responde a esse tipo de coisas. Acontece que algumas
pessoas tem maior consciência disso que outras. Mas acho que se torna impossível
não nos influenciarmos pelo que nos rodeia, mas, lá está, isso aplica-se a
quem estiver realmente atento. Ao vivo as coisas tornam-se um pouco diferentes,
já que tens de lidar com o espaço em que te encontras e como toda a gente
à tua volta se está a sentir, o que estão a pensar e por aí. Procuramos concentrar
uma maior energia e produzir algo de diferente no momento partilhado com todo
o público. Não estamos assim tão preocupados em respeitar todas as notas à
risca. Acredito que tenhamos uma relação instintiva com a música, um pouco
como os animais ou as crianças.
Se o comparares a Young Prayer, quão mais pessoal será o teu contributo
em Feels?
Talvez porque me tinha dedicado a
Young Prayer, optei por uma intervenção
mais discreta neste disco. Diria que o
Feels comporta menos de mim,
se o comparares a
Sung Tongs ou alguns dos outros discos. Dedico-me
quase em exclusivo à percussão, sons diversos e voz para complementar as partes
do Davey [n.r.: Avey Tare, na sua forma Animal] no
Feels.

Atendendo a que muitas das faixas que compõem Feels estavam já “em construção” e a ser tocadas ao vivo pela altura em que Sung
Tongs começou a ser abundantemente aclamado, não faz muito sentido mencionar
a “pressão” como um factor nestas gravações, certo? Em todo o caso, suspeito
que a “pressão” não vos afecte muito...
Sim, chega a ser difícil. Especialmente durante estes dias [n.r.: os que antecedem
o lançamento oficial e digressão que promove o disco]. Mas tentamos não pensar
muito nisso. Mas sou capaz de sentir diversas pressões, ainda que isso não
seja necessariamente prejudicial. Tentamos dar prioridade à nossa felicidade,
porque,
a priori, se não estivéssemos “completamente passados” com
isto, que razão teriam os outros para tal? Se é que me entendes… Seremos muito
provavelmente os primeiros a exercer pressão sobre nós próprios, com vista
a produzirmos algo de novo e realmente fresco. Algo que nos dê um tremendo
gozo ao tocar ao vivo.
O Devendra Banhart mencionou os bons tempos passados em Portugal em “Santa
Maria de Feira”, incluída em Cripple Crow. Algum episódio ou experiência
tua por cá manifestou-se directamente na tua música? Ou a vivência acaba por
corresponder a algo enevoado que se vai derramando aos poucos sobre o que
compões?
O material que tenho composto em nome próprio – durante este último ano -
está impregnado de Portugal implícita e explicitamente. Mas quase sempre por
efeito de coisas rotineiras, como andar por aí com a minha esposa [n.r.: Noah constituiu
família em Portugal], a nossa casa com vista para o rio, ir à mercearia e
por aí. Eu adoro as mercearias. A organização, as cores e a música. Sim, creio
que essa tal “névoa” se tem vindo a formar há alguns anos. Acho que estou
à espera que as coisas abrandem, mas provavelmente isso não acontecerá.
Que opinião tens da actual música portuguesa? Por
mais que isto soe a cliché, já cultivas algum tipo de relação com o fado?
Eu gosto de fado, mas ainda não assisti a nada ao vivo e gostaria de fazê-lo.
Eu adoro António Variações. Quase parece o equivalente português do Ariel
[n.r.: Pink, que já conta com dois discos na Paw Tracks e actuou com Panda Bear
aquando da sua passagem pela sala de espectáculos que Noah menciona já de
seguida]. A Zé dos Bois parece-me ser um sítio realmente especial na Europa
e acho que deviam ter imenso orgulho no que têm vindo a fazer. Sempre foram
extremamente simpáticos para comigo. Toda a música portuguesa que tenho vindo
a conhecer concentra-se naquele lugar e nas pessoas que lá tocam.
Podemos estabelecer Prospect Hummer [n.r.: o EP conta com resenha nesta
casa] como um convite dirigido a Vashti Bunyan para se juntar a vocês na celebração
da salubridade de Sung Tongs? Ou foi um disco elaborado em conjunto?
A primeira hipótese parece-me muito mais lógica. Basicamente, o
Prospect
Hummer foi elaborado a partir de músicas que nunca chegámos a gravar para
Sung Tongs, mas que tinham sido elaboradas nesse sentido. Incluiu uma
nova faixa que eu e o Joshmin [n.r.: conhecido por Deakin assim que ganha pêlo animal]
tocámos há muito tempo numa passagem pelo Japão. Com o seu contributo vocal
nas principais partes, a Vashti fez do nosso o seu próprio disco e não quero
de forma alguma subestimar o seu contributo naquelas
jams.
Já escutaste o seu novo disco - Lookaftering?
És capaz de associar o título ao facto de ela ter sido tão cortesmente aclamada
e acarinhada por músicos como vocês?
Entendo o teu ponto de vista, mas não sei ao certo se será essa a sua intenção.
Já ouvi e gostei do disco.
Acreditas que a generosa recepção de que Sung
Tongs foi alvo contribuiu para uma aceitação gradual de um drone tão denso e estranho quanto aquele que escutamos em “Visiting Friends” [n.r.: a
mais longa e talvez “difícil” das faixas que compõem o disco]? Acreditas que
o seu sucesso ajudou a que as etiquetas se tornassem inúteis quando associadas
ao Collective?
Eu acho que as etiquetas são merdosas quando associadas a qualquer banda.
Por vezes insuflam a exposição de bandas que o merecem e isso é óptimo, mas
creio que os efeitos negativos são bem piores. É uma merda dares por ti enclausurado
nessa teia. Contudo, duvido que o
Sung Tongs ou “Visiting Friends”
tenham sido universalmente aplaudidos. Algumas pessoas odiaram o
Sung Tongs e especialmente “Visiting Friends”. Nem toda a gente, mas existem certamente
detractores. Mas julgo que esses existem desde que começámos. Não podemos
agradar a todos e quanto mais depressa aceitarmos isso, melhor.

O Lou Barlow mencionou nos seus diários [n.r.: nunca é
tarde para descobrir http://www.loobiecore.com/] que a sua pequena filha adora
adormecer ao som de Sung Tongs. Prescreverias o disco como soporífero?
Achas que o Feels pode ser mais adequado a essa função? Não ficaram
surpreendidos com o facto de Sung Tongs quase se ter tornado num item
terapêutico na vida caseira das pessoas?
A sério?! Muito me contas. Não fazia ideia disso. Fico delirante só de pensar
que ajuda as pessoas de alguma forma. Eu aprecio música para escutar ao adormecer
ou acordar. Esses serão muito provavelmente os períodos do dia em que mais
gosto de escutar música. Não oiço música frequentemente – até porque estou
sempre a trabalhá-la -, mas, quando o faço, favoreço a noite, a manhã ou as
ocasiões especiais, tal como quando estou a lavar um monte de pratos. Acho
que o
Campfire Songs é o disco mais adequado ao acordar e despertar,
e não o
Feels. Mas é bem provável que o
Feels seja um disco
mais sonolento/sonhador que
Sung Tongs, que é muito mais enérgico se
exceptuarmos “Visiting Friends” e uma ou outra das suas últimas faixas.
A globalidade de Sung Tongs não vos terá
valido algumas propostas estranhas de publicitários ou algo semelhante? Agora
não há disco emblemático que não conheça a sua versão de remisturas. De que
forma encaras essa probabilidade? Que nomes gostarias de ver assinar um remix
de uma das vossas faixas?
Sim, recebemos alguns propostas para anúncios e isso, mas não só referentes
a
Sung Tongs. Parece-me que os publicitários têm procurado música mais
obscura por ser mais barata. Não sei ao certo. Decidimos manter a distância
desse tipo de coisas, por agora. Eu adoraria ver as nossas faixas remisturadas.
A minha primeira escolha seria Olaf Dettinger [n.r.: o mago da electrónica sedeado
na alemã Kompakt]. Ele é o maior.
Grande parte das improvisações de toda a família
Collective [n.r.: ou seja, todos os projectos nascidos a partir da base Animal Collective]
têm vindo a emergir lentamente em bootlegs e lançamentos muito obscuros
[n.r.: até porque limitados a um número reduzido de cópias]. Que parte de tudo isso
está destinada a ficar para sempre perdida e que outra parte surgirá mais
tarde ou mais cedo?
Estamos a pensar lançar um conjunto de três discos baseados em material gravado
ao vivo nos últimos cinco anos, ou por aí. Tenho a impressão de que muito
do material lançado em
bootleg será incluído. As pessoas gravam os
nossos concertos e fazem trocas. Isso agrada-nos. Alguns de nós chegavam a
fazer o mesmo em concertos dos Pavement ou sei lá que mais. Podes ir até http://rerz.net/
[n.r.: excelente
fan site de Animal Collective] e contactar aquela rapaziada.
Estou certo de que te podem dar a conhecer todo o tipo de formas para conseguires
os concertos e bizarras sessões de rádio que tenhamos feito.
Existe algum tipo de conspiração que una o Collective
a Kanye West na tentativa de encorajar a juventude a evitar a universidade
[n.r.: “college” incute maior sentido à questão]?
Não. Acho que procuramos frisar que essa opção não é única. Ao crescer, fica-se
com a sensação de que é esse o caminho a seguir porque assim acontece com
toda a gente. Por qualquer razão, afastei-me desse ciclo e encontrei uma via
totalmente alternativa que me proporcionou muito de bom e tem vindo a resultar.
Acho que tentamos encorajar as pessoas a pensarem por si mesmas e acreditarem
nas suas próprias decisões. É só isso. A universidade pode ser fantástica
se conhecer o melhor uso.
Que podemos esperar do concerto de Lisboa [n.r.:
que, numa iniciativa que celebra também o 11.º aniversário da Zé dos Bois,
terá lugar num cacilheiro em pleno Tejo]? O facto de te chamares Noah [n.r.:
Noé] faz com que pense na ocasião como uma coisa de proporções bíblicas. Tendo
em conta as circunstâncias, parece que todos vamos estar unidos pela condição
animal e isso parece-me francamente bonito (ainda que metaforicamente). Encorajam
o público em ir aos pares?
Pá... Nem sequer tinha pensado nisso, mas parece-me completamente louco. O
meu aval é incondicional. Apoio todos os amantes, bons amigos ou gente assim.