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William Parker
Música Folk
Incansável contrabaixista, senhor de uma imensa criatividade, William Parker é uma figura de proa do jazz contemporâneo e talvez o mais importante executante do instrumento após Charles Mingus. Aluno de Jimmy Garrison, Richard Davis e Wilbur Ware, Parker reconhece o contrabaixista Ronnie Boykins, da Arkestra de Sun Ra, como referência importantÃssima. Sempre envolvido em múltiplos projectos, o seu contrabaixo reflecte uma personalidade musical criativa, original, muito intensa. Além do contrabaixo, Parker tem-se dedicado a experimentar/descobrir instrumentos menos comuns - flautas, instrumentos de cordas e percussões, provindos de regiões distintas do globo como o Oriente, as Ãndias ou o Norte de Ãfrica – integrando estes elementos na sua música, num raro percurso de multi-instrumentista. Aquando da sua passagem por Portugal, integrado no Folk Songs Trio de Victor Gama, William Parker falou-nos dos seus projectos e das suas ideias sobre música.
Como é que conheceu o Victor Gama e como é que se reuniram no projecto Folk Songs Trio?
Conheci o Victor Gama por intermédio do baterista, percussionista e compositor Guillermo E. Brown. Foi uma breve apresentação, ele falou-me do projecto que este criador de instrumentos de Portugal estava a desenvolver e disse-me que ele vinha à América. Havia um concerto marcado para o Tonic, em Nova Iorque, e então eu tive a oportunidade de participar nesse projecto, tocando contrabaixo e também outros instrumentos que tenho explorado ao longo dos últimos dez anos.
E porquê este nome Folk Songs ?
O David Gunn, que neste projecto trabalha com o laptop, explicou-me que o Folk Songs Project envolvia arte e sons - sons recolhidos nas cidades onde actuamos, sons de pessoas a falar, crianças a brincar… Um dia perguntaram ao Louis Armstrong se ele gostava de música “folkâ€. Ele respondeu que sim, porque era música “for the folksâ€!
Num concerto do William Parker Violin Trio, em Braga, referiu o contrabaixista Ronnie Boykins como uma influência marcante para a sua música. Quem foram os primeiros músicos de jazz que o influenciaram a seguir a carreira na música?
Um dos primeiros discos que ouvi, em 1959, quando tinha sete anos, foi um disco do Duke Ellington. O meu pai punha o disco muitas vezes e eu ouvi-o muito, especialmente o “Diminuendo and Crescendo in Blueâ€, que foi gravado no festival de Newport, em 1956 ou 1957. Ouvia esse disco quase todos os dias e essa é uma das minhas primeiras memórias musicais, essa música de Duke Ellington, Paul Gonsalves, Johnny Hodges e Sam Woodyard… O Duke Ellington apresentava os músicos “on drums, Sam Woodyard†e nós ficávamos com os nomes na cabeça. E a voz do Duke Ellington, a forma como apresentava a banda, aquela elegância e a ideia maravilhosa de ter uma banda a tocar ao ar livre, em Newport, foram influências importantÃssimas para mim… Nunca tive a tendência imitar o som do Duke Ellington, mas aquela ideia de que era possÃvel criar um “som†foi determinante.
E o Henry Grimes foi outra influência importante para si?
Sim, definitivamente. Quem estivesse interessado no avantgarde via que o Henry Grimes aparecia em quase todos os discos! E ele era magnÃfico, estava fabuloso em cada disco, ele tinha muita presença, criava o seu espaço… Era música nova! E o que é que cada um tocava? Podiam manter o tempo, tocar “clusters†como o Lewis Worrell ou Donald Garrett, tocar rápido como o Gary Peacock no Spiritual Unity do Albert Ayler? Como é que se faz? Não existe uma escola, é preciso ouvir tudo para compreender todas essas possibilidades. E nesse sentido o Henry foi uma grande influência.
Em 2002 o Henry Grimes foi surpreendentemente encontrado vivo e o William ofereceu-lhe um contrabaixo. Esperava que ele tocasse da mesma forma como há quarenta anos?
Na altura não pensei nisso, mas sabe uma coisa? A música é como comer ou fazer amor, é uma coisa que se faz quase por instinto… É uma coisa que não se esquece. Passados uns anos podemos não fazer coisas tão bem como dantes, quando se é velho não se faz amor da mesma forma como quando se é jovem… Mas quanto a tocar música, acho que é possÃvel continuar a fazê-lo ao longo dos anos. Na altura não pensei que ele pudesse tocar tão bem como o está a fazer agora, fiquei apenas contente pelo facto de ele estar vivo e disponÃvel para voltar a tocar.
Um dos meus catálogos discográficos preferidos é a “Blue Series†da editora Thirsty Ear, dirigida pelo pianista Matthew Shipp, que faz um grande cruzamento entre jazz, electrónica, hip-hop e improvisação livre. O William Parker tem colaborado em inúmeros discos: David S. Ware, Spring Heel Jack, El-P, The Blue Series Continuum, Free Zen Society, etc. Como consegue colaborar com todas estas pessoas diferentes, em tantos estilos diferentes?
O mais importante é evitar que quaisquer circunstâncias afectem a música. Há uma similaridade naquilo que eu toco nos diversos discos, se se concentrar no som do meu instrumento vai ver que toco basicamente o mesmo tipo de música independentemente dos contextos. É uma coisa que acontece naturalmente. Não me preocupo em usar um estilo com esta pessoa ou outro estilo diferente com outra. Pode ter-se um estilo único, basta saber enquadrá-lo com os diferentes contextos musicais. Se alguém vai tocar música free e depois vai tocar bebop, precisa de conhecer bem o bebop, porque não vai ter a mesma liberdade.
O quarteto “Die Like a Dog†(composto por William Parker, Peter Brötzmann, Toshinori Kondo e Hamid Drake) fez furor nos anos 90. O ano passado o Peter Brötzmann disse-me numa entrevista que a banda tinha terminado porque o Toshinori Kondo estava mais interessado em electrónicas. Há alguma possibilidade de se voltarem a reunir?
Sim, claro. Actualmente continuamos todos a tocar e há sempre a possibilidade de nos reunirmos. Nem todas as bandas permanecem sempre juntas, às vezes é preciso parar. No nosso caso, todos gostamos uns dos outros, gostamos de tocar juntos e há sempre a possibilidade de isso voltar a acontecer.
Participou no disco Beyond Quantum com Anthony Braxton and Milford Graves, um disco que tem sido aplaudido por toda a gente e considerado como um dos melhores do ano. Como foi trabalhar com estes dois músicos?
Eu tenho trabalhado com Milford Graves desde 1984, em situações de trio, quarteto e duo. E é sempre uma grande experiência! Nós somos capazes de entrar no grooves que dançam dentro da música, e no topo da energia que alimenta a música. O Milford é um dos maiores músicos do mundo e um grande ser humano. Tenho tido a oportunidade de trabalhar com Anthony Braxton desde 2007, já fizemos concertos em duo e em trio, com Cecil Taylor e com Hamid Drake. O senhor Braxton é um compositor excepcional e um grande "arquitecto do som". Espero que um dia ele consiga materializar todos os seus brilhantes sonhos musiciais.
O seu disco mais recente chama-se Double Sunrise Over Neptune . Que ideias pretende transmitir com este disco?
Double Sunrise Over Neptune vem de uma ideia que eu chamo de "tonalidade universal", que consiste na ideia que todos os instrumentos e estilos musicais se podem misturar num único som, sem perda da vitalidade artÃstica de cada um.
Vai tocar no próximo ano na Casa da Musica, no Porto, com o projecto The Inner Songs of Curtis Mayfield. O Curtis Mayfield foi uma referência importante para si, enquanto músico de jazz?
A música do Curtis Mayfield serviu de banda-sonora ao movimento dos direitos civis e acaba por ser universal, no sentido em que quando a ouvimos deixamos de pensar no estilo, é só música.
Para além do contrabaixo, o instrumento pelo qual é mais conhecido, toca ainda outros instrumentos (flautas ou percussões, entre outros). Considera-se um contrabaixista ou um multi-instrumentista?
É uma boa questão… Nunca pensei em mim como contrabaixista. Quando me perguntam “o que tocas?â€, eu respondo “o contrabaixoâ€, mas vejo-me mais enquanto músico do que propriamente contrabaixista. Eu sei mais sobre música do que sobre contrabaixos, acontece que toco contrabaixo. Actualmente estou a trabalhar para chegar a um ponto em que me considere multi-instrumentista, ainda não cheguei lá, mas estou a trabalhar para isso. E não sei se algum dia serei um contrabaixista, mas sei que posso ser um músico.
Apesar da modéstia, é globalmente considerado como um dos mais importantes contrabaixistas das últimas décadas, talvez o mais importante depois de Charles Mingus. Como vê o papel do contrabaixo na actualidade e no futuro?
O contrabaixo é o navegador, é o leme do navio, o contrabaixo guia a música. O contrabaixo é o motor, o contrabaixo é pulsação, o contrabaixo é cor. O contrabaixo é o cérebro da música, o contrabaixo dá alma à música. O contrabaixo é o alicerce que suporta a melodia. E as possibilidades são ilimitadas, infinitas. Eu adoro o contrabaixo, adoro tocar o contrabaixo. Quando está presente é um dos instrumentos mais importantes na música moderna.
Mantém-se a par de novos músicos? Quem são os seus jovens contrabaixistas favoritos?
Bem.. Há tantos bons contrabaixistas no mundo e são todos óptimos. Eu não tenho acompanhado quem são os novos contrabaixistas… Não sei quem são os novos talentos, porque todos os dias há novos músicos a sair das escolas e todos a tocar bem… O ideal seria encontrar quem tocasse uma nota que pudesse mudar o mundo. Eu já ouvi muitos contrabaixistas tocar muitas notas e muitas coisas, mas ainda não ouvi nenhum que tocasse essa nota que pudesse mudar o mundo, que pudesse ressuscitar os mortos. Mas são todos óptimos e o meu coração está com eles, porque a vida não é fácil, especialmente na América, não é nada fácil!… No Iraque a vida não é fácil, na Ãndia não é fácil, no Bangladesh não é fácil… E até aqui em Portugal não deve ser fácil… A vida é dura para os jovens que estão a começar.
Pegando numa questão recorrente, como classifica a música que toca, “jazz�
Antes de tudo, nem se sabe bem ao certo o que é o jazz. Se formos a uma loja de discos vamos à letra A e vemos Louis Armstrong, mais abaixo vemos Albert Ayler, vamos à letra S e vemos Archie Shepp, Sadé, vamos ao W e vemos Grover Washington, Stevie Wonder… São todos jazz! É preciso darmos atenção a todos os tipos de música e não só a um género especÃfico. Não interessa ficarmos fechados num género fechado, temos é de preservar a nossa individualidade. Podemos fazer música electrónica, música punk, música africana, música indiana, fado, tango… e misturar tudo! Não interessa a separação por barreiras, porque é tudo som e é tudo válido, desde que funcione.
E no seu caso pessoal, como classifica a sua própria música?
Eu chamo-lhe música criativa, porque para mim a música criativa é aquela que durante a sua execução se procria e torna-se maior do que o seu embrião. Pode começar por “mmm mmm mmm mmm†[entoa a melodia de “My Favourite Thingsâ€], para o Coltrane esse era o embrião e a partir daà ele tocava durante três horas. A música criativa é uma música que, depois de iniciada, não se sabe onde vai parar. Não tem a ver com estilo, é sobre a música, até onde ela vai.
Acaba de editar um novo livro, chamado Who Owns Music? . De que trata este livro?
É apenas uma compilação de alguns dos meus escritos ao longo do tempo que uma editora alemão mostrou interesse em publicar. O tÃtulo é uma das questões que eu coloco no livro: “quem é dono da música?†Quem a rotula, quem a define? Estou a pensar publicar outros livros, sobre outros temas, nos próximos anos. Quando os músicos morrem, ninguém é capaz de explicar a sua música correctamente, uma vez que ninguém compreende exactamente o que a nossa música é excepto nós próprios. Por isso cada músico deveria escrever um livro sobre a sua música. Tal como o Derek Bailey tem um livro, o Anthony Braxton tem um livro, o Leo Smith tem um livro… Porque se nós deixamos para os crÃticos e para os escritores, eles não compreendem, porque eles não nos perguntam aquilo que nós pretendemos dizer. É importante sermos nós, os músicos, a explicar a música que fazemos.
E já encontrou a resposta para essa pergunta, “quem é dono da música�
Ninguém! Ninguém é dono da música!...
Nuno Catarino nunocatarino@gmail.com
29/09/2008