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Feltro
O Farol do mundo


Mudar de identidade no mundo da música pode ser interpretado de várias formas. Uma delas é o desejo camaleónico de pertencer a outro corpo porque a matéria é já outra. André Gonçalves parece ter deixado para trás a pele de Ok.Suitcase e entrou no mundo de Feltro, o nome que decidiu dar ao seu novo projecto. Materializou essa metamorfose ao editar Sunburnt pela netlabel TesT Tube e é provável que o futuro próximo traga novas etapas desta aventura. Sunburnt é acima de tudo a experiência sonora rica de "The Longing", um tema que se desenvolve ao longo de quase 20 minutos. A teia electrónica lançada por André Gonçalves estende-se ao ponto de receber os mais variados elementos - e de se tornar bela. Viagem quase-atmosférica e substancial. Em informal conversa, André Gonçalves pinta o retrato do seu novo projecto e aborda outros temas paralelos; além de músico, aquele que assina agora como Feltro dedica-se também à pintura, ao vídeo, performance ou instalações. André Gonçalves parece gostar de viver entre as artes.
Tens um currículo assinalável na área da música e noutras áreas. O que é que nos podes contar acerca disso? Como é que entraste na música e que resumo fazes daquilo que fizeste até hoje, até ao lançamento do disco na Test Tube?

Longa historia. Hmmm. A música é daquelas coisas que vem da infância. Primeira guitarra aos 12, bandas de garagem no secundário... Trocar a guitarra por uma groovebox aos 17, primeiras experiências com o computador e gravação multipistas em casa... Até que com mais dois amigos começamos a trabalhar no projecto In Her Space, ao qual se juntaram mais uns amigos e saíram outros e ainda tocamos como Sound Asleep ou Safe and Sound. Paralelamente e pela mesma altura, quando vim para Lisboa para a universidade (design gráfico no IADE) comecei a trabalhar sozinho numa faceta mais abstracta, com um computador e alguns brinquedos novos (sintetizador, sequenciador, sampler) comecei a trabalhar em musicas que acabaram por ser editadas como ok.suitcase... também por essa altura conheci o Nuno Moita (comprei-lhe um Kaos pad no miau, site frequentado habitualmente naqueles dias) com o Nuno começamos a trabalhar sob o nome de Stapletape juntamente com João Vicente (responsável pelo vídeo) fizemos uns primeiros concertos na malaposta e depois tocamos no primeiro Sonic Scope (organizado pela Grain of Sound desde 2001?) editora que o Nuno estava a acabar de lançar e que entretanto também acabei por integrar a equipa...

Tanto quando sei vives entre Lisboa e Nova Iorque. Como geres todos esses projectos?

Eu vivo em Lisboa e onde conseguir ir até agora sempre que sai do pais foi por convite ou por me ter candidatado a alguma bolsa, exposição festival, etc. Não tenho residência em Nova Iorque, mas tenho sempre sitio onde ficar, por variados amigos q lá tenho, e com alguns dos quais desenvolvo também alguns projectos.

A nível musical?

Sim, por exemplo os EA, colectivo de 6 pessoas em que 4 residem em Nova Iorque uma na Colômbia e eu por aqui. O CD editado na Sirr com o Kenneth Kirschner residente em Brooklyn e mais umas coisas.

Fala-me um pouco do disco na Sirr, por favor.

Voltando à história, depois desses primeiros concertos e de mais umas edições e participações em diferentes compilações comecei com mais uns concertos (incluindo o palco Optimus em Vilar de mouros e umas primeiras saídas de Portugal (esta tudo na bio...), comecei a trabalhar o som para a criação de instalações, comecei a fazer as minhas primeiras candidaturas nesse campo e expus em alguns sítios até que ganhei a bolsa Ernesto de Sousa da Gulbenkian e da FLAD e fui para Nova Iorque durante três meses desenvolver e apresentar o projecto. já tinha conhecido o Kenneth em Madrid num festival em que ambos tocámos na mesma noite e foi muito natural convidá-lo pela especificidade do seu trabalho que enquadrava perfeitamente na ideia que tinha para a apresentação. O CD é a gravação integral dessa apresentação.

Vamos passar agora ao principal motivo da entrevista, o teu disco na test tube. Como é que aconteceu?

É muito específico.

Foi um somar de gravações tuas de alguns anos?

Não, tudo real time feito de propósito para a apresentação. Só fiz 2 apresentações nesse formato. Depois apresentei sempre em formato instalação. Tenho estado a gravar algumas coisas bastante distintas, desde sessões de Harmonium com o João Silva até o que será o próximo álbum de Complicado, o meu objectivo final é criar uma residência aqui em minha casa, em que possa receber artistas do estrangeiro e dar-lhes as condições para virem trabalhar num seu projecto e aproveitar a solarenga Lisboa e comer peixe fresco.

Então o que é que nos podes contar acerca do disco como Feltro?

Então, o projecto feltro aparece da minha necessidade de revitalizar o projecto ok.suitcase, na minha cabeça aquele moniker estava associado a algo passado e não me sentia confortável a editar mais coisas com ele, feltro aparece assim mas com uma maior consciência de com ele querer criar registos emocionais, gravações que a mim me despertam sentimentos pela situação em que as fiz, que me trazem recordações.

Isso quer dizer que não voltarás a editar enquanto ok.suitcase?

Sim, o álbum da test tube foi a primeira dessas gravações que realmente me apeteceu editar, mas apetecia-me editar na integra (o álbum foi um take em real-time com computador e guitarra e alguns pequenos ajustes finais) seria algo que nunca incluiria assim num CD principalmente por ser demasiado longo e a test tube, que tinha vindo a acompanhar o percurso, acabou por me parecer a opção certa pela própria ideia que eles fomentam, literalmente de tubo de ensaio.

Ia perguntar-te acerca disso. Experimentaste alguma coisa neste disco além de uma nova identidade?

Sim, claro, quero dizer, ando sempre a experimentar algo de novo, ainda não percebi se para ter uma panóplia de recursos para utilizar ou se ainda estou à procura do método que considere ser o óptimo, tenho uma ideia daquilo a que deve soar e continuo a desenvolver os meu patches em max-msp que cada vez mais fazem o que quero e que, dependendo de indeterminadas variáveis, me permitem chegar ao que quero. Também a incorporação da guitarra que sempre andou por perto mas agora é mais consciente. E desenvolver novos patches específicos para a guitarra.

Pretendes explorar mais a guitarra em próximos lançamentos?

Sim, a guitarra é a fonte da melodia, o processamento vem depois.

Depois desta "experiência" já começaste a pensar ou a gravar nova música para um próximo lançamento, talvez de novo em CD?

Sim, a faixa da test tube foi feita em Setembro, desde então tenho feito mais coisas que estão agora a tomar forma e que possivelmente estará acabado nos próximos meses.

Algo a sair da Crónica?

Ando a preparar um podcast para sair lá, e quando acabar o que ache ser indicado para editar em CD possivelmente enviarei também para a Crónica para ver se estarão interessados em editar mas enviarei para outras editoras também. Não há nenhuma relação de compromisso com a Crónica, somos amigos e se eles gostarem editam.

Feltro tem planos para apresentações ao vivo? Até em Nova Iorque?

Neste momento estou em Lisboa, estou em casa, em pleno bairro alto. A pensar se vá ver os NIN. É sempre bom ver um concerto com muito som para variar, e no caso seria também nostálgico.

Isso dava uma bela pergunta acerca dos teus gostos musicais. Isto é na verdade uma pergunta…

Ok, vou só responder sobre as apresentações ao vivo. Para já ainda não surgiu nada e não tenho nada preparado para ao actuar ao vivo, tenho andado a preparar coisas com Gigantiq que era para tocar hoje mas foi cancelado, o próximo será em Março. Quanto a gostos musicais, ouço do novo e do velho, a musica é algo que nos envolve e que te pode quer alterar quer "afinar" o estado de espírito, é isso que nos faz por a tocar este ou aquele CD, que nos faz escolher...

Mas pelo que me dizes isso pode ir até aos NIN por exemplo...

Mas isso é mais por piada. Ir por piada, porque estou mesmo a pensar em ir, mas talvez amanhã porque hoje é o primeiro dia da tournée e amanha já estão mais a vontade até sei detalhes. Mas já não ouço em casa, ou talvez o Further down the spiral.

Qual foi o último disco recente que te deixou "apanhado"?

Hmmm. Agora estou à procura desse mesmo disco. Mas o ultimo a chegar-me a casa foi o último do Tim Hecker.

Mas ouves música compulsivamente? És aquilo que se chama melómano?

Melómano, não sei se gosto ou não disso, no atelier onde trabalho chamam-me de emo, em Nova Iorque dizem que não tenho nada de emo, por vezes acho piada, por vezes acho que sim, por vezes acho que não, gosto de me envolver por musica e deixar que me envolva, e isto pode acontecer a ouvir os Mono ou Bob Dylan. Compulsivo não será o termo, nele está implícito uma força inconsciente que te impele a fazer algo, quando o faço é de forma muito consciente. Na medida do possível, acompanho o que me vai interessando e compro o que, e quando, posso, gosto de ter tempo para perder com um disco novo. Em casa ouço muita musica, gosto de me envolver por musica e deixar que me envolva, que a sua poética se revele, é principalmente isso que procuro e adoro quando isso acontece, e como...

Para terminar, qual é a tua relação com Nova Iorque?

Nova Iorque é uma cidade fantástica, saturada de acontecimentos, com imensas oportunidades, óptima para recarregar baterias. Lisboa por vezes torna-se esgotante com a calma que todos têm, por vezes sinto que não se sai do mesmo sítio, em Nova Iorque o clima é bastante mais intenso, sente-se a engrenagem em pleno funcionamento e que te força a acompanhar o seu movimento.


André Gomes
andregomes@bodyspace.net
20/03/2007