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Egberto Gismonti
Mágico


Não é o camisa dez, não finta com os dois pés, é difícil compará-lo com o Pelé... mas é mágico, lá isso é. O brasileiro Egberto Gismonti (Rio de Janeiro, 1947) vem trilhando um percurso musical único, combinando as tradições do Brasil com elementos vindos do jazz. Nas dezenas de gravações que efectuou desde 1969 o multi-instrumentista e compositor desenvolveu um estilo único, difícil de enquadrar em rótulos pré-estabelecidos. Com uma forte ligação à editora ECM, uma das mais importantes e influentes labels da segunda metade do século vinte, Gismonti tem colaborado com compatriotas como Naná Vasconcelos (Duas Vozes de 1984 é obrigatório) ou de gente do jazz como Charlie Haden ou Jan Garbarek - os discos Folk Songs e Mágico são históricos. Antecipando a sua passagem por Portugal, para uma actuação no Festival Internacional de Música de Espinho no dia 21 de Julho, Gismonti falou-nos sobre a sua carreira e sobre a sua música.
A sua carreira já tem mais de quarenta anos, já passou por muita coisa. O que lhe interessa explorar musicalmente hoje em dia?

Depois de tantos anos experimentando formas e expressões musicais diferentes, sempre com o objetivo de conhecer mais profundamente a cultura Brasileira, tenho absoluta certeza de que "peguei o gosto" pela experimentação, sobretudo filtrada pela miscigenação Brasileira. O que mais me interessa explorar musicalmente é a contradição da cultura Brasileira - ex: ao nosso dicionário foram acrescentados 15 ou 16 mil verbetes representando os dialetos que usamos quotidianamente (resultado das misturas africanas, européias, asiáticas e das tribos da Amazônia); no mesmo dicionário foram acrescentados muitas centenas de palavras "inventadas" por nossos "repentistas" (cantadores populares que improvisam versos e melodias) que para não perder a rima inventam palavras, que as vezes, são adotadas pela Academia Brasileira de Letras e aceitas como resultado contemporâneo da nossa raça (neste caso contemporâneo deve ser lido como "vivo"); como segundo exemplo eu lembraria que a música que produzimos no Brasil é fruto de todas as colonizações que passamos, sempre filtradas pelo povo Brasileiro, miscigenado e bem humorado.

O que podemos esperar da sua actuação no Auditório de Espinho?

Depois de tantos anos tocando, aprendendo e desenvolvendo a música que faço (e toco) espero que a atuação no Auditório de Espinho possa representar a alegria de estar mais próximo àquilo que procuro durante toda minha vida: a cultura Brasileira em forma de música.

Qual o papel das tradições brasileiras - do samba ao frevo, do choro ao forró - na sua música?

Total, como toda a tradição ou folclore Brasileiro tão bem estudado, compreendido e anotado pelo nosso "divisor de águas culturais" Mário de Andrade.

A sua música entra num campo muito próprio. Como prefere que seja designada? Poderemos usar o rótulo “fusão�

Poder usar "fusão" ou qualquer outro título é um direito seu e de qualquer outra pessoa. Após todos os anos fazendo a música que sempre representou a procura de uma das tantas linguagens musicais Brasileiras, encontrei em muitas lojas de CD´s espalhadas pelo mundo (incluindo algumas capitais e cidades no Brasil), e, através de muitos jornalistas espalhados pelo mundo afora a melhor designação: "Egberto Gismonti".

Como analisa a sua relação com o jazz?

Sou um simples principiante. Certa vez, em Los Angeles, estávamos Herbie Hancock e eu no seu estúdio/garagem, diante de dois pianos elétricos ou digitais. Sentamos e tocamos durante muito tempo e no final ele me perguntou "o que você achou do meu piano abrasileirado?". Eu respondi, "eu estava tocando jazz!". Rimos muito porque essa é a nossa realidade - músicos em geral. A maioria das vezes achamos estar tocando a música que representa a cultura de outro país, outra região deográfica do planeta, outra língua, moeda, sociedade, valores, etc. No fundo, na maioria das vezes (há exceções, ex: Victor Assis Brasil, brasileiro, recebeu críticas Norte Americanas dizendo: este é um verdadeiro músico de jazz) fazemos imitações superficiais daquilo que gostamos.

A colaboração com Charlie Haden e Jan Garbarek levou a sua música para o mundo jazz a uma escala global. Como aconteceu esta ligação?

Concordo que esta colaboração ajudou a minha (nossa) música à um patamar que não havíamos experimentado antes, com um resultado muito interessante e produtivo. De minha parte certamente pude aprender muito com ela; da parte do Charlie (aqui repito suas palavras) "gosto de tocar com você porque nunca sei o que vai acontecer em seguida, não me sinto exatamente dentro dos parâmetros das improvisações sobre uma determinada música ou harmonia". Acho que por esta razão fizemos muita música em DUETO mesmo depois que o TRIO não se apresentava mais; da parte do Garbarek nos entrosamos muito no quesito disciplina com estudos que antecediam os encontros. De certa forma temos uma formação instrumentística similar. O início do TRIO se deu a partir de uma apresentação que eu fazia em São Francisco com meu grupo Brasileiro. No intervalo veio ao camarim o Charlie e perguntou se poderia tocar algo na segunda parte. Claro que trouxe o baixo e fizemos música juntos. No dia seguinte ele telefonou ao Manfred Eicher comentando que havíamos nos divertido muito tocando juntos. Dias ou semanas após o Manfred nos propôs uma gravação e sugeriu o Garbarek como terceiro músico na formação. Foram encontros sempre muito divertidos, agradáveis e criativos à todos. Fizemos os dois primeiros discos quase que no mesmo período, mesmo sem o primeiro ter sido lançado no mercado. Passados alguns meses o Manfred propôs mais um disco, desta vez gravado ao vivo no Teatro "American House" em Munique. Fizemos o concerto no dia 24 de Abril de 1981 mas, por razões extra musicais, houve uma questão (que não conheço bem) que levou décadas para se definir. Finalmente, este terceiro CD será lançado brevemente pela ECM, comemorando este TRIO chamado de Magico´s Trio pelo Manfred.

A sua ligação à ECM foi importante para a sua projecção internacional?

Certamente. Os discos, as amizades, o desenvolvimento de uma cumplicidade grande com Manfred (que envolve música, literatura e outros afins) que possibilitou que ele permitisse que eu fosse o produtor do meu primeiro disco sinfônico para a ECM, ou, que dividíssemos a produção (ECM e Carmo) do CD duplo Saudações. Manfred e sua equipe foram muito importantes para que eu desenvolvesse um pouco de conhecimento e coragem para criar um selo no Brasil "Carmo", que em seguida, veio a ser representado e distribuído pela ECM. Como resultado desta relação fizemos muitos discos que marcaram nossas vidas e pensamentos profissionais em termos musicais e de layouts.

É um multi-instrumentista, mas tem explorado especialmente a guitarra e o piano. O que tem levado a adoptar cada instrumento?

As composições são o motivo de tocar um ou outro. Na realidade sou multi instrumentista para conhecer e poder escrever para os outros instrumentos, mas, me considero pianista/violonista ou violonista/pianista.
© Ziga Koritnik

Lançou a sua própria editora, Carmo. O que o levou a fazer este investimento?

A razão principal foi possibilitar à artistas que conhecia no Brasil, que não tinham possibilidade de gravações ou registros em gravadoras - aqui me reporto aos anos 80/90 quando as gravações independentes não eram desenvolvidas; ao equipamento de estúdio que era extremamente dispendioso; os estúdios eram poucos, etc, etc. No Brasil fizemos cerca de trinta e muitos LPs. Em seguida iniciamos a distribuição na Europa através da ECM; nos últimos anos fazemos parte daqueles selos (editoras) que aguardam uma definição mais clara para continuarem suas existências - me refiro aos downloads gratuitos, à venda individual de fonogramas, à possibilidade de lançamentos via internet e suas ferramentas, etc. Apesar de interessado no assunto, ainda não encontrei uma resposta razoável ou convincente para a continuação dos lançamentos da Carmo.

Olhando em retrospectiva, de que discos da sua longa discografia mais gosta?

Não tenho preferência porque cada um representa um pouco da minha história (defeitos e qualidades), e, sobretudo, representam meus pontos de vista sobre a cultura (estórias, "causos", etc). Sempre imagino coloca-los em ordem de lançamento e consigo enxergar uma só música se desenvolvendo passo a passo.

Ao longo da sua carreira colaborou com músicos como Naná Vasconcelos, Charlie Haden, Jan Garbarek, Jaques Morelenbaum, Hermeto Pascoal, Airto Moreira e Flora Purim. Quais foram aqueles que mais o marcaram, musical e pessoalmente?

O Nana tem uma importância vital pelo contraste que representamos - leia-se miscigenação cultural; Hermeto é uma das raízes brasileiras musicais que gerou tanto crédito ao exercício do contraditório; Airto é aquele brasileiro que apesar de distante geograficamente mantém o Brasil vivo na sua alma, música e comportamento; Nivaldo Ornelas, Mauro Senise, Zeca Assumpção, Nenê, Zé Eduardo Nazário, Nando Carneiro, Jaquinho Morelembaum, Jane Duboc, Joyce, Délia Fischer, Hamilton de Holanda, André Mehmari, os irmãos Assad, o Brazilian Guitar Duo formado por João Luiz Rezende Lopes e Douglas Lora Las Casas, Luiz Eça, Tamba Trio e mais dezenas de outros músicos brasileiros são responsáveis pelo meu desenvolvimento musical.

Hoje em dia é uma referência para muitos músicos. Como se vê no papel de referência?

Sigo fazendo música com absoluto respeito reverência. ELA, a MÚSICA, me conduz - creio que esta é a principal razão de ser referência para outros.

Quais são os seus planos para os próximos tempos?

Se por um lado tenho um curriculum imenso composto de discos (63), música para cinema (27), para teatro (21), para ballet (16), além de produções para TV e Carmo, também aprendi que os planos futuros devem ser cultivados porque representam o amanhã, a esperança (que aliás é o estado quando os deuses estão nos habitando), e, por esta razão devem ser guardados até que tenhamos o privilégio de possuir uma bola de cristal - coisa que ainda não possuo, e, sequer sei por onde procurar. Assim sendo, vou respondendo com conclusões atuais de tudo que tenho vivido desde 1969 quando iniciei minha vida musical profissional.

Musicalmente, o que lhe falta ainda fazer hoje em dia?

Fazer mais coisas, estudar mais para alcançar a gratuidade. Este é um assunto muito longo para servir como resposta à última pergunta sua. Pessoalmente conversaremos isso um dia desses.


Nuno Catarino
nunocatarino@gmail.com
18/07/2011