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José Mário Branco
Mudanças na continuidade


Na Quarta-Feira, dia 15, começa o Festival Silêncio, conforme já foi anunciado aqui no Bodyspace. Para inaugurar a vasta programação, José Mário Branco (e Camané, acompanhados por Carlos Bica, José Peixoto e Filipe Raposo) apresentam o espectáculo Música de Palavra(s) na Sala 1 do Cinema São Jorge. Promete-se «um jogo de tensões entre o silêncio e os sons, no espaço e no tempo cénicos, que é o apanágio da canção poética». Bom pretexto para irmos conversar com o cantautor de origem portuense, cuja extensa obra musical não se limita ao incontornáveis Mudam-se Os tempos, Mudam-se As Vontades ou o bem actual FMI. Em discurso directo ao assunto, muita música (utilizada ou não como arma) e uma boa dose de consciência política. Embora já não tenha 37 anos, José Mário Branco continua «muito mais vivo que morto». Podemos contar com ele para cantar e para o resto.
Na apresentação do espectáculo “Música de Palavra(s)”, inserido na programação do Festival Silêncio, escreve-se que «A palavra cantada é filha da música e da poesia, uma filha que ganhou vida própria e autonomia a partir dos genes das suas progenitoras.» Algum destes genes é predominante, na sua perspectiva?

Podemos dizer que é um filho ou uma filha mais parecida com o pai ou com a mãe. Isso depende do filho ou da filha, não é?! Mas que é uma pessoa diferente, não há dúvida nenhuma. O filho é diferente dos pais.

Costuma dizer-se que a pena é mais forte do que a espada, e o José Mário cantou um dia que “a cantiga é uma arma”. A aliança entre a palavra e a música potencia a comunicação, principalmente quando se trata de nos manifestarmos contra os poderes instalados e as injustiças?

Acho que sim, mas não é só para a intervenção social. É também para transmitir com uma linguagem nova, que resulta desse encontro da poesia com a música, estados de alma, experiências, incitamentos, reflexões sobre o sentido da vida. É para tudo. E pode ver-se ao longo da História da Música como a canção sempre teve esse papel. Mas como é um material mais curto e de mais fácil execução do que uma sinfonia, tornou-se muito popular e, portanto, atinge camadas muito mais vastas da sociedade do que as formas eruditas, que normalmente são reservadas às classes dominantes.

Expressões como «mudam-se os tempos, mudam-se as vontades» ou «a cantiga é uma arma» entraram no glossário comum. São aplicadas independentemente da conjuntura e do contexto em que foram criadas. É a isso que os artistas aspiram no processo de criação, partir do individual e chegar ao universal?

Exactamente. Isso é o apanágio da obra de arte. É ser uma coisa que parte da solidão dum criador e é reapropriada por toda a comunidade humana. A arte é isso. É sermos capazes de exprimir coisas que têm a ver com todos os nossos companheiros do planeta.

Como olha para o facto de músicos das gerações actuais pegarem na obra de artistas intemporais como Zeca Afonso ou Amália, reinterpretando-as?

Eu acho muito bem. Sempre se fez isso ao longo da História. Os mestres sempre foram imitados, copiados, objecto de trabalho e de estudo. Mas é preciso conhecer os originais. As recriações desse tipo são mais ou menos conseguidas, conforme o que o próprio reintérprete tem para dar. Se não tem nada para dar à gente, mais valia estar calado.

Disse numa entrevista recente, concedida ao Blitz, que todos os anos volta a ouvir toda a obra do Zeca Afonso. Isso acontece-lhe com outros artistas, do passado ou do presente?

Acontece-me com os eruditos e com o jazz. E às vezes com grandes autores da canção, como o McCartney e o (John) Lennon, Paul Simon, Dorival Caymmi, Chico Buarque, João Gilberto, Tom Jobim, (Jacques) Brel... Acontece-me com muitos reouvir para ter presente aquele grau superior de qualidade que alguns autores conseguiram no campo da canção, que é um campo onde facilmente se cai no cliché e na vulgaridade. Em relação aos eruditos e ao jazz, toda a música erudita me interessa, tenho preferência por todos os grandes mestres da música; no jazz também, especialmente a partir do Hot e do Bebop.

Quais são os seus cantores de intervenção/protesto de eleição? Conhece e gosta, por exemplo, de Gil Scott-Heron, falecido em finais do passado mês de Maio?

Sim, conheço e gosto do Gil Scott-Heron. Gosto de muitos cantores que se preocuparam com as questões sociais, que exprimiram movimentos sociais. Em Portugal sinto-me mais próximo do Fausto e do Sérgio Godinho, que estão filiados na mesma origem que eu, que é o nosso mestre Zeca Afonso. Mas noutros países também. Na América Latina há vários, nos Estados Unidos há vários. Actualmente gosto bastante do trabalho que é feito pelo Paul Simon, pelo Sting, por tantos, sei lá… Felizmente, são muitos!

O José Mário tem produzido e escrito na área do fado. Tem-se assistido a uma mudança de perspectiva, nomeadamente das pessoas de esquerda, em relação a este género musical, que antes era encarado como algo reaccionário. A que se deve isso?

Deve-se a vários factores. Houve melhoras consideráveis na qualidade de alguns intépretes e, sobretudo, no plano instrumental, onde houve um avanço enorme, com grandes executantes de guitarra portuguesa e de viola, com a introdução do contrabaixo no setup de instrumentos que normalmente acompanham o fado. Também houve mudanças na comunicação e na difusão da música. Por outro lado, deve-se ao que se avançou nos aspectos de produção, a maneira como os artistas são produzidos, como aparecem nos palcos, a qualidade técnica e estética dos espectáculos. Deixou de ser aquela música das tascas e dos marginais… a partir da Amália Rodrigues o Fado teve um grande avanço.

Resistir É Vencer, o último álbum que lançou em nome próprio, toma emprestado o título ao lema da resistência timorense à ocupação indonésia. Esta capacidade de resiliência, de se manter à tona em tempos especialmente difíceis, é tão importante para os movimentos sociais e políticos como para alguém como o José Mário, enquanto artista e pessoa?

Claro. Esse lema da resistência impressionou-me porque me ajudou a perceber que resistir começa por ser resistir a si próprio e não resistir aos outros, ao inimigo, àquele contra quem se combate. A primeira resistência – e a mais decisiva – é aquela que se trava contra as nossas próprias limitações, os nossos próprios defeitos, a nossa própria vontade de ficar quieto e desistir. Eu aprendi isso com a resistência timorense. Era tão fácil um povo tão pequenino e tão desarmado vergar-se àquele que, na altura, era o terceiro maior exército do mundo… mas não… resistiram e, ao resistirem, estavam a lutar em primeiro lugar contra os seus próprios limites e a achar que era possível continuar, continuar todos os dias; dar o passo que é preciso dar a cada dia. E durante 25 anos conseguiram isso.

Mudam-se Os Tempos, Mudam-se As Vontades foi lançado há 40 anos. Embora existam estas mudanças, não lhe parece que os grandes problemas e questões se mantêm algo inalterados?

Claro que as grandes questões se mantêm inalteradas. A maneira de lidar com elas é que é muito diferente de época para época. O que é que nós queremos? No fim do Século XVIII houve aquela síntese “Liberdade, Igualdade, Fraternidade” da Revolução Francesa. A discussão a partir daí foi sobretudo entre os que preferem a liberdade e os que preferem a igualdade. Porque há uma contradição nos termos. Para haver liberdade cada um pode explorar os outros conforme quiser, pode fazer o que lhe apetecer; para haver igualdade tem que haver disciplina social, imposição de regras. E nunca se resolveu, até hoje, a questão da fraternidade.

Se calhar, a fraternidade é que faria a síntese entre essas duas…

É, e é disso que se anda à procura desde então, não é? Mas se formos mais atrás ainda, e olharmos para as histórias de Jesus Cristo ou Spartacus, vamos ver que são esses mesmos valores que estão sempre em causa. Portanto, os valores que servem de referência para o sentido da nossa vida vão-se mantendo sempre os mesmos; agora, a maneira de lidar com eles, as condições materiais e sociais é que mudam muito. A Humanidade não vive hoje como vivia há 200 ou 300 anos. Vive melhor, no aspecto geral vive melhor, é preciso reconhecer isso.

Como encara as manifestações, mais ou menos apartidárias, a que se tem assistido, quer em Portugal, quer em Espanha? Pensa que podemos estar a caminhar para um novo paradigma político-social, com um peso maior da chamada sociedade civil?

Acho que há um paradigma que ainda está a fazer o seu caminho, que é o paradigma da auto-gestão, a democracia de baixo para cima. Penso que em Portugal e em Espanha estas manifestações têm a ver sobretudo com a crise das classes médias. Os pobres estão sempre em crise, desde que nascem até que morrem. Fala-se muito da crise, mas os pobres sempre estiveram em crise, a vida toda. E, portanto, se agora se fala muito na crise e há estes movimentos todos, é porque as dificuldades do capitalismo estão a atingir as classes médias. A reorganização do capitalismo a nível mundial está a atingir as classes médias. São lutas tipicamente de classes médias. Você viu alguma luta nas empresas, nas fábricas, nos bairros pobres? Não se vê nada, está tudo parado! Porque em épocas de dificuldade quem é pobre tenta conservar o pouco que ainda tem.

É quase inevitável trazer à baila o tema “FMI”. Disse numa entrevista recente à Antena 1 que o tema foi mais um processo íntimo e catártico sobre o que se estava a viver do que uma opinião sobre a instituição, que funcionou mais como pretexto a essa reflexão. Considera que existia alternativa à intervenção externa da troika? E qual é o seu estado de espírito relativamente à viragem à direita que resultou das legislativas?

Eu não sou comentador financeiro nem político, não faço a mínima ideia, não posso estar a dar opiniões sobre isso. Tenho a noção que isto são tudo coisas muito globais, que ultrapassam este pequenino país que aqui está. Estes tipos que vão para o Governo são paus-mandados de gente mais poderosa, que está noutros sítios, noutras instituições, a mandar nisto. Quem quer que fosse para lá no Domingo tinha o essencial da governação definido lá de fora. Aquele capitalismo mais organizado e mais competente do Norte da Europa chegou à conclusão que tinha de pôr isto na ordem. Portugal tem uma burguesia historicamente muito foleira, inculta e parasitária, incapaz de traçar planos a longo prazo, que gosta de ganhar dinheiro rapidamente.

Já que fala nessa ganância de enriquecer em pouco tempo, em Portugal, tal como nos Estados Unidos, por exemplo, a chamada “bolha imobiliária” terá sido um dos factores que nos encaminhou para a bancarrota…

Também, também… é sobretudo essa incapacidade de fazer capitalismo a sério. Foi um país que durante quase meio século esteve impedido de desenvolver o seu próprio capitalismo, e já no período dos Descobrimentos a coisa foi igual. A classe dominante foi sempre muito oportunista, muito parasitária, com muito pouca capacidade de aumentar a produtividade da economia. Em Portugal, só 25% do patronato é que tem os estudos secundários! Há mais trabalhadores com os estudos secundários e com diplomas universitários, em percentagem, do que patrões. Portanto, a classe patronal é muito ignorante. Isto é um país de tasqueiros e empreiteiros. São pessoas de vista muito curta. E é essa gente que dirige o país e que se vai alternando no poder há tantos anos, ora no PS, ora no PSD. Estão lá para sacar depressa e bem! Não têm projecto, para além disto. Então, a Europa do Norte, mais desenvolvida, mais fria, mais competente, de repente olha para isto, com a integração europeia, e começa a dizer «Vocês entram na Europa, mas têm que trabalhar melhor. A gente não anda aqui para alimentar madraços, pá!». E, portanto, esta crítica, que ao nível da Europa e do Mundo, através do FMI, do Banco Central Europeu e da União Europeia, nos vem aqui ser feita sob a forma de um Memorando, que traça as linhas da governação, tem a ver com a classe dominante, ou seja, o poderio económico e a sua tradução no PS e no PSD e, acessoriamente, no CDS. É essa gente que tem mandado no país desde 1974/75. São quase 37 anos. É muito tempo (risos).


Hugo Rocha Pereira
hrochapereira@bodyspace.net
13/06/2011