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Hecuba
Filhos da Arte


Music of the sadness and the gladness é um óptimo disco ainda não editado. Foi concebido por Jon Beasley e Isabelle Albuquerque, duas criaturas profundamente dedicadas à arte que se juntaram a certa altura e que agora respondem por Hecuba, o nome da rainha da mitologia grega. Fazem música para quebrar barreiras e Music of the sadness and the gladness é realmente um disco-não-disco complicado de enfiar numa gaveta. Há hip-hop nestas veias e sensibilidades pop, há experimentalismo. A música dos Hecuba chega a ser funky, chega a outros continentes. Chega a ser ritualista, urbana e tradicional ao mesmo tempo. Música ambiciosa. Entretanto, Jon Beasley e Isabelle Albuquerque gostam de confrontar as pessoas e as artes, confrontar crenças e valores. Talvez seja confronto a palavra certa. É com certeza confronto a palavra certa.

Vivem e actuam em Los Angeles e vê-se nas suas palavras verdadeiro contentamento com essa situação. Apesar de o núcleo da banda se fazer de apenas duas pessoas, é normal que a unidade Hecuba receba novos elementos, especialmente quando actuam ao vivo. Aí, tudo se transforma a julgar por algumas fotografias e vídeos e por testemunhos dos próprios. Toda a imagem dos Hecuba é motivo artístico - vejam-se as fotos que colocam no myspace da banda. Foi por isso com a maior naturalidade que Jon Beasley e Isabelle Albuquerque acederam a falar sobre aquilo que fazem com bastante abertura e aparente prazer. A conversa atravessou a música dos Hecuba e foi muito para lá disso. Chegou inclusive a aterrar confortavelmente noutras décadas.


O vosso nome, Hecuba, suponho que vem da rainha da mitologia grega, esposa do rei Priam de Tróia. O que é que vos levou a adoptar este nome?

Jon Beasley: Bem, a Isabel estava a ler a peça de Euripides e estava mesmo interessada na crueza emocional dela, por isso eu comecei a ler também. O que acontece a Hecuba é muito trágico e real de uma forma estranha. Não é ver o mundo a conformar-se à forma que querias que ele fosse. Eurípides era uma voz forte e não apologética, e esse é muito o espírito da nossa música. Estamos a tentar fazer algo realmente novo sem perder o tipo de emoção directa e de narração de histórias que está no âmago da música (e das peças). Além disso, fazemos concertos bastante teatrais.

Isabelle Albuquerque: Eu venho de um backgroung de teatro e por isso fui atraída para a teatralidade mórbida de Hecuba mas acho que o arquétipo dela é também bastante “vida real†nos dias de hoje. Sempre que abres a porra de um jornal ouves alguma versão da história dela. É grego mas também pós apocalíptico. É curioso porque nos Estados Unidos a maior parte das pessoas jovens não conhecem a história de Hecuba de todo, mas podemos relacionar-nos com o lado percussivo do nome. HE-CU-BA. Parece uma bateria. Soa duro.

Como é que nasceram os Hecuba propriamente ditos? Qual é a história deste projecto?

I.A.: O Jon e eu conhecemo-nos em Nova Iorque. Ele estava a fazer um filme sobre uma rapariga que foi raptada por extraterrestres e ele precisava de uma actriz. Chamava-se Annukai e foi exibido numa galeria em Chicago. O nosso amigo mútuo Matteah Baim sugeriu que nos conhecêssemos. Fizemos o filme. Eu estava verdadeiramente entusiasmada com as ideias do Jon acerca de arte e éramos colaboradores realmente naturais. Depois de Annukai simplesmente continuamos a fazer coisas juntos. Hecuba nasceu na verdade de outro projecto musical chamado Aldiss. Trabalhamos como Aldiss durante mais ou menos um ano e meio. A música era fortemente influenciada pelos filmes de Tarkovsky e do Spielberg e o A.I. de Kubrick. Criamos roupas, personagens e todo um mito do futuro, mas a ideia de fazer concertos que requeriam orquestras inteiras era demasiado intimidante na altura. Além disso queríamos fazer música que fosse mais imediata e acessível. Hecuba foi a nossa tentativa de fazer música pop.

J.B.: A Isabelle e eu já tínhamos trabalhado no projecto que ela referiu, Aldiss. Era uma espécie de banda sonora de filme sci-fi electrónico com vozes. No final, a instrumentação era talvez demasiado ambiciosa para colocar ao vivo, por isso seguimos para outros projectos. Ambos fizemos discos a solo depois disso. Depois tudo fez clique. Sentimos que se puséssemos os nossos discos juntos (que eram muito diferentes) teríamos algo realmente excitante – algo que nunca tínhamos ouvido antes.

Dizem que Hecuba retira influências de todo o mundo. Onde exactamente?

J.B.: De todos os locais donde podemos encontrar música: Irão, Bali, Mali, Paquistão, Etiópia, Europa, as Américas… e por aí adiante.

I.A.: Costumávamos viver no Harlem, mesmo em cima do comboio 1/9. Da nossa casa podiamos chegar ao Lincoln Center muito facilmente e mais ou menos uma vez por semana fazíamos uma grande excursão à livraria musical de lá fazer uma busca minuciosa na secção de world music (eles têm uma óptima). Montes e montes de CDs. Depois escolhíamos porque eu e o Jon, os dois, só podíamos levar vinte e depois levávamos um grande saco de CDs para casa e ouvíamos e ouvíamos. Encontramos música realmente bonita de todos os lados, mas acho que fui mais afectada pela música do Médio Oriente. A minha família é tunisina e eu cresci a ouvir muita música arábica. A minha avó era na verdade uma cantora arábica bastante conhecida. O nome dela era Smarda the Jewel. Ela tinha uma banda de trinta elementos em Tunis no virar do século e eles costumavam viajar da Tunísia para Paris e organizar espectáculos. Tenho uma caixa vermelha cheia dos 45s dela e significam muito para mim. Muito indistinto mas muito bonito. Música arábica faz-me vibrar ao máximo. Há algo no ritmo que faz com que o meu coração sinta que se está a mover e isso é algo que eu tento trazer para a nossa música também.

Music of the sadness and the gladness é o vosso disco de estreia. Vocês usam pianos, laptops, táxis e batidas de Casio e mesmo assim ouvi o vosso disco sendo apresentado como música folk. Tenho a ideia de que foi por vossa parte. Porquê?

I.A.: Não lhe chamamos folk. Estamos na verdade interessados em fazer música que nunca tenha existido antes.

J.B.: Na verdade tentamos não lhe chamar um disco folk. Acho que é uma das poucas coisas que não é. Tem muito mais a ver com o dance-hall e jazz e hip-hop e música electrónica. Queríamos mesmo fazer um disco que não coubesse facilmente em nenhum género em particular.

Apresentam então este disco como nova música que deixa para trás géneros, limites e segurança. Quanta coragem foi precisa para apresentar o disco desta forma? Qual é a vossa relação com a vossa própria música?

J.B.: Acho que quanto tento olhar para a nossa música objectivamente, parece-me óbvio. Vamos supor que trabalhava numa loja de discos… não saberia onde pôr o disco. Gosto disso nele. Mas ao mesmo tempo não acho que seja “estranhoâ€. Acho-o muito tradicional de certa forma – especialmente quando ouço música feita fora da Europa e da América. Acho-a bastante expressiva e, no final, acho que estamos a contar histórias.

I.A.: Acho que para fazer todo o tipo de arte hoje em dia é preciso muita coragem. A nossa cultura está tão decidida em encaixar os artistas em categorias fáceis de vender que tens de lutar como um leão em esteróides para conseguir sair disso. É tipo, ou fazes “post punk/girl rock que soe tipo blah blah blah†ou tens de trabalhar no Dairy Queen [restaurante de fast food]. E não há espaço para o risco e logo não há espaço para o crescimento. Mas quando eu vejo pessoas que se estão a cagar para aquilo que a arte é suposto fazer ou ser, bem, tira-me o fôlego. A minha relação com a minha música é que ela assusta-me como o diabo e eu assusto-a como o diabo.

Quando em “Peace & Money†dizem “I love peace and money†parecem estar a tomar uma posição sarcástica em relação aos velhos valores hippies. É verdade?

I.A.: É curioso. Esta canção tomou bastantes significados diferentes para mim. Escrevemos a canção enquanto olhávamos para um livro de pinturas de Kippenberger. Gosto da dicotomia do refrão. Bateu-me porque parece que de certa forma as duas ideias estão opostas uma à outra. De certa forma lembrou-me aquelas pessoas que conduzem Hummers enormes e depois colocam autocolantes que dizem “Parem com a Guerra no Iraque por causa do petróleoâ€. Por vezes quando estou a cantar as palavras elas parecem-me muito positivas. Como uma espécie de utopia onde a paz e o dinheiro são abundantes, outras vezes parece doentio e sinistro. Fizemos recentemente um vídeo para esta canção com o director Demetri Papageorgiou e mesmo antes de começarmos a filmar vimos um especial na TV acerca de uma religião que está a ganhar popularidade aqui nos Estados Unidos em que as pessoas veneram o dinheiro e os pregadores (qual é o nome dos gajos principais? Falam acerca de como Jesus queria que eles fossem ricos. Isto pareceu bastante pungente e tornou-se parte da história do vídeo. Não estávamos a pensar acerca de valores hippie quando fizemos a canção mas eu entendo como isso se possa aplicar. Como tantos flower children cresceram e são agora CEOs [Chief executive officer] na América corporativa.

J.B.: Eu diria talvez ambivalente. Ao início parece que as duas ideias não podem seguir juntas. Como se queres paz no mundo então tens de renunciar ao excesso material e ao dinheiro e essas coisas. E talvez algumas coisas dessas são deixadas de for a dos ideais dos anos 60 e do movimento de paz. Mas eu não acho realmente que fosse o caso de os hippies estarem dispostos a sacrificar o standard de vida a que estavam habituados. Mas isso também não é realmente aquilo que estamos a defender também. Tantos dos problemas do mundo acontecem devido ao dinheiro e aos desequilíbrios, mas toda a gente tem de ter algum. Toda a gente parece ler a canção de uma forma diferente. Algumas pessoas acham-na light e divertida e alguns acham que é uma canção realmente negra. Algumas pessoas dizem: "Sim! Não há nada de errado com isso. Tens de ganhar para viver, não tens?". E alguns dizem: "Sim! Estamos tão fodidos, não estamos?". E é precisamente aí que queremos estar com isto.

Alguém disse algures que Music of the sadness and the gladness faz com que o Devendra Banhart pareça que pertence ao século XXL. O que é que acham disto?

J.B.: Sim, não tínhamos a certeza de como ler isso ao início. Eu adoro mesmo o que o Devendra está a fazer e acho-o um artista fantástico, mas acho que a nossa música é bastante diferente. Na melhor das minhas suposições, o artigo estava a dizer que se ele nos ia catalogar como folk, então o Devendra pertencia a uma revista de hip-hop. Acho que há um impulso enorme de colocar o trabalho das pessoas em categorias que ajudem à digestão (especialmente na música) e nós apenas tentamos fazer aquilo que estamos a fazer sem colocar o nosso trabalho num sítio específico. Acho que ele se estava a referir ao facto de não conseguir colocar-nos um rótulo. Talvez também por sermos da Califórnia?

I.A.: Para ser totalmente honesta, não tenho bem a certeza daquilo que eles estão a tentar dizer aqui. Por vezes tenho dificuldades em perceber linguagem de critica. Eu conheço o Devendra desde que éramos miúdos e ele foi sempre um artista muito profundo e prolífico. Ele tem tanto para dar ao mundo que às vezes ficou simplesmente espantada.

Como é para vocês viver em LA?

I.A.: Eu vivi aqui quando era miúda, por isso é como a minha casa. O meu pai costumava levar-me ao rio LA e dizer-me que era o sítio mais bonito da terra.

J.B.: Adoro na maior parte. Há muita criatividade e abertura aqui. Também, é um local louco e estranho. Sinto-me livre para fazer aquilo que quiser. Viemos ambos de Nova Iorque… maçãs e laranjas… metro e carros.

Como descreveriam a criatividade musical que vem de LA hoje em dia? Quais são na vossa opinião os projectos mais interessantes que vêm daí neste momento?

J.B.: Gosto de muitas das coisas que vêm de LA na música (o Devendra Banhart por exemplo), mas devo dizer que estou verdadeiramente impressionado com a cena artística aqui, neste momento. É muito louca e aberta e convidativa e desafiante. Existem muita arte baseada em tecnologia a acontecer por aqui. É como um grande tanque que não está abafado.

I.A.: Los Angeles é interessante porque é tão aberto e não centralizado. Há um sentimento de ser um vagabundo solitário no deserto aqui. Como se fossemos todos forty-niners à procura de ouro. Os artistas de LA que gostamos mesmo neste momento são Matteah Baim (apesar de ela ser mais uma irmã bi-costal), Devendra Banhart, Busdriver, Mountain Party, Aloe Black e Andor.

Por aquilo que eu vi, os vossos concertos parecem ser bastante mais do que apenas concertos. Injectam nas vossas actuações outros elementos. Como é que descreveriam um dos vossos concertos? Como é os encaram?

I.A.: Eu sei que foi um bom concerto quando eu não me consigo lembrar daquilo que aconteceu. É como se entrasse em algum tipo de estado transcendental.

J.B.: Bem, fazemos trajes e coisas dessas, mas acho que o que tentamos fazer nos nossos concertos é apenas dar tudo aquilo que temos. Queremos que seja como um intenso feixe de emoção e ideias. Queremos dar isso se pudermos. Basicamente, pensamos na Nina Simone. Ela habitava as canções com coragem, intensidade e honestidade que é tão raro. Ah, sim, e o Bowie… Põe esses dois juntos e esse é o nosso sonho.

Imagino que queiram tocar na Europa. Existem planos para que isso aconteça?

J.B.: Neste momento, estamos a trabalhar em lançar o nosso disco e tocar pelos Estados Unidos. Mas vamos de certeza.

I.A.: É um dos nossos sonhos fazer uma digressão pela Europa.

Há uma imagem no vosso myspace que obviamente chama a atenção. Um gift animado com duas imagens onde parecem trocar de papéis. Parece de certa forma um statement…

I.A.: É curioso. Numa imagem eu estou nua e na outra o Jon está nu. Começamos a tirar a fotografias completamente vestidos. No início, íamos apenas ter uma fotografia de ambos completamente vestidos. O Jon tinha feito para ele próprio um casaco e para mim uma camisola de gola alta amarela clara. Regra geral ele é um muito bom alfaiate mas a camisola de gola alta era demasiado apertada e eu sentia-me apertada e como se não pudesse respirar. Por isso tirei-a. Então tiramos uma série de fotos com o Jon completamente vestido e comigo nua. E eu gostei delas. Gostei que se pudesse ver os meus mamilos. As fotos eram erguidas e corajosas. Elas diziam vai-te foder por seres correcto e ok para os frequentadores da igreja. Mais ainda havia mais alguma coisa. Por isso no dia seguinte tiramos mais fotografias e desta vez o Jon tirou a sua camisola fora. E depois tínhamos duas fotos e elas estavam certas. Posso contar com ele dessa forma. Eu sei que se me atirar abaixo de um penhasco por pensar que consigo voar ele vai saltar também. Acho que a foto é para nós. Estamos em pé virados um para o outro e a dizer: “Eu não tenho medo. Vamos levar isto para lá do finalâ€.

J.B.: Estamos apenas a tentar ser directos e honestos. Aqui estamos nós… nada a esconder.


André Gomes
andregomes@bodyspace.net
23/03/2007