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Amélia Muge
O mundo a seus pés


Passaram-se alguns anos de notada ausência mas o regresso não poderia ter acontecido de melhor forma. Amélia Muge assinou mesmo no final de 2006 um disco sublime: Não sou daqui, primeiro capítulo de uma trilogia de discos anunciada, é um disco profundamente encantador, inteligente e deslumbrante. Juntou as suas palavras aos poemas de António Ramos Rosa, Eugénio Lisboa, Hélia Correia e Sophia de Mello Breyner Andresen e explorou a canção como área de fronteira cultural. Talvez se venha a perceber este disco ainda melhor quando a trilogia se fechar, mas Não sou daqui é desde já um documento visivelmente cuidado e pensado, um registo rico e um sério candidato a encabeçar as listas de melhores discos portugueses do ano e não só. Consciente e seguríssima do seu trabalho, Amélia Muge, em conversa com o Bodyspace, levanta o véu de Não sou daqui e de outros assuntos pertinentes da sua carreira. Amélia Muge parece não recordar muito do seu passado, mas o futuro só pode trazer boas coisas a alguém que encara a vida desta maneira. E porque o futuro é “amanhã”, a estreia em concerto de Não sou daqui acontece já no próximo dia 17 de Fevereiro na Culturgest, em Lisboa.
Antes de mais perguntava-lhe algo que deve passar pela cabeça de muitas pessoas. A que se deveu a pausa de quase cinco anos?

Uma pausa discográfica pode ter a ver com falta de trabalho. No meu caso não foi isso que aconteceu. Não preciso dizer mais nada. Editaria mais rápido se fizesse outro tipo de música. Posso deixar para trás “uma carreira” mas não estas canções e tudo o que nelas está e que é muito mais do que música. É com estes projectos que eu quero estar, mesmo que esta escolha me obrigue a estar tanto tempo sem editar.

O que é que lhe oferece dizer acerca desta trilogia de discos da qual Não Sou Daqui é o primeiro capítulo? O que é que nos pode contar acerca dos seus objectivos e intenções? O que é que os une e separa?

Separa-os o modo como vou produzi-los, os seus centros de interesse. Une-os o momento em que decidi ser mais fácil dividir, pois é de facto complicado fazer álbuns tão eclécticos como os anteriores. É também um desafio trabalhar em 3 discos diferentes, as 3 referências fundamentais do meu trabalho enquanto compositora: a canção (como zona de fronteira cultural), a música de tradição europeia (como “partitura transtemporal” ligando passados e futuros) e a tecnologia recente (enquanto desafiadora de novas sonoridades e novas possibilidades de criação musical). Isto se por um lado facilita a produção é uma oportunidade de aprofundar cada uma destas referências, sem que com isso eu me tenha que meter forçosamente numa gaveta.

O título deste novo disco é rico em interpretações. É de alguma forma autobiográfico? Que significado lhe atribui?

Não faço discos autobiográficos. Eu sou uma pessoa muito simples e de gostos iguais a toda a gente. Nada a referenciar. Os discos fazem parte da minha profissão. Logo, tento trabalhar o melhor que sei, partindo de uma ideia e tentando fazer um percurso com ela. No decorrer do trabalho há investigação, há poemas, há canções, há imagens. Tento sempre encontrar títulos aparentemente óbvios, mas que deixam sempre uma ponta do véu levantada para outras interpretações, que foram sendo pensadas, ou encontradas ao longo do percurso. E isto permite outra coisa muito engraçada: há sempre alguém que traz um ponto de vista novo.

Pelo texto que acompanha o disco fica a impressão que deu quase tudo aquilo que tinha naquelas canções, como uma espécie de esvaziamento emocional. Concorda?

Concordo. Como em qualquer trabalho em que me meto. Não sei bem no entanto o que é um esvaziamento emocional. As emoções pelas emoções… esvaziam-se quase sempre da mesma maneira. Como os lobos uivando à lua. As ideias juntam sempre à emoção a força dos confrontos que elas nos proporcionam e a força dos interesses que defendemos. Por isso tenho necessidade de escrever textos como o que acompanha o disco. Ele não é explicativo de nada. Levanta apenas algumas das minhas inquietações. Elege questões para mim importantes. Mas não dá respostas nem pretende encontrar conclusões para nada. Isto é, “ esvaziando as emoções” … fica a força do que é e está.

Por vez chega-se a sentir o sorriso na sua voz, por exemplo em “Arena (à volta da sala)”. Fazia questão que este disco fosse assim tão humano e quente?

Eu e os músicos que comigo estiveram nas gravações, os técnicos que acusticamente trataram o disco, são humanos. Quentes e frios, conforme o clima e a ocasião. Porque não devia ser normal que isto acontecesse? É engraçada a pergunta, mas não são coisas que se faça questão de ter. Acontecem. E humanos são também – e sempre – os poemas, quando são mesmo poemas e não apenas fachada. E a música então… Acho que ainda somos o único animal no planeta a fazer música. Mas nunca se sabe…. Talvez esteja a fugir à questão mas eu canto como converso. Há riso… e também há choro. E silêncio. E tremura na voz. E grito. Tudo a que temos direito.

No final dessa canção ouve-se alguém sussurrar “Só neste país”. Também Sérgio Godinho o diz numa das canções deste seu último disco. É uma mensagem a este Portugal de lamentos?

Ouve-se isso e outras coisas. Parte das frases que giram nas conversas da sala. Fiz isto antes de ouvir o Sérgio. Embora o disco só tenha saído agora, a gravação é do início do ano passado. Neste caso não são lamentos. É o “diz que diz” no limiar do sono… muito em câmara lenta. Mais do que o registo do lamento é aquele registo do que não atrasa nem adianta… Lamento, lamento a sério é aquele poema do Pessoa que diz: “ sono de ser, sem remédio… vestígio do que não foi “. Por acaso está no “ A Monte”, o meu álbum anterior.

Li algures que o disco se fez em três dias. Foi essa a forma que escolheu para este disco ou o carácter repentino da concepção do disco surgiu naturalmente?

Não sei como surgiu esse engano. Eu falei em seis dias de estúdio alugado e perceberam três. Referi esses dias como dias pagos, que, sendo poucos, embarateceram a produção, embora de facto, nesses 6 dias tivessem ficado gravados os instrumentos base: piano, contrabaixo, cajón e os solos da voz. Houve depois mais horas de trabalho para além dessas onde também está incluída a pós-produção no nosso estúdio, muito caseiro, nos estúdios da Etic e no Estúdio do Tó Pinheiro da Silva.

Não sou daqui faz-se de composições suas para poemas seus e de António Ramos Rosa, Eugénio Lisboa, Hélia Correia e Sophia de Mello Breyner Andresen. A escolha dos poemas é natural?

Tão natural como a minha sede. E a deles (poemas), de se encontrarem comigo neste espaço. Os poetas não vêm por arrasto; têm temáticas recorrentes, e eu fiz questão de incluir no disco excertos de outros poemas ou textos destes poetas onde isto se percebe. No fundo, não sou eu quem escolhe os poemas que vão surgindo à volta da ideia central dos discos. Eu vou compondo sem pensar nos discos e vou alimentando uma espécie de arquivo de ideias-canção. Depois, são as ideias de percurso que as convocam. E com as canções os poemas. E com os poemas, os poetas.

Neste disco presta homenagem à música brasileira simbolizada por Caetano Veloso. Onde começa a sua relação com a música do Brasil?

Como começa a relação com qualquer outra música: desde muito pequena que ouvia em casa música de todos os lados. Através de Caetano homenageio todos os que me deram a escutar a maravilha da palavra cantada em português de uma forma tão conseguida. E Caetano é o compositor que mais me ensinou do encontro da língua portuguesa com o mundo.

Não Sou Daqui inclui ainda um conjunto de desenhos e um vídeo da sua autoria. Sentiu que este disco necessitava de ser ilustrado, de ter uma ou várias imagens?

Todos os meus discos têm presente (de uma maneira menos evidente) a questão da importância da imagem no meu trabalho. Não tanto como componente de ilustração, mas também e, mais uma vez, como matéria de pensamento. Ajudam-me a perceber melhor por onde ando quer no campo das ideias quer no campo das interacções. Neste disco achei importante (e tive a oportunidade) de acentuar esse aspecto. No caso da animação em vídeo a ideia foi usar meios que actualmente estão facilmente à nossa disposição: a captação de imagem por telemóvel, o “photoshop”, para pensar, sem grandes tecnologias, o “eu” no mundo geográfico, mas também no mundo da pura imaginação que é em si mesma um mundo não só de diversão como de procura de novos mundos e novos estares nos territórios da mente.

Na sua carreira compôs canções para diversas actividades como o teatro, a poesia, programas da rádio e televisão e várias campanhas de apoio às mais variadas causas. Agrada-lhe essa multiplicidade de plataformas e o lado, digamos, de solidariedade que a música por vezes explora?


Toda a música que se interroga é solidária. Toda a música que integra os vários campos do saber humano é solidária. Toda a música que se entrega, ela própria, às várias formas de estar à escuta dos problemas de todos é solidária. Fazer uma música ou uma acção de formação, fazer um disco ou um livro, é tudo a mesma coisa. Intervir, tem para mim o sentido maior de ligar a Arte à Ciência e à Técnica, à Educação e à reflexão sobre o mundo para melhor intervirmos nele. Não faço uma música que aponte opções políticas ou simplesmente moralistas ou ideológicas. Tento, com a minha música, ajudar as pessoas a ter ideias para construir o seu caminho. É ambicioso? Mas se assim não fosse também não conseguia encarar – como encaro – o meu trabalho como uma homenagem a outros cuja presença neste mundo considero que teve essa dimensão. E deixaram pistas preciosas para os que se seguirem fazerem mais e melhor.

Fazia agora um flashback para lhe perguntar o que guarda dos dias em que editou o seu primeiro disco, Múgica.

É curioso. Essa pergunta leva-me a pensar que não guardo nada dos dias. Não guardo se calhar nada de nada. Talvez para melhor caminhar. Sei por onde andam as coisas que me interessam desses dias. Na Guiné, há pescadores que devolvem vivos ao mar os peixes que ficaram nos barcos depois de todos se terem servido das quantidades que queriam. Para que guardá-los se não faziam falta no momento? Para que matá-los se não tinham sequer como conservá-los? Sabem sempre onde eles estão e vão lá buscá-los sempre que quiserem. É isso. Eu não guardo nada. E guardo tudo, pois tudo continua à solta, interferindo na “múgica” de hoje.

Representou algum peso extra para si ganhar em 1999 o prémio José Afonso, que a premiou pelo Taco a Taco que tinha editado no ano anterior?

Se peso significa responsabilidade acrescida, não. Não trabalho para ganhar prémios sejam eles quais forem. Trabalho para homenagear os que me ajudaram a crescer. O Zeca foi um deles. Este prémio, em última análise, é sempre dele. Se peso significa necessidade de a partir daí demonstrar alguma coisa que não tivesse demonstrado antes, também não. Gosto de partilhar as coisas de que gosto, para lá das canções. Sempre foi assim e será. Julgo-me pelos meus próprios padrões de análise onde cabem todas as ideias que me são transmitidas e que me ajudam a ser e a fazer melhor. Sempre em taco a taco com as escolhas, claro.

Quais são as vozes portuguesas que acompanha hoje em dia com maior entusiasmo? Pergunto tanto pelas vozes, digamos, consagradas como pelas novas vozes da música portuguesa…

Pressuponho que estamos a falar de expectativas quanto a novos trabalhos: José Mário Branco, Fausto, Sérgio Godinho, Gaiteiros de Lisboa, Mísia, Cristina Branco, Camané, Mafalda Arnauth, Ana Moura, Filipa Pais, Janita Salomé, João Afonso, Sara Tavares, Marta Dias, Maria João, Dulce Pontes, Lula Pena, Zeca Medeiros, J.P. Simões, Segue-me à Capela, Moçoilas, Cramol, Vozes da Rádio, Canto Nono… Instrumentistas? Compositores? Júlio Pereira, Carlos Bica, José Peixoto, Rodrigo Leão, Rui Júnior, Mário Delgado, Manuel Paulo, Pedro Caldeira Cabral, Danças Ocultas, Brigada Victor Jara, Realejo, Clã, Filipe Raposo, Mário Laginha, Ruben Alves, João Paulo Esteves da Silva… Letristas, para lá dos já incluídos? Carlos T, João Monge. Novíssimos, que ainda não gravaram disco a solo? Mariana Abrunheiro… Estou-me a esquecer de alguém, de certeza…

A primeira apresentação em concerto de Não Sou Daqui será no próximo dia 17 de Fevereiro na Culturgest, em Lisboa. O que espera dessa actuação?

Não estou sozinha nesta preparação. Há muito trabalho de toda uma equipa. Vou estar pela primeira vez em palco com o artista plástico António Jorge Gonçalves e espero que a música o inspire, as suas imagens nos inspirem e espero que o palco daquela casa goste de nós. Para o público que lá estiver, espero que ele faça parte das cumplicidades que por ali andarem durante o tempo do concerto. Espero que os temas que escolhi, dos meus discos anteriores, gostem de partilhar com o público as suas novas roupagens que o “Não sou daqui” inspirou. Aguardo o momento com a expectativa que temos sempre quando sentimos que nos estamos a preparar para “um bom encontro”. Ou um “ bom namoro”. Como quiserem.


André Gomes
andregomes@bodyspace.net
14/02/2007