Os preceitos redactoriais do bom escriba dizem que para uma entrevista é necessário um pretexto. Para a conversa que se segue há efectivamente um motivo que lhe serve de bastião, como os leitores mais atentos poderão testemunhar. Mas, neste caso, a tarefa que propomos é tentar compendiar as pilhas de discos e experiências que Nikki Sudden compôs e viveu. Desde os verdes anos até uma certa disputa (bom, talvez apenas uma troca de galhardetes) com uns tais de Raveonettes.
Sudden foi membro fundador dos Swell Maps, um grupo dos anos 70 que ajudou a enformar o pós-punk e assim. Depois, iniciou-se no celibato da música, não se escusando, no entanto, a dar umas por fora. Em colaborações várias, bem entendido. A propósito, a escusa desta conversa (mediada) é mesmo o disco
Treasure Island, que não leva só o seu nome assinado. O atraso na publicação da entrevista é da inteira responsabilidade do próprio entrevistado, que só enviou as respostas quatro meses depois de lhe terem sido endereçadas as perguntas. Mas o Bodyspace é amigo e perdoa o mal que lhe faz pelo bem que lhe sabe. Por assim dizer.
Diz-se
que os Swell Maps foram uma inspiração para os Sonic Youth e os Pavement. Como
se sente em relação a isto?
É sempre gratificante quando lês que certas bandas foram
influenciadas pela tua música. Conheci os Pavement e fui tomar um copo com eles
depois de uma actuação em Berlim. Pareceram-me simpáticos. Conheço os Sonic
Youth (SY) desde meados dos anos 80. Sempre me dei bem com eles. O Steve Shelley
[NR: o baterista que, quando integrou os SY, parecia ter acabado de entrar na
puberdade] tocou em três ou quatro temas que eu gravei em Nova Iorque, no início
dos anos 90. É bom ser apontado como influência por tantos músicos que eu respeito:
Ryan Adams, Wilco, Peter Buck (R.E.M.), Evan Dando, Jason Faulkner, Mercury
Rev, etc., etc. Tanto o Evan como os Mercury Rev já gravaram canções minhas
– era bom que os outros também o fizessem. Havia alturas em que eu e o Epic
[Soundtracks, irmão de Nikki] pensávamos que todas as pessoas que gostavam de
nós eram músicos. Às vezes, parece ser verdade.
Os swell maps são os diagramas que os
surfistas usam para medir a intensidade das ondas. Sente-se parte deste imaginário?
No Natal de 1965, eu e o Epic recebemos um mini-álbum
de 7’’ de
A Trip to Marineville (Century 21 Records). O registo era parte
da série Gerry Anderson, a Stingray (Thunderbirds, Captain Scarlet, Supercar,
etc.). Não compreendo de onde surgiu a confusão. No disco, um rapaz chamado
Johnny está próximo de uma torre de controlo em Marineville e, ao ver um diagrama
do oceano, exclama
”Say that’s a swell map!”. O Epic sugeriu esse nome
para a banda. Além dos Beach Boys e do Brian Wilson não sei nada sobre como
apanhar uma onda!
Depois dos Swell Maps se dissolverem, o Nikki
começou uma carreira a solo, pontuada por actuações com diferentes bandas e
projectos paralelos. Como se sente melhor, a trabalhar sozinho ou com alguém
por perto?
As duas situações são diferentes. Adorei estar nos Swell
Maps – e o facto de ter passado o mês anterior a fazer o
artwork para
as reedições de
Trip to Marineville e
Jane From Occupied Europe
e a remasterizar as cassetes fez-me perceber que a banda era bem melhor do que
eu pensava. Qualquer idiota que ainda pense
”os Swell Maps não sabem tocar”
ou
”os Swell Maps soam lo-fi” é um perfeito imbecil e sempre foi. O Dave
Kusworth e eu juntámo-nos para fazer uma digressão pela Noruega, Alemanha e
Áustria com outras actuações em diferentes países. Uma das razões para estarmos
em digressão é juntar dinheiro para gravar um novo disco – o nosso primeiro
depois de
God Save Us Poor Sinners de 1998. O Dave tem a sua banda, The
Tenderhooks (www.davekusworth.com) e eu tenho os The Last Bandits, por isso
continuamos muito ocupados. Os Tenderhooks gravaram quatro álbuns nos últimos
anos e todos merecem atenção. E, antes de morrer, o meu irmão falava-me em gravarmos
juntos novamente. Disse que adorava tocar no meu próximo disco, aquele que se
veio a ser o
Red Brocade. Gosto de trabalhar sozinho e de dar actuações
em nome próprio, mas também gosto de tocar com uma banda porque é algo em que
me posso apoiar. São dois mundos diferentes.
Dois anos depois da separação, nasceram os Jacobites.
Mais tarde, trabalhou com o Rowland S. Howard dos Birthday Party. Quais são
as maiores diferenças que detecta?
Tocar com o Dave Kusworth é diferente de tocar com o
Rowland, mas com ambos consigo ter uma aproximação ao estúdio muito semelhante.
O Rowland chegou e tocou no
Texas [1986] e em
Dead Men Tell No Tales
[1987] antes de compormos o
Charabanc [
Kiss You Kidnapped Charabanc,
de 1987]. O Kusworth tocou no
The Bible Belt [1983] antes de gravarmos
o primeiro álbum enquanto Jacobites. Se o Rowland não tivesse regressado à Austrália,
estou certo de que tínhamos gravado mais qualquer coisa juntos. Tenho a certeza
que o faremos proximamente. É suposto ele fazer uma digressão europeia com os
Devastations (www.thedevastations.com) no próximo ano [este ano]. Quando tens
amigos verdadeiros, nunca os perdes. Mesmo quando morrem, continuam aqui. O
meu irmão tem estado muito próximo de mim nos últimos tempos. Eu limito-me a
entrar no estúdio e a tocar as minhas canções, os meus colaboradores ajustam-se
ao meu trabalho, ou vice-versa. Não há grande mistério em fazer um disco mas
precisas de um pouco de magia antiga. E como a obténs é um segredo profundo.
Os discos editados sob o nome de Nikki Sudden
tocam um leque de diferentes assuntos. The Bible Belt, Crown of Thorns
e God Save Us Poor Sinners mostram ecos de religião. Preocupa-se com
isso?
Não posso afirmar que a religião me preocupa, mas é óbvio
que se reflecte através de mim. Os nossos pais [NR: Sudden refere-se aqui, novamente,
ao seu irmão Epic] eram e são ainda cristãos, e nós fomos educados no Cristianismo.
O facto de mais tarde termos rejeitado a religião organizada não influi grandemente
na discussão – ela ainda afecta os teus pensamentos e a tua forma de pensar.
O Antigo Testamento é um livro fascinante, tal como o Novo Testamento. Eu já
não os lia há muitos anos quando encontrei a minha King James Bible dos tempos
de escola – a única que me diz algo – na casa dos meus pais, e aquilo mexeu
comigo. A imagética religiosa é omnipresente na tua vida quer sejas muçulmano
ou judeu, crente ou ateu. Mas eu detesto fanáticos, sejam eles fanáticos religiosos,
bombistas-suicida ou presidentes americanos. Quem precisa destes imbecis?
Enquanto trovador pioneiro que foi e é ainda,
o que pensa dos mais caloiros como o Mark Kozelek, Elliott Smith, Damien Jurado
e Mark Eitzel? [NR: Na altura em que a entrevista foi elaborada, Elliott Smith
ainda não tinha desaparecido do nosso convívio.]
Acho que o Mark Eitzel gosta da minha música, mas ele
é um bocado depressivo, não é? Nunca ouvi falar dos outros três! [ah?!] Talvez
tenha ouvido falar do Elliott Smith [NR: ele havia morrido no mês anterior à
data em que Sudden respondeu às perguntas via e-mail], o nome dele soa-me vagamente
familiar mas acho que nunca ouvi nada dele. Quase nunca ouço rádio, raramente
vejo televisão. Viver na Alemanha torna ambas as actividades sem sentido, dado
que insistem em falar alemão por aqui. As únicas vezes em que ouço rádio, vejo
televisão ou leio um jornal são quando estou em casa dos meus pais em Inglaterra,
onde eles têm as três coisas. Por isso, a música que ouço é a mesma que sempre
ouvi, mais uma coisa ou outra que me interessa. Tenho suficientes amigos músicos
ou com bom gosto, pelo que acabo por ouvir tudo o que vale realmente a pena.
Além disso, vou a uma média de dois ou três concertos por semana. Se é bom,
acabo por ouvir. Os músicos que referiu são certamente dignos de nota, por isso
vou tentar ouvi-los.
Diz-se que está em digressão uns nove meses por
ano, e que escreve e grava material novo nos intervalos. Como consegue manter-se
tão prolífico sem se cansar ou começar a descompensar?
Eu acredito que se se é músico, deve-se estar a escrever
música, a tocar ou a gravar música. Adorava estar em digressão nove meses por
ano e dentro do estúdio os outros três. Quando estou em tournée, componho sempre
canções novas nos
soundchecks. Metade do
Treasure Island foi escrita
em
soundchecks. É um grande alívio ter a possibilidade de finalmente
ligar a guitarra ao amplificador e tocar. Todas as letras caem do céu sobre
a minha cabeça. Escrever canções nunca – bate na madeira – foi um problema.
Se tudo correr bem, nunca há-de ser. Um dos meus escritores vivos preferidos,
Bernard Cornwell, disse
"writer’s block is nature’s way of telling you you’re
not a writer" [NR: "o bloqueio do escritor é a forma da Natureza te dizer
que não és escritor"]. Eu concordo com isso. Senão, por que é que o Bob Dylan
ou outros nunca se queixaram de bloqueio por mais do que escassos anos?
Há um novo disco a sair. O que se pode esperar
de Treasure Island e do seu trabalho gráfico?
O disco é o primeiro, que eu alguma vez fiz, que posso
tocar à frente de qualquer pessoa no mundo e sentir-me 100% orgulhoso. Penso
sempre que a capa de um álbum deve parecer-se ao que o disco soa. Este registo
demorou muito tempo a concretizar-se. Eu tive quatro anos – o
Red Brocade ficou pronto em Maio de 1998 e foi editado no mês de Abril seguinte… O John,
Stephane e eu entrámos no estúdio para começarmos a gravar
Treasure Island em Julho do ano passado [NR: isto é, de 2002]. Por isso, tivemos mesmo uns quatro
anos. Eu tinha uma lista de 80 possíveis entradas para o álbum. Passou um intervalo
de tempo ridiculamente longo até que as coisas ficassem prontas. Uma das razões
para a demora foi a Glitterhouse dizer que eu não poderia lançar um novo álbum
durante 18 meses, depois de ter editado o meu best of,
The Last Bandit.
Eu tinha o dinheiro para entrar em estúdio no Verão de 2001 mas, por qualquer
motivo, não senti que a altura fosse certa. De qualquer modo, tinha uma lista
de 80 músicas, acabámos por gravar vinte delas, mais uma que o Terry Miles e
eu escrevemos e que vai ser refeita para o próximo LP. Eu podia falar de
Treasure
Island durante horas, mas acho que o melhor é esperar que o disco saia e
ouça por si.
Como surgiu a ideia de escrever um livro sobre
Ronnie Wood? Como está a correr? Já encontrou alguma editora interessada?
Ainda nem sequer procurei editora. Prefiro esperar até
que 90% do livro esteja escrito. Aqui fica um pouco da introdução:
[NR:
Nesta fase, Nikki Sudden começa a desfiar extensivamente a tal introdução. O
entrevistador reserva-se o direito de destacar as passagens que considera mais
relevantes.]
“I have three descriptions of the English rock’n roll star
life during the 1970’s. The first is the opening page of Peter Burton’s authorised
Rod Stewart – A Life On The Town. Set in Rod’s newly acquired, $750,000 twenty-roomed
house on Carolwood Drive, Holmby Hills, a very swank area north of Sunset Boulevard
near Beverly Hills, Los Angeles (…). This wash of luxury – of Rolls Royce and
masseuse and swimming pools – paints one side of decadence gone out of hand.
The scene of pure opulence detail the early days of LA Rod. The second is (…)
Keith Richards. (…) a decayed yet fascinating junkie glamour – much as Keith
had given out throughout the 1970’s. “If you’re gonna get wasted, get wasted
elegantly.” Then there’s Villa Nellcôte, (…) the pages are washed with heroin,
but this time it seems simpler and less destructive. Purer and more innocent,
(…)”
Frequentemente, desejo nunca ter começado o livro porque quando começas
uma coisa, deves levá-la até ao fim. E depois de ter escrito mais de 110 000
palavras, ainda há muito trabalho a fazer. Um dos problemas do meu estilo de
vida (e um dos benefícios) é que, porque estou fora muitas vezes, é difícil
retomar a escrita do livro. Quando se está em digressão durante algumas semanas,
é necessário voltar a ler muito do que foi escrito, se não mesmo todo o livro,
para se regressar a ele. Dou por mim a criticar muito a minha escrita em vez
de a retomar e acabar de escrever. Por isso, o livro vai devagar. O que eu preciso
é de fazer um retiro num casebre remoto nas terras altas da Escócia ou numa
ilha grega – com Internet – e passar seis meses a acabar o livro. Também preciso
de entrevistar o Ronnie (e o Mick, o Keith e o Rod, bem como algumas outras
pessoas).
E, em relação à banda sonora do filme Honey
Baby do realizador Mika Kaurismäki, o que tem a dizer?
Honey Baby vai estrear no Berlinale – o Festival
de Cinema de Berlim – mas o filme não vai estar disponível para o público em
geral até Junho ou Julho. O Mika e eu vamos gravar juntos a banda sonora nos
WSRS em Inglaterra em Janeiro [NR: portanto, já o devem ter feito]. Apesar de
o Mika e eu nos darmos muito bem, ainda não vi qualquer filme dele a não ser
o
Honey Baby. E também ainda não vi a versão final, que o Mika me assegura
que está exactamente como ele desejava. Cada vez que vejo o filme sinto-me muito
orgulhoso – se é esta a expressão – quando “Jangle Town, Flying (pt 1)”, ou
qualquer outro dos meus temas, começa a tocar. O Mika ligou-me uma noite por
volta das 22 horas a perguntar se, se ele viesse a minha casa na manhã seguinte
às 11 horas, poderia levar consigo o material que eu tinha preparado para ele.
Apesar de naquele momento ter apenas uma música gravada na cassete, eu disse
“Claro!”. Fiquei acordado a noite toda, escrevi e gravei cinco ou seis canções
e compilei vários temas da minha carreira. Deitei-me às 8 horas da manhã seguinte.
Dormi um par de horas e levantei-me para me encontrar com o Mika como combinado.
O que nos pode contar da disputa com os Raveonettes?
Não houve disputa. O que aconteceu foi que algumas pessoas
me disseram que tinham ouvido “Attack of the Ghost Riders” e que soava muito
a “Midget Submarines”. Eu ouvi uma cópia da canção e concordei – por isso, escrevi
para o website da banda e pedi uma cópia.
[NR: Sim, Nikki Sudden fez questão
de transcrever os mails da discórdia.]
“Dear Raveonettes,
I was mildly
amused when a friend of mine played me your track, Attack of the Ghost Riders,
because it sounds remarkably similar to my song Midget Submarines.
I’d be
pleased if you could send me a copy of the number.
Best,
Nikki Sudden”
Esta foi a resposta que obtive.
[contactos omitidos]
“Nikki,
I am
the manager of the Raveonettes. I don’t have any promo copies of the album in
my office right now. However, the album is available at stores if you want to
buy one. We haven’t heard of your song before now. Is it something available?
Scott”
Ao que eu respondi:
“Scott,
My song, Midget Submarines, was
released in 1979 by my band Swell Maps. It’s on the album A Trip to Marineville
(Mute Records). If the Raveonettes haven’t heard Midget Subs then their track,
Attack of the Ghost Riders, must be doubly inspired. As well as using the basic
drum part and riff from my song it also uses (towards the end) the dual guitar
part that guitarist, Richard Earl, and myself played. Synchronicity or what?
Best,
Nikki Sudden”
Não ouvi mais nada da banda ou do manager deles
em Nova Iorque desde então. Escrevi-lhes num tom amigável pedindo apenas uma
cópia do disco deles. Recebi uma resposta mal encarada, sugerindo que eu podia
comprar uma cópia do disco deles se quisesse. O manager nunca deve ter ouvido
falar de mim. Eu pensei que, se é esta é a reacção, eu posso agir em conformidade.
Falei à Complete Music, que edita “Midget Subs”, da similitude e pedi-lhes que
analisassem o assunto. Ainda estou à espera para ver o que acontece. Já usei
pedaços de outras canções no passado – nunca tenho vergonha de admitir isso.
[NR: No final da missiva de resposta, Nikki Sudden remata com
“Interview
done by email-November 21/22, 2003-Münster, Germany.” Pois.]