Iniciou-se na guitarra em miúdo e é agora um músico e compositor reconhecido em todo o mundo. Gary Lucas agarrou o sonho que transportava ainda jovem e só o largou quando conseguiu transformá-lo em realidade. Mais conhecido pelas colaborações com Captain Beefheart e com Jeff Buckley, participou ainda num sem número de projectos quer a nível individual, quer com a sua banda de sempre, os Gods And Monsters. A revista Folk Roots recentemente considerou-o como o "
mais interessante guitarrista a tocar actualmente". O Bodyspace
foi a Nova Iorque, cidade onde Gary Lucas vive, para lhe fazer algumas perguntas.
Começou
a tocar guitarra aos nove anos aconselhado pelo seu pai mas também tocou
corneta francesa aconselhado pelo professor da banda da sua escola. Os pais
têm sempre razão, não têm?
Os
pais não têm sempre razão, mas o meu pai andava muito perto
disso já que foi ele que teve a ideia de eu pegar na guitarra.
A
partir do momento em que decidiu tornar-se músico até ao momento
em que conseguiu realmente atingir esse objectivo esteve em muitas bandas
e passou por muitas situações. Como é que aconteceu essa
escalada?
Foi
mesmo uma progressão natural – gostava de tocar, logo liguei-me
a pessoas que gostavam também de tocar e vice-versa.
O
concerto de estreia do Captain Beefheart na Costa Oeste mudou a sua vida. O
que é que chamou a sua atenção?
Mudou
a minha vida porque eu nunca tinha ouvido nenhuma banda tocar de forma tão
poderosa, colorida e intensa – e provavelmente nunca mais voltei a ouvir
(apesar de o concerto do Brian Wilson inserido na digressão Smile que
aconteceu no Royal Festival Hall o mês passado ter andado lá perto).
Nunca tinha visto ou ouvido também guitarras serem tocadas de forma tão
estranha. Fez-me dizer a mim próprio “
se alguma vez fizer alguma
coisa na música, quero tocar com este tipo”.
Todos
sabemos que o Captain Beefheart foi um dos músicos mais excêntricos
e inovadores de todos os tempos. Considera-o um verdadeiro génio?
Completamente,
sem qualquer dúvida – de cabeça e ombros acima da maior
parte dos outros músicos, especialmente para um tipo sem habilidade inata
para tocar qualquer instrumento com verdadeira mestria (apesar de tudo era um
soprador de harmónica bastante competente). Era um primitivo, ou por
outras palavras, continha uma genialidade que transbordava a sabedoria.
Do
sonho à realidade, começou a tocar com a Magic Band do Captain
Beefheart. Como é que isso aconteceu? Como é que se sentiu a
tocar, lado a lado, com o seu herói de infância?
Aconteceu
porque quando vi a estreia dele em Nova Iorque, prometi tocar com ele caso fosse
fazer alguma coisa a nível profissional. Organizei o meu tempo e continuei
a praticar a música dele em segredo e, finalmente, disse-lhe que queria
uma audição para entrar na sua nova banda em 1975, quando a antiga
banda o deixou. Ele ficou surpreendido pois nunca lhe tinha dito que tocava
guitarra (até à altura, não achava ser suficientemente
bom). Ainda em 1975, convidou-me para ir até Boston, já que ele
estava em digressão com o Frank Zappa na tour Bongo Fury, por isso levei
a minha guitarra para lá e toquei para ele no quarto do hotel onde ele
estava. Ainda levei alguns anos até me juntar a ele, pois tive de partir
para o extremo oriente para trabalhar no negócio do meu pai. Quando voltei
uns anos mais tarde, entramos de novo em contacto e ele disse-me que estava
à espera do momento certo para me trazer a palco. Em 1980 mandou-me música
para aprender e o resto é história. Era puro êxtase tocar
com ele mas também bastante cansativo pois ele conseguia ser um pouco
ditatorial. Mesmo assim não me arrependo de nada no que diz respeito
ao meu relacionamento com ele.
Gravou
Doc at the Radar Station e Ice Cream For Crow com o
Captain Beefheart. Como é que foi trabalhar com a banda?
O
pessoal da Magic Band foi fantástico, mesmo amigáveis e prestáveis
no que diz respeito à minha participação nesses albuns.
“Evening
Bell” é, com certeza, uma canção especial para si. Como
é que foi o processo de criação e, acima de tudo, o processo
de memorização?
Bem,
foi uma criação do Don desde o princípio, eu apenas traduzi
a improvização no piano para guitarra. Sei, obviamente, que introduzi
muito do meu próprio estilo na canção. Ele mandou-me uma
cassete e disse-me “
aprende isto”. Eram cerca de 45 segundos de
uma gravação em que ele tocava piano, e eu sentei-me com ela e
com a minha guitarra durante cinco ou seis semanas, traduzindo mais ou menos
cinco segundos por dia para a guitarra, de ouvido. Quando acabei, mandei-lhe
a minha versão em cassete e ele disse “
sim, mas ainda há
mais” e mandou-me uma segunda cassete com mais música. Tive, depois,
de juntar esta última parte com a parte da primeira cassete por isso
aprendi a segunda parte como uma peça discreta e, depois, pratiquei teimosamente
a transição da primeira cassete para a segunda vezes sem conta,
pois essa era a parte mais complicada, juntar as duas composições.
Descobri que a minha memória era muito boa pois havia algumas notas estranhas
para memorizar e executar cuidadosamente e de forma rotineira.
Depois
da pausa do Captain Beefheart, decidiu produzir discos para Dave Gordon e Tim
Berne. Como é que foi enfrentar o fim daquilo a que chamou de “primeira
banda rock avant-garde do mundo”?
Fiquei
um pouco triste pois a banda tinha sido toda a minha vida. Mas estava determinado
a erguer-me do chão, tirar o pó de cima de mim, e mergulhar de
cabeça no mundo da outra música, que é um mundo imenso.
Nunca olhei para trás.
De
seguida, multiplicou-se em diversos projectos, como a Knitting Factory. Como
é que foi montar o seu próprio espectáculo de guitarras?
Bem,
estava um bocado nervoso até entrar em palco e começar a tocar.
A sala estava cheia e eu estava a transpirar, nervoso. Mas mal comecei a tocar,
fui invadido por uma onda apaixonada de êxtase que tomou conta de mim
e ainda houve lugar para múltiplos encores. Além disso ganhei
bastante dinheiro. Naquela noite disse a mim mesmo “
é isto que
eu quero fazer da minha vida” por isso dediquei-me à música
a tempo inteiro. Foi mesmo um ponto de viragem na minha vida, o mês de
Junho de 1989.
Apresenta
uma mistura eclética de jazz, rock, folk, blues e música clássica.
Os Gods and Monsters são o principal veículo para isso?
Sim,
já toco com esta banda há uns quinze anos. São todos músicos
incríveis, Jonathan Kane na bateria e Ernie Brooks no baixo. Nos primeiros
tempos, a constituição da banda era diferente e sofreu algumas
mudanças com a entrada de cantores como o Jeff Buckley, que se juntou
a nós em 1991. Mas esta formação tem-se mantido estável
nos últimos sete ou seis anos, Deus os abençoe.
Como
é que conheceu o Jeff Buckley? Como é que era a sua relação
com ele?
Fui
convidado para tocar num tributo ao pai dele, Tim Buckley, na igreja de St Ann
em Brooklyn, na primavera de 1991 pelo produtor Hal Willner. Ele disse-me que
o Tim tinha um filho chamado Jeff que o tinha contactado para actuar também
de forma a prestar tributo ao seu pai, que tinha falecido quando ele era ainda
miúdo. Nunca ninguém tinha ouvido falar do Jeff. O Hal pensou
que eu seria um bom colaborador com ele. Por isso vi o Jeff no primeiro ensaio,
a cara chapada do pai, e ele parecia verdadeiramente eléctrico. Chegou
perto de mim e disse “
Oh, Gary Lucas! Adoro a tua forma de tocar, sei
tudo sobre o teu trabalho com o Beefheart, li sobre ti na revista Guitar Player!”
Convidei-o para vir até ao meu apartamento em Greenwich Village para
trabalhar numa das canções do pai (“The King’s Chain”
do album Sefronia), liguei a guitarra e comecei a tocar. O Jeff começou
a cantar e o resto é história. Disse-lhe que era uma verdadeira
estrela, mas ele não pareceu acreditar em mim – ele era bastante
tímido e modesto naquela altura. Pedi-lhe imediatamente que se juntasse
à minha banda, os Gods And Monsters, pois procurava um vocalista. Ele
adorou a ideia. Diria, definitivamente, que fui um mentor para ele e um colaborador
com quem ele podia realmente contar. Algumas das canções que produzimos
juntos, como “Grace” e “Mojo Pin” por exemplo, fizeram
estremecer o mundo.
Como
é que era trabalhar com ele?
Ele
foi o colaborador mais talentoso que alguma vez tive. Nós tinhamos uma
relação de composição de sonho: entregava-lhe um
instrumental completamente acabado e ele voltava, por vezes meses mais tarde,
com a melodia completa e letras que se ajustavam como uma luva perfeita. Era
um músico incrível!
Como
é que reagiu à morte dele? Tinham alguns planos para o futuro?
Fiquei
completamente esmagado. Fiquei especialmente triste pois sabia que teriamos
hipótese de fazer muito mais bom trabalho juntos se ele tivesse vivido,
apesar de não termos planos específicos. Tinha-me juntado com
ele em palco, em Nova Iorque, a convite dele e apercebi-me que a magia e a química
ainda estava ali, entre nós.
Como
é que foram os momentos que resultaram em Songs to no One?
Pequenos
momentos do ano que passamos juntos, música verdadeiramente pura e espiritual.
Trabalhou
com o Lou Reed, Nick Cave, John Cale, John Zorn, Iggy Pop, Patti Smith e muitos
outros. Tem alguma história especial para contar?
A
Patti, em 1996, convidou-me para actuar com ela no Tramps, um clube nocturno
aqui em Nova Iorque com o Lenny Kaye e o Oliver Reed num espéctaculo
em memória do grande escritor de canções que era o Robert
Palmer e que tinha acabado de falecer. O Robert foi meu amigo, e, na revista
Rolling Stone, deu quatro estrelas ao álbum de 1992 dos meus Gods and
Monsters. Fiquei surpreendido com o convite dela porque nunca nos tinhamos conhecido
antes, e fiquei completamente emocionado e orgulhoso ao receber o convite dela
para tocar. Por isso,
rockamos muito!
Teve
sempre uma relação estreita com a música do mundo. O seu
trabalho a solo mais recente, The Edge of Heaven, é um tributo
à música pop chinesa dos anos trinta. Como é que surgiu
essa ideia? Teve alguma inspiração ou preparação
especial?
A
minha primeira mulher era chinesa e ela tinha uma música numa cassete
(nós vivíamos juntos em Taipé, ela estava a estudar e eu
trabalhava lá) que pôs a tocar numa certa noite. Fiquei espantado,
nunca tinha ouvido nada assim. Um cruzamento de Billy Holiday com Anna May Wong,
swing de tin pan alley com influências chinesas. Guardei a cassete como
se fosse um tesouro e em 1996, o meu melhor amigo convidou-me para fazer os
arranjos para algumas canções para o casamento dele com a sua
querida chinesa aqui em Chinatown, Nova Iorque. Tive um sucesso enorme e estava
determinado a pôr algumas partes no meu album Evangeline, o que deu origem
a uma oportunidade de fazer o album inteiro, que foi finalmente lançado
uns anos depois. Correu o mundo todo e teve críticas delirantes em cada
país onde foi lançado - inclusivé na China!
E
em relação aos Du-Tels, com o Peter Stampfel? No Knowledge
of Music Required é muito diferente daquilo que costuma tocar.
Como é que foi a experiência?
Adoro
tocar com o Stampfel, uma espécie de bluegrass psicadélico de
longa data que está no meu sangue, embora não esteja presente
nos meus outros trabalhos. Nos anos 60, costumava ouvir religiosamente uma banda
chamada The Holy Modal Rounders. Eles eram engraçados, inteligentes e
anárquicos e faziam-me sempre sorrir.
Faz
muitas vezes música para filmes e documentários. Como é
que é criar música para as imagens? É mais fácil
ou difícil fazê-lo?
Música
para filmes é fácil para mim pois toda a minha música contém
elementos cinematográficos. Gosto de pintar imagens sonoras na mente
com o uso da música. Gosto de levar as pessoas numa viagem.
A
Magic Band vai reunir em Junho. Qual é a sensação de voltar
a tocar com a sua banda?
É
uma sensação incrível, eles são excelentes artistas
e conseguimos tocar quase de uma forma sincronizada. A música continua
a soar tão fresca como soava originalmente.
Ainda
está envolvido em muitos projectos. Quais são os planos para
o futuro?
Fazer
mais álbuns, digressões por mais países e continuar a expandir
a minha audiência. Acima de tudo, é aquilo que eu mais gosto.