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Vitor Joaquim
Um fluxo inquebrável


O encontro com Vítor Joaquim dá-se em Madrid, no Teatro Pradillo, depois da sessão matinal com Guillermo Weickert (actor, bailarino e coreógrafo espanhol) e com um grupo inscrito num Workshop com o tema “El cuerpo inteligente y la escritura de textos físicos”, com base musical do seu último disco, Flow, com selo da incansável Crónica Electrónica. Desde logo, a sua presença na capital espanhola e o mais recente lançamento de Vítor Joaquim tornaram-se imediatamente temas apetecíveis, assuntos debatidos numa esplanada da cidade, num dia de calor abrasador. Mas não foi só presente que se falou na entrevista, mas também do presente, das raízes musicais do músico e dos Encontros de Música Experimental, certame que o próprio organiza. Numa longa conversa de mais de uma hora, ficou o testemunho de um certo estado das coisas em Portugal, do destapar de alguns podres; ficou o depoimento de alguém que conhece muito bem os territórios que pisa.
Antes de mais começava por perguntar qual é a razão da vinda a Madrid…

Esta vinda a Madrid tem três componentes: tem uma componente lúdica, que é eu vir fazer umas fériazinhas, tem uma componente de trabalho, que é de facto a mais forte… venho dar um workshop com o Guilherme que está a coreografar a adaptação de o meu ultimo disco, o Flow. Essa é a função mais interessante, é a de dar este workshop com ele. Depois a segunda por ordem será continuarmos a trabalhar na adaptação do Flow, já o fizemos em Portugal na CCB e no Espaço do Tempo, em Montemor-o-Novo. Depois a terceira é fazer umas fériazinhas, por ordem, não é? [risos] Eh pá, conhecer mais sítios, e eu aproveito sempre estas coisas para viajar. Dar concertos, conhecer sítios e conhecer pessoas.

Não tiveste formação musical mas sim audiovisual. Quando compões música consegues diferenciar perfeitamente aquela que se vai valer apenas por si, daquela que sabe estar a ser composta para cinema, dança, teatro, instalações e multimédia, a que te dedicas muitas vezes? Ou seja, trabalhas de forma diferenciada para cada uma das propostas?

Tenho que trabalhar, porque quando faço só só só música sem nenhuma aplicação, não tenho nenhum constrangimento em termos de tempo, de modo. Faço e depois organizo esse material em função só de me soar bem, de me parecer bem. Se tiver a trabalhar com outra área tenho de ter em atenção sempre aquilo que está a acontecer. Posso eventualmente não ter sucesso depois na concretização, mas à partida tenho de pensar nisso porque tenho de modelar em função do tempo, daquilo que me pedem. Por exemplo, o Flow agora na adaptação para cena, no fundo vai ser uma peça quase, não sei muito bem como classificar, mas no fundo é teatro-dança, mas tem também uma componente de projecção, vídeo generativo, produzido pela Lia. Quer dizer, ela está a criar mesmo uma aplicação, um programa para ser executado na peça. Portanto, é género uma ópera moderna, uma ópera de câmara moderna, se calhar, em que o material de base é o Flow. Neste caso eu vou sempre pegar nas diversas componentes do Flow, dos sons, e adapta-los a cena. E isso já vai querer dizer à partida que o material como está organizado em disco, foi gravado ao vivo, vou ter de o organizar de outra maneira para cena, sendo que logo à partida sei que vou ter que por muito menos sons porque se estiver a trabalhar com tanto som, com tanto protagonismo sonoro, vai-se perder qualquer coisa. Porque vais dar o protagonismo ao som, à música e não é isso aquilo que se quer. Numa situação destas não há protagonistas, há um conjunto, há uma operação conjunta entre as diversas formas de expressão. Aqui neste caso há uma espécie de um design de som que tem que ser produzido, não é? É uma componente, Agora, não é tão dramático o design de som para as coisas que faço como o design de equipamento, que obedece a normas muito estritas, são umas dimensões e as alturas. Imagina uma cadeira para as pessoas se sentarem, portanto, aquilo tem mesmo que funcionar. Não é tão limitado quanto isso, mas…

[entretanto interrompe-se a conversa porque o sol de Madrid começa a incomodar seriamente e chegava a altura de se trocar de lugares e de cadeiras. Em off fala-se de praia, de nadar, de sal, de piscinas com sal, do Mar Morto]

Se calhar agora valia a pena perguntar como é que surgiu o convite da Expo 98 para compores música…

Foi depois da saída do Tales from Chaos, o primeiro disco, em que ainda assinava como Free Field. Houve uma designer que é a Patrícia Gouveia, design de interactivos – trabalha muito em CD-ROM -, era a designer desse projecto, era uma trilogia, eram três CD-ROM que tinham os conteúdos da Expo, portanto, dos três pavilhões. Cada um era azuis diferentes, um era azul-cobalto, o azul-marinho e azul… não me lembro qual é o outro. Pronto, e cada um desses CDs tinha e tem – que ainda existem – um conteúdo brutal de informação sobre a vida do mar, e montes de coisas, sobre os oceanos.

E então daí a composição…

E convidaram-me para fazer uma coisa que era uma zona do CD-ROM que se chamava O gerador de sensações, que era um programa, uma aplicação fantástica, ainda hoje, passado estes anos todos, ainda há muitas pessoas que ficam surpreendidas com aquele trabalho. Eh pá, foi um conjunto de programadores fantásticos, fizeram um trabalho fantástico. Aquilo era como se fosse um jogo, onde entravas e tinhas uma série de coisas a acontecer, quando movimentavas o rato interagias, com diversos elementos. E havia sempre uns sons de backgroung, havia uns sons que estavam cá mais à frente. Tu podias escolher, podias tocar. Havia um som, tinha também um background de imagem e depois havia vários elementos a flutuar e tu tocavas com o rato. O problema é que quando tu tocavas com o rato aquilo não se deixava apanhar, então era um género de jogo. Quando conseguias accionar nesse iconzinho que flutuava disparavas um som que já tinha sido composto para funcionar. E a Patrícia andava na altura à procura de pessoas que pudessem fazer o som e houve alguém que recomendou que entrasse em contacto comigo e depois a partir daí foi uma coisa relativamente rápida. Na altura não a conhecia e depois, entretanto, ficamos amigos. E ela ouviu esse disco, o Tales from Chaos, e achou que era um som que podia funcionar, daí para a frente foi um tirinho. Os CD-ROM ganharam uma série de prémios, um deles foi em França, não me lembro agora mas é um prémio grande para trabalhos interactivos. Vendeu-se rapidamente. Aquilo era editado pela Fórum. Havia duas edições, a edição da Fórum e a edição da própria Expo. Muito bonito. Depois acho que houve ali um conflito qualquer na produção… mas a história foi essa, foi alguém que ouviu, gostou, recomendou, chamou-me.

Voltava agora um pouco ao passado para perguntar como e quando começa a tua viagem na música improvisada? O que recordas desses tempos? Foram tempos de descoberta ou de concretização de conhecimentos prévios?

Comecei muito novo, com o Emídio, com o Emídio Buchinho, em 82, Pá, Comecei a comprar umas coisas de electrónica, andava a fazer uns sons, e gostava de fazer umas coisas com aquilo, não sabia bem como. E às tantas dou por mim a fazer sons e a gravar, e a experimentar. Começamos a tocar e a produzir material e… Sou uma pessoa que quando trabalho, trabalho mesmo, então aplico-me imenso. Comecei a gostar daquilo, de maneira que passávamos horas por semana a tocar e a experimentar. Fizemos uns concertos ainda até 84, mais ou menos até 84, mas depois também a cena em Portugal na altura era muito pobre. Havia o Carlos Zíngaro que fazia coisas, os Telectu também começaram nessa altura e depois havia pessoas como o Nuno Rebelo e o Rafael Toral que tocavam rock, na altura era o que eles faziam. Não havia muita gente e portanto nós também nos sentíamos assim um bocado tipo “somos uns maluquinhos que andamos para aqui”, não havia na altura também muitos discos em Portugal, não era fácil encontrar material interessante de fora, e andamos assim durante muito tempo. Depois o Emídio foi estudar para França e eu comecei a produzir sozinho. Antes dele partir, fazíamos concertos de 50 minutos nonstop (inicio anos 80) ambientes sonoros, muita síntese de som, feedback, que ninguém na altura fazia aquilo, andávamos a alucinar completamente, chamavam-nos na altura o clã… [risos] Clã. Depois comecei a fazer música para audiovisuais, em 88 ou 89 comecei a fazer para dança. Tive a sorte de um amigo meu pegar numa cassete com umas coisas minhas e mostrar a um coreógrafo americano que estava na altura em Portugal, pá, o gajo adorou aquilo e convidou-me. Escolheu logo uma dessas músicas para a peça, pediu-me para fazer outra e depois continuamos. Depois fiz para a Alemanha também com ele, uma companhia em Munique e daí para cá foi sempre a abrir.

Parece que o destino de muita gente em Portugal é ter de sair para fora…

É, eu acho que sim. Quer dizer, por um lado não sei se é mau. Claro que é bom. Eu também acho que este género de trabalhos – isto também acontece noutras áreas, acontece na dança – são formas de expressão que não têm qualquer tipo de limitação em termos de fronteira, percebes, ser francês, ou alemão, ou português… obviamente os Xutos & Pontapés não vão tocar para Espanha porque ninguém os quer ouvir. Com todo o mérito que possam ter, em Portugal fazem sentido, andas uns quilómetros, passas a fronteira e ninguém os conhece. Este tipo de trabalho, por ser mais personalizado, não consegue atingir tanta gente mas por outro tem uma dimensão mais universal, portanto as pessoas acabam perfeitamente por perceber que se podem expandir e fazer contactos e tocar com músicos estrangeiros e ir tocar aos estrangeiro e depois quando alguém de Portugal vem ao estrangeiro é especialmente interessante e grato e fica sempre com o bichinho de voltar. Normalmente é-se sempre mais bem tratado fora de Portugal do que em Portugal. Acho que é natural que as pessoas acabam por sair e gostar de contactar com músicos, e produtores e organismo do estrangeiro porque tem um acolhimento que às vezes em Portugal não se consegue ter porque às vezes somos medíocres, pronto. Acho que não há mesmo outra maneira de dizer e parece que gostamos de ser, tratamo-nos mal a nós. Quando digo medíocres não digo que somos medíocres a criar. Aí, acho que até no caso da musica experimental e da improvisada e nas modalidades mais contemporâneas não deixamos nada para trás quando comparamos com o estrangeiro, o problema é que o nosso país não está muito interessado neste tipo de coisas, os organismos que deviam apoiar não apoiam, por isso as pessoas acabam por sair naturalmente. Têm que se expandir. E aqueles que não tem força para isso acabam por se deixar fechar no seu próprio ego. Ok, às tantas mudam de vida.

Gostaria que falasses um pouco de Flow, o seu último disco. O que diferiu no seu processo de desenvolvimento quando comparado com os seus registos anteriores?

O processo foi mais ou menos o mesmo. Tenho usado quase sempre o mesmo método que é improviso em estúdio, faço umas coisas e a partir de uma certa altura começo a encontrar coisas. É este procurar, vou fazendo e depois começo a organizar. Quando encontro material começo a organizar material. Neste caso a ideia era um pouco ver até que ponto eu conseguia trabalhar e articular um discurso oral, com introduzir uma componente emocional com electrónica, com noise, com esse tipo de coisas, gerar um material que fosse emocionalmente interessante mas que esteticamente também não me deixasse aquém daquilo que gosto de fazer e que me sinto bem, a sonoridade com que gosto de trabalhar. Foi género um desafio, combinar a voz e ao mesmo tempo continuar com o tipo de som que eu gosto de fazer.

As minhas próximas perguntas caminhavam precisamente nessa direcção… Flow conta com a participação das guitarras de João Hora e Emídio Buchinho e da voz de Filipa Hora. Como entram as vozes na concepção deste novo disco? Surge como a procura de uma maior humanidade?

Eu acho que a humanidade está lá sempre, é feito por pessoas, esta é a parte óbvia da coisa. Mas foi uma abordagem… do lado humano, foi mesmo emocional, uma coisa que é trabalhar com material que tem nitidamente características dramaturgicas quase, de personagem, de alguém que confidencia, que transporta e que tem um drive emocional e afectivo, conseguir articular isso e mantê-lo lá. Conseguir articular bem esses dois mundos foi assim um desafio… Mas curiosamente a partir do momento em que aquilo entrou foi super rápido porque funcionou bem, não sei, se calhar por sorte, as opções, a maneira como foi feito. Mas o processo foi giro porque a Filipa gravava as coisas, ela sozinha sem a minha presença, gravava as coisas no computado dela, num microfone daqueles rudimentares, sabes, daqueles com auscultadorzinhos do MSN e gravava os ficheiros e mandava-me. E do ponto de vista daquilo que é uma coisa que eu prezo muito que é a qualidade técnica, bem interpretado no plano técnico, o material que ela me mandava estava em muito mau estado. Eu tenho microfones que têm uma qualidade de resposta fantástica mas a questão é até que ponto é que se ela saísse do espaço dela, da intimidade dela, do “ok, vou gravar agora, sinto-me bem, isto está a sair”, até que ponto é que eu depois conseguia fazer com que isso não se perdesse depois com uma situação mais laboratorial. Foram coisas que ela gravou e passou, coisas que ela pré-seleccionou e depois também fui organizando. Foi um processo muito engraçado. E depois também houve uma combinação de processamento, o processamento final na voz que lhe deram assim uma áurea absolutamente imprevista e muito confidente que eu adorei. Adoro mesmo. “Eh pá, e isto mesmo”, quando de repente eu percebi que aquilo estava a funcionar eu disse “ok, já tenho o disco feito”. E daí para a frente…

Seguindo ainda no lado emocional, li-a no outro dia que associavas normalmente à tua música sentimentos e emoções, e que inclusive Flow tratava as “possibilidades e impossibilidades dos relacionamentos”. De que forma crês que isso transparece no disco?

Não sei se passa ou não passa porque às tantas os discos são… os discos, os livros, os filmes que se realizam, as peças que se encenam são objectos com os quais convivemos tanto tempo que às tantas perdemos a capacidade também de os analisar. Eu às tantas ouço, sinto obviamente mais do que empatia mas não sei qual é o eco… quer dizer, vou sabendo à medida que as pessoas vão dizendo coisas e eu percebo, ok, a coisas funcionou, a pessoa está a responder, mas é como te digo, aquilo não é um objecto de design, não foi concebido para no final…

Atingir aquele propósito…

Exacto, um determinado fim, um objectivo muito claro. E acho que o processo em si de criação e o que passa pelo processo, ao fim ao cabo acaba por ser tudo, é uma parte muito importante. Depois se aquilo consegue funcionar ou não o criador também não consegue, se for criador a 100%, também não consegue... ou estar concentrado, ou então pensar… porque senão às tantas também já está a fazer outra coisa, já não é criar, já está a produzir material, ok, fazer musicas de três minutos com refrão. Aqui foi andar em busca de uma zona onde pudesse encontrar material que eu gostasse e depois então daí… eu fiz muito improviso nesse trabalho… é uma capacidade produtiva muito grande, quando de facto encaras o improiso como um instrumento que não é uma jaula mas um instrumento que é a parte de fora da jaula, o sitio onde tu não estás preso, portanto, tu só tens é que fazer aquilo que te interessa, e estar muito atento ao que está a`tua volta. Por exemplo, é o método que nós estamos a usar agora aqui também neste workshop, estou precisamente a transpor alguns dos princípios de trabalho, ao trabalhar com o som estou a transpor para os bailarinos e para os actores e está a funcionar bestialmente, e são coisas super simples… é como nós estarmos a conversar, quer dizer, é eu perceber quando é que tu me queres fazer uma pergunta e vou ouvir o que tens para dizer, e como estás a ouvir e do que eu digo poder nascer uma pergunta, ou a adaptação de uma pergunta em que já tinhas pensado. E o improviso passa por isto, não passa por mais nada que não seja tentares criar situações onde as coisas possam fluir e daí também o conceito de “Flow” e no fundo que é uma coisa que transpõe para outro lado que é o próprio conceito daquilo que deve e pode ser viver.

Há por acaso uma frase do Alan Licht que disse algo como a improvisação é uma mistura de momento de profundo aborrecimento e de grande êxtase, ou seja, tem que se digerir bem o facto de que nem sempre se cria algo de interessante…


É possível, é possível. Mas é assim, eu também acho que pode ser como as pessoas. Há pessoas com quem podes ter quase sempre conversas interessantes e há pessoas com quem às vezes não tens conversas interessante, no outro dia tens, podes não ter e poder ter, e depois outras pessoas com quem nunca avais ter uma conversa interessante. Por isso acho que por vexes também há criadores assim. Uma grande parte das coisas que fazem são tendencialmente interessante, outras se calhar não interessantes… há gente que por vezes fazem uma coisa fantástica e de repente fazem coisas que eu abomino, quer dizer. O Brian Eno é um caso desse… tem coisas que eu acho fantásticas, e tem coisas, não é más, é horríveis. Como é que é possível alguém que fez aquilo, fazer aquilo. [risos] Pá, como é que alguém que faz aquilo, pode fazer aquilo. [risos] Acho que ele tem temas que são de uma foleirisse… e um gajo com o sentido estético que ele tem. Não estou a dizer isso com o sentido de achar que ele não devia fazer… ele é que sabe o que tem que fazer, obviamente. Mas é uma pessoa que tem coisas muito díspares.

Por acaso ia falar nele imediatamente a seguir…

Mas prezo ao mesmo tempo, a possibilidade de alguém se dar ao luxo de ir para zonas que são eventualmente desconhecidas, arriscadas, negativas e tudo isso. Também faz parte da vida. Não é uma questão musical, é de filosofia de vida. Há pessoas que não gostam de improvisar mas também não são capazes de conversar com ninguém. É mesmo assim. Eu conheço músicos que me dizem “oh, eu não improviso”.a verdade é que os gajos não são capazes de falar com ninguém, de de repente começar uma conversa com ninguém e por isso é perfeitamente natural que não sejam capazes de improvisar. São pessoas que vivem bloqueadas, em quatro ou cinco ideias, e aquela merda está em volta da cabeça e os gajos não saem daquilo. Agora, se eu acho mal ou acho bem, nem acho mal nem acho bem. Cada um escolha a jaula em que quer viver, ou a dimensão que tem, ou se quer viver fora ou dentro dela.

Se calhar existem dois tipos de riscos para quem improvisa. Aquele improviso no estúdio, em ‘casa’, e aquele ao vivo.

Falas nisso… neste caso, o meu disco foi, este disco foi gravado… o ultimo tema foi composto em casa, e os outros são um contínuo de um concerto. Em dois ou três sítios fiz uma reorganização do som terminal do tema para lhe dar um bocadinho mais de respiração que eu achava que precisava. Não altera… no acto de executar eu poderia perfeitamente ter feito, não fiz, tomei essa opção, ao ouvir tive uma reacção do género “eh pá, devia ter aguentado isto mais um bocadinho para depois aquilo ter mais força, ou parecer mais de uma maneira ou daquela”. Não alterei composição, nada de especial. É praticamente, a 99,7% o que foi gravado nos concertos ao vivo. E o que é que foi feito nos concertos ao vivo? Foi trabalhar material que já tinha dentro do computador mas de uma forma que eu nem sabia muito bem qual ia ser, e processado de uma maneira que eu não sabia muito em qual ia ser. Já tinha feito a tournée na Alemanha com seis concertos com aquele material, tinha feito um percurso meio estruturado emocionalmente e sensorialmente criar momentos de grande dinâmica e depois outras zonas mais calmas e dar-lhes portanto um género de uma dramatização à coisa, mas dramatização num sentido soft que eu também tinha um bocado essa escola, tenho a escola de cinema portanto a mim é estrutura, o principio meio e fim é uma coisa que faz sentido para mim. Agora pode ter formas absolutamente inacreditáveis… pegas num filme do Lynch e aquilo tem um princípio meio e fim, aquilo está é tudo trocado, não é? Sei lá, ou pegas no Tarantino, está lá, pode até nem estar lá mas está tudo organizado segundo uma lógica de pensamento. Mas ainda assim a ausência dessas peças obedece ao principio que é “ok, nos pensamos segundo uma lógica de principio meio e fim”, portanto se eu tirar esta peça, esta e esta, que é o que o Lynch faz, ao fim e ao cabo, eu sei que as pessoas vão ficar desordenadas. Mas no fundo a filosofia é princípio meio e fim.

Aposto que ele adora isso…

Isso já vem desde o tempo do Aristóteles… e aí é a criação. Isto foi ter uma série de material de base e depois ir trabalhando. Depois tinha muito que ver com aquilo que eu estou a sentir. Então nestes concertos que fiz na Alemanha houve coisas que fiz num concerto e não fiz noutro. Este disco nasceu de um concerto que fiz na Guarda com a Lia, um concerto muito bem produzido pelo festival tecnicamente, o som era muito bom, eu sentia-me muito confortável a fazer todas as opções. Tive de fazer um sem número no concerto. Gostei da organização e disse ”oh pá, vou por isto”. Isto é um disco ao vivo, é um disco em que eu posso pegar e dizer assim “isto é aquilo que eu faço ao vivo”. Os discos anteriores tinham, à excepção do primeiro, tinham também essa abordagem, da metodologia de criação mas mais em estúdio.

Sendo assim transpor o Flow para os concertos não foi assim um desafio tão grande como seria se se tratasse de um material composto inteiramente em estúdio…

Não, arriscado ou diferente, não… aquilo que era mais era conseguir encontrar elementos que pudessem encaixar, eu posso por a voz… fiz um concerto com o pessoal do workshop, um género de concerto para lhes explicar precisamente o meu método de trabalho, o que é que eu considero ser um pouco a minha abordagem, falar um pouco disso, da construção dos matérias sonoros e fiz uma passagem do Flow, mas para não ficar ali 50 minutos peguei naquele material e fui escolhendo. Tive um principio meio e fim na maneira como estruturei mas aquilo que lá está não tem, o material quando eu pego nele não tem principio meio e fim, tens vários sons, como tens quando tocas numa guitarra e dizes “ok, esta é a de cima, esta a seguir, esta é outra, esta é outra, aquelas têm um nome”… mas quer dizer, como é que tu pões os dedos? Agora, é óbvio que não vais por numa guitarra o dedo na 24ª corda, que ela não está lá, só tem seis. Só que neste caso o que eu tenho, em vez de ter seis cordas, como tem o guitarrista, o que tenho ali são 14 mil cordas e faço opções com essas 14 mil cordas, mas improviso com esse material. À partida também já sei que há coisas que se articulam mais ou menos, mas assumo sempre o risco e gosto de coisas que nunca sei muito bem como é que me vou safar delas. Isto coloca-me numa coisa que é… isto depois passa um bocadinho também pelo lado do teatro e dos actores, da dramaturgia…

[comentário à parte de Vítor Joaquim para assinalar a nuvem que por momentos escondeu o sol, algo raro em Madrid durante o Verão]

Aqui o Guilherme faz uma parte que tem que ver com composição, com a educação física, a preparação, uma série de métodos bem complexos. Está a sair muito bem. E depois o que eu estou a fazer com eles é de repente dizer “ok, estamos no vazio” e é a parte em que eu estou a lançar um pouco mais essa proposta daquilo que é trabalhar o improviso, como é que o podemos trabalhar… é o domínio do medo, do receio de falhar, como lidar com a angustia do momento, é uma coisa que eu utilizo nos concertos ao vivo. E às vezes há situações em que aquilo que eu estou a ouvir, a combinação daquelas coisas não me está a soar, mas como é que se trabalhar com isto, quer dizer, é como na vida quando tenho uma situação na vida, o que é que faço. O que eu faço é tentar de alguma maneira recriar em som aquilo que eu, aquilo que é a vida, quer dizer, isto é uma coisa completamente absurda de conceber, mas ao fim e ao cabo é isto, ver o que é que se consegue gerar, da mesma maneira que eu também sou gerado, não é? A minha personalidade, o meu corpo, é gerado por aquilo que as minhas diversas experiências, o contacto com pessoas, e com o espaço… já me perdi um bocado na conversa, mas era… [risos] Acho que é mais ou menos isso. Como era mesmo a questão?

Era sobre os métodos, se era fácil pegar no Flow e leva-lo para os concertos, se havia algum risco…

Há sempre. Eu tenho um problema que é, eu quando comecei na área das artes, muito muito cedo, experimentei uma coisa que foi…. A minha história é mais ou menos esta: fazia atletismo, fiz atletismo até aos 17 talvez, fui campeão nacional de 400 metros barreiras, treinei para os europeus, era um atleta muito promissor na altura, e rompi, rasguei o musculo daqui da parte de trás do joelho até à coxa, completamente, tive montes de tempo parado. Não tinha condições, e o meu treinador a puxar por mim para ir aos europeus de juniores, e era juvenil. E achei que não tinha condições para trabalhar e de repente desisti e o que é que fui fazer? Como a actividade física era uma coisa que eu precisava, e a elasticidade, eram coisas que eu sentia precisar para viver fisicamente, fui para a dança… nessa altura já fazia som. Fui para a dança, da dança fiz uma ligeira variação migração pela expressão corporal, pelo jogo dramático. Fui… não é hiperactivo, mas é um bocadinho a dar para o hiperactivo. Fiz um curso de Super 8, na altura, fiz um filme, como andava nestas coisas do palco, de ser actor, não sabia bem, na realidade andava lá, fiz um filme em que era actor, ganhei um prémio num festival, pá, e ofereçam-me depois umas propostas de ir fazer uns cursos com uns estrangeiros, com dois gajos franceses, de Paris, fiz durante dois anos dois cursos, e percebi nessa altura que tinha uma dificuldade séria em decorar os textos. Pá, agora podem-me atirar, na altura, podiam-me atirar para o palco sozinho com duas ou três pessoas e eu estava perfeitamente à vontade, desde que não me dessem nada pré-programado. Ou seja, quando era para improvisar o Vítor estava lá sempre. E lembro-me ainda de uma das frases de um dos professores que me chegaram a fazer o convite (mas eu era novo, tinha 17 anos)… fizeram-me mesmo o convite para ir trabalhar para França em artes dramáticas, mas imagina o que é um gajo de Setúbal que de repente um gajo dizer “eh pá, não queres para França trabalhar em artes dramáticas?”. Eh pá, eu queria era ir para a praia, e namoradas. Passou-me ao lado aquela coisa toda, e acabei… foi uma aprendizagem muito grande, ah, e dizia eu, um deles utilizou uma expressão que ainda hoje me bate na cabeça que é: “Vítor, tu n’a pas besoin de texte”. “Vítor, não precisas do texto”. O que ele no fundo acabou por sublinhar é uma coisa que eu já senti, que é: tu tens um drive que não é preciso dar-te texto, isto é uma qualidade claro, mas depois há um problema, não posso lidar com texto, n posso trabalhar com coisas pré estabelecidas, e isso continua para mim a ser um drama, percebes, eu não consigo pegar numa merda e dizer “ok, vamos tocar seis gajos, tu entras nesta altura, tu entras naquela, Vítor, tu aqui depois fazes isto”. Pá, eu entro em pânico, entro em pânico, fico completamente…

Mas o próprio improviso pode por vezes correr mal ou não da forma desejada…

Ok, ok, ok. Eu já fiz um concerto, lembro-me assim dos concertos mais, em que eventualmente podia sentir mais pressão, foi um dia em que de repente ponho-me num avião e vou tocar a um festival em Barcelona, fui outro a Paris, isto já há uns anos, chegar lá e ter um computador, sentar-me, e pensar e escolher, e fazer essa opção que é “eu não sei como é que vou começar”, mas é que não sei mesmo nem quero saber, e abrir seis programas ao mesmo tempo e saber que os gajos estão ali na barra, percebes… eu vou, as luzes apagam-se, eu vou até onde está o computador, puxo a cadeira para a frente, ponho as mãos em cima da mesa e ainda não sei onde vou clicar. Pá, e essa sensação, experimentar essa sensação… estou agora a trabalhar com estes actores e bailarinos… se conseguires aguentar até ao momento de começar, a partir do momento em que começas aquilo sai bem… isto não é uma coisa conceptual, é uma coisa que nasce da experiência, viver essa situação… a partir desse momento o que sai é mesmo aquilo que tem de sair. Não é uma coisa modelada pelo intelecto, o que eu faço é criar um ambiente, um conjunto de instrumentos de qualidade à minha volta que me permitem colocar na situação de improvisar e poder sair uma coisa com qualidade… Eu por exemplo se for improvisar para uma sala que tem um mau som, eh pá, não quero, estás a ver, prefiro ganhar menos dinheiro, prefiro não ir, não sei quê. Se eu não ouço o que estou a fazer eu não me consigo realimentar. Agora se eu tivesse que tocar uma pauta, toco aquilo nem que seja nuns microfones de caca. Depois quem houve que se lixe. Mas como eu preciso de feedback do que estou a fazer, preciso de ter um bom som. Por isso existe boa qualidade de som no meu festival. Ninguém, ningu+em tem razão de queixa porque eu acho que um musico se vai tocar tem que se ouvir bem. E aquilo gera dinâmica. E por isso eu preciso de me ouvir bem, estar confortável, depois é assim: se as pessoas gostam eh pá porreiro, se as pessoas não gostam, é pena.

Também será precisamente esse o risco da parte de quem vai ver…


Exactamente, mas é assim, eu tenho muita pena, não posso fazer melhor. Eu já fiz o meu melhor. Pá, não chega, tenho pena. Não me estou a cagar, percebes, mas simplesmente não posso fazer melhor. Se queres ver outra coisa vai para outro sitio. Depois eu digo assim: ok, isto é aquilo que eu tenho para dar, e é isso que eu preciso de sentir, que aquilo é genuíno. E para ser genuíno eu tenho de sentir que sai dessa maneira, porque se eu for para lá papaguear uma coisa que eu à partida já interpretei 30 vezes da mesma maneira eu sinto que há ali uma falta de qualquer coisa que eu preciso de sentir. Não estou a dizer que as pessoas que executam material que fazem mal, eu também faço isso quando componho para dança. Improviso, estruturo, organizo, dou aquilo ao coreografo, ele diz-me o que é que gosta e depois há uma altura em que fixo. E depois nessa altura eu não preciso de estar lá. Para que é que é preciso eu reproduzir? Onde é que está a diferença entre eu ter um CD com a minha música a passar e eu, pessoa, ali em frente? Para mim é eu estou aqui e há um perigo, que é, eu posso eventualmente tomar uma má opção, mas isto também está um bocado ligado à cultura de quem ouve. Eu também preciso que quem ouve precise… preciso que essa pessoa precise de se dar ao trabalho de... é ir para lá e dizer “vou ouvir o que é que o gajo tem para me dar e eu no final vou ver o que é que senti, se passei um bom bocado”. Eu não quero que as pessoas vão meditar sobre trigonometria, nem astrologia, nem astrofísica para os meus concertos, para isso pegam num livro de astrofísica, as pessoas vão para ali para sentir qualquer coisa, é som, ouve-se, eu estou a trabalhar com material sensorial, as pessoas vão sentir, Não vou fazer um tratado de filosofia porque para isso escrevo um livro. Basicamente eu coloco nessa situação, eu quero que pessoas entre para ali e fique aberta e eu também quero entrar aberto e isso é um jogo. É como estar a conversar com uma pessoa de igual para igual, tu dizes aquilo que tens para dizer e depois o outro, como é que nós nos vamos equilibrar, basicamente esse é o meu jogo. Agora, com os EMEs, os métodos de trabalho vão-se refinando, tu aprendes a ouvir o que o outro está a fazer, a ver o que o outro está a fazer, percebes, e isso faz parte da riqueza de fazer a coisa, que é cada vez que faço qualquer coisa estou a aprende qualquer coisa sobre mim e sobre as outras pessoas….

Ainda a propósito das vozes, é muito normal no teu trabalho utilizar vozes retiradas da televisão, da rádio, de filmes. Brian Eno em tempos desenvolveu pesquisas na rádio para retirar daí discursos e frases, pois dizia que a força que advém de uma afirmação real tem sempre mais poder do que uma letra escrita sobre um determinado assunto. Concordas com essa visão?


Concordo, de repente pode-me sair assim uma ideia assim forte dessas, mas concordo, concordo. Embora também acredite na capacidade dos actores, que são capazes de criar eventualmente uma coisa que a mim me soa como verdadeira, se eles a forem capazes de criar. E por exemplo, a melhor maneira de o fazer é improvisar. [risos] Tu é que crias o espaço, aconteceu um bocado com a Filipa, ela criou o seu espaço que é o espaço dela, em que ela manda para cá para fora aquilo que tem para mandar, e eu trabalho com esse material. Quer dizer, neste caso é real porque ela sentiu-o, mas ela criou uma situação em que se proporcionou a possibilidade de repente sair qualquer coisa genuína, e no fundo vamos parar à questão da… concordo com a ideia de quem ouve sabe reconhecer mas não acho que isso seja sempre assim. Pode ser feito e quem ouve não sabe.

Essas vozes, mais do que serem uma representação do real, podem ser também utilizadas como ferramenta politica…

Eu sou muito político, sou muito apartidário, mas sou muito muito político. Agora, eu acho que também por vezes esses sons e esses discursos têm uma capacidade de evocação do real que às vezes nem precisas de ouvir o que a pessoa está a dizer para de repente a tua imaginação ir para lá. Portanto eu às vezes utilizo esses fragmentos como catalizadores da imaginação da pessoa. Quer dizer, de alguma maneira estou a ser manipulador, mas manipulador não no sentido de delimitar aquilo que a pessoa vai pensar, mas delimitar uma zona e atirar uma pessoa para uma determinada zona. É um facto que a música quando não é cantada, quando não tem uma linha melódica, quando não tem uma estrutura harmónica, quando não tem uma cadência certa pode de alguma maneira, a ausência destes três elementos pode surgir como elemento que afasta e que distancia o espectador, ou o auditor ou o ouvinte da peça. De repente tu podes é usar, o que eu faço muitas é quando sinto que pode haver ali qualquer coisa que se perde, simplificando a coisa, estou a perder o contacto, posso lançar um elemento desses e sinto, porque eu próprio sinto de repente aquilo, recontextualizo o som todo e dá uma dimensão completamente diferente, e aparece como um elemento surpresa, ou seja, não é tanto às vezes o conteúdo em que estou concentrado, mas mais na capacidade evocativa desses conteúdos. Agora, o que é que acontece, todos esses conteúdos são sempre pré-seleccionados. Agora, estou muito preocupado quando os ponho se aquilo vai ser, vai estar tudo na zona da inteligibilidade, se as pessoas vão perceber palavra por palavra aquilo que está a ser dito. Eu sou uma pessoa muito emocional e valorizo muito as dimensões e sou muito, quem não sabe e quem não percebe o valor que as emoções têm na nossa vida é muito burro, pá, pronto, é categórico, sou categórico nessa merda. Os gajos que acham que a racionalidade não sei quê, esquece, não há nada que seja possível de racionalizar que não passe primeiro pela componente emocional. Há pessoas, pá, o Damásio fala sobre isso, podes comprar livros. Agora se a pessoa achar que isso não lhe interessa, tudo bem, agora não se pode negar aquilo que á uma evidência, aquilo que se sabe que é verdade, não é? Nós somos seres emocionais, e por isso é que somos aquilo que somos. A mim interessa-me trabalhar com esse lado, agora isto não é uma coisa muito comum na música electrónica, não é? O que eu faço, a música improvisada, e a música experimental, e ligando as duas coisas, no electrónico improvisado, não é? Quer dizer, há muita música improvisada, a maior parte dela não é electrónica, a maior parte da electrónica não é improvisada. Eu estou aqui numa zona que é electrónica improvisada. No fundo esses sons são ganchos que podem levar a pessoa para um outro sitio qualquer e que me levam também a mim, porque eu de repente eu encontro uma razão para fazer com que aquilo que lá está dure mais ou então depois desapareça. Funcionam para mim como mudanças de direcção, percebes, como qualquer coisa, como pivots, como qualquer coisa que eu não sei muito bem o que é, mas que os posso ir lançando, portanto, muitas das vezes a estratégia é essa, é eu próprio criar situações de acidente de percurso que me fazem às tantas fazer um check up da coisa. Eu próprio utilizo códigos para mim, “ok, pronto atenção”, e depois há qualquer coisa nova e eu sou estimulado, são estimulantes para mim. Quando os conteúdos são seleccionados, para mim são coisas para as pessoas reflectirem. Por exemplo uma frase, depois faço uma coisa que é uso em concertos diferentes. Como não trabalho, por exemplo… “hoje vou executar a peça x e depois a peça y”, muitas vezes produzo material e há frases que de vez em quando me apetece por, há frases que já usei em montes de concertos, já usei em dança. Outra dança usei ali uma dessas frases no workshop, já usei a tocar com outros músicos, a tocar com outros músicos, que é uma frase que foi samplada de um filme do Lynch, que é um personagem que diz, que é “There's no such thing as a bad coincidence”. E de repente tu atirar uma frase desta assim pelo ar e… aquilo que ela quer dizer, o tom com que o gajo diz aquilo tem ali qualquer coisa de forte. E a mim interessam-me essas coisas, não me interessa estar a produzir material para as pessoas ouvirem mas dizerem “ok, mas eu não estou aqui”. Se tenho alguma coisa para dizer digo, se não calo-me, vou-me embora. Não faz sentido aquela coisa do “estou aqui mas não estou, ah pá não apontem a luz para mim”. Quando vais para um palco… isso é uma merda que me irrita solenemente. É aqueles gajos que vão para o palco dizer “eu não quero luz, não quero isto”. Oh pá, então vais fazer o quê? Vais por os gajos a olhar para ti para quê? Para isso põe o disco à venda, não é? Qual é a diferença entre um gajo ir para palco e a pessoa estar a ouvir o disco em casa? Então eu em casa não ouço a música como eu melhor consigo ouvir a música? É preciso ir sentar-se num sitio a ouvir gajos a beber copos e a entrar tarde, e à espera uma hora e meia que toda agente chegue para que aquilo possa começar, para depois ver um gajo sentado que simplesmente faz desfilar aquilo da mesma maneira que está no CD? Então para que é que eu vou ver? Ou é um gajo exímio a tocar um instrumento dificílimo ou então pode não valer a pena. Acho que é um problema que atravessa o mundo do espectáculo destas áreas, da improvisada e não sei quê, um género de falsa modéstia, um género de um “estou aqui mas não estou”. Alguém vai pagar dinheiro para ver alguém e esse alguém diz: “ok, aquele gajo está a pagar dinheiro mas estou-me a borrifar porque ele estar ali ou não estar é a mesma coisa”. Isto é um insulto à inteligência da outra pessoa, porque é alguém que é desonesto, quer dizer, mas há muita gente a fazer isso, não têm consciência daquilo que está a fazer, basicamente. As colunas estão mais viradas para aquele lado, o gajo que fez o som não reparou, ou deu um toque ou alguém passou com uma cadeira e deu uma pancada na coluna e a coluna vira. Eu já vi pessoas que são super racionais e que se dizem ser super racionais e que falam da racionalidade e do controlo e da maneira de apresentar, um concept brutal e depois a cometerem erros de palmatória como sejam as colunas mal direccionadas, uma mais à frente do que a outra, o que faz com que exista tecnicamente um delay entre uma coluna e outra que tu nunca vais repor em termos de intensidade. Tens uma coluna aqui e outra aqui, por mais que tu subas esta tu nunca vais conseguir equilibrar o som. Porque tens o factor tempo, som é tempo, é espaço. Propaga-se a uma velocidade muito baixa comparada com a luz por exemplo. Este som vai chegar sempre primeiro e eu nunca consigo fazer um bom som. Pá, são poucos os músicos que antes de entrarem para um palco reparam, nisto. E depois vêm com uns conceitos brutais. Aquilo que é essencial na apresentação é o som e eu dou por eles a nem sequer repararem nessa merda e nem sequer exigir às vezes, pá, metam os concepts todos no cu, porque andam mesmo a querer enganar as pessoas. E nós temos muitos assim, pronto. E não digo mais…

Foi um grande desabafo…


Não pá, podes escrever o que quiseres. Podes por textualmente, é mesmo assim, estou a dizer aquilo que é, não estou a falar da minha intimidade. [risos] Estou a falar intimamente, mas não estou a falar da minha intimidade. É mesmo assim…

Agora pegava um pouco no lado da editora. Mais uma vez a Crónica Electrónica assume-se como a casa mãe de mais um disco teu. Neste momento em Portugal, acreditas que poderia ter sido noutro local?

Se calhar não, se calhar não. Também não há assim muitas editoras a lançarem este tipo de material. Mas eu tenho uma relação muito especial também com a Crónica, porque são músicos com quem eu toquei, são pessoas de quem eu gosto muito, são pessoas que estão com um nível de devoção na coisa que eu admiro e portanto ser editado por eles, que têm um catálogo bom, é uma atitude positiva, esforçam-se imenso para que as coisas cheguem ao fim da melhor maneira, esforçam-se para colocar os discos a circular no estrangeiro, esforçam-se imenso e são pessoas muito inteligentes naquilo que fazem. Não estou mesmo a ver qual era a outra editora que poderia editar. Também não há… quer dizer, há a Sirr que edita também coisas parecidas, mas também nunca tive nenhum contacto deles a dizerem-me “olha, estás interessado nisto”. Recentemente, acabou de sair um tema meu por uma editora madrilena que é a CONV [http://www.con-v.org], e ainda para este mês, sairá mais uma vez um tema meu na compilação da revista belga Gonzo Circus [http://www.gonzocircus.com] convidado… não me lembro agora do nome do gajo, até me esqueci de lhe enviar um e-mail, sou capaz de combinar qualquer coisa. Mas ele também disse “eh pá, Madrid não se passa nada de especial”, em termos de música experimental electrónica. “Eu estou cá mas estou um bocado isolado, os meus contactos são mais fora”, dizia ele no e-mail. E portanto e Crónica faz todo o sentido. Não estou a ver assim mais nada… Eu também não sou o estilo de pessoa de andar a bater às portas nem de jornalistas, nem de editoras, nem nada. Eu faço o meu trabalho, mas não faço atendimento personalizado, não faço graxa personalizada a ninguém nem nada. Faço o meu papel, não me escondo mas também não gosto daquela coisa do gajo que diz “ah, estou no meu quarto, faço as minhas coisas”. Não, quer dizer, o artista tem de ser dar a conhecer, mas depois há o outro lado, o limite, uma questão ética, um momento a partir do qual… eu por exemplo conheço alguma pessoas que são jornalistas e que gostam do meu trabalho, e que bastava eu telefonar e dizer “oh pá, não queres…” e de repente as pessoas podiam interessar-se. A pessoa se estiver interessada, o Rui Tentúgal, acho que foi o primeiro disco, colocou-o entre os melhores discos portugueses de sempre ou uma coisa do género. E disse-me que me queria entrevistar agora aquando saísse este disco. Gosta muito do meu trabalho, não me custava nada dizer “pá, Rui, já saiu”. Não. Se ele não me telefona eu também não vou telefonar. Pá, não sai não saiu. Não o quero colocar a ele na posição de de repente não lhe apetecer e dizer “oh pá, agora como é que eu me vou desenmerdar-me”, ou não tenho espaço ou o que quer que seja.

A maior parte das vezes até é mesmo uma questão de espaço…

Eu acredito que na maior parte das casos, eu percebo mais ou menos como é que funciona a imprensa, o jornalismo e a televisão, as pessoas são completamente esmagadas com informação, completamente bombardeadas com pedidos e há quase como um mecanismo de defesa do género “ok, só fura mesmo aquilo que tiver de furar”. Até porque depois há um problema nisto que é os que não quiserem depois furar ficam também depois isolados, percebes. Mas pronto, eu prefiro assim. Por exemplo, no papel que tenho na minha escola, sou coordenador pedagógico, bombardeiam-me constantemente – estou na direcção da escola - com pedidos de apoios para este espectáculo, para aquele espectáculo, um gajo que manda um currículo para dar aulas, dezenas e dezenas por semana, percebes. Quer dizer, por semana não são dezenas mas se calhar vai para aí uma dezena. Um gajo cria uma espécie de anticorpos senão um gajo não faz mais nada senão responder a e-mails, portanto faz um género de uma selecção. É preciso também estar muito atento à coisa. Mas é difícil, é difícil. Agora imagino para um jornalista… num órgão de informação destacado aquilo devem ser convites todos os dias para irem a sítios falarem de tudo. E por isso não me vou somar a essa quantidade, percebes. Enfim…

O que te parece no geral a música lançada em netlabels, nomeadamente a música electrónica editada nesses circuitos? Acompanhas de perto o fenómeno? Parece-me que têm nascido daí nomes interessantes como o Phoebus, entre outros.

Pois, na Test Tube, não é? Eles deram-me… eu conheço a Cristina que é mulher do…

Pedro Leitão.

Sim, conheci-o uma vez num festival de Braga. Acho que é um trabalho bom, não sei, também não acompanho, estou super ocupado sempre, não acompanho bem a repercussão dessas coisas, mas eu acho que todo o esforço que se faça é sempre bom. E aí, voltando atrás àquela coisa do pressionar, ou não pressionar, ou estimular os jornalistas, eu acho que tudo o que os criadores possam fazer, criadores e produtores, para fazer o seu trabalho chegar mais além, até à zona de alcance do outro, eu acho que tem a obrigação de fazer isso. Agora por a papa na boca e obrigar a pessoa a engolir aquilo aí acho que já é mau. Já há um problema de ética aí, não é? Agora uma pessoa esforçar-se para que o outro conheça é interessante. Agora há um ponto a partir do qual já não faz sentido, quer dizer… acho que as netlabels são muito interessantes para lançar pessoas novas. Pá, para não ir mais longe o Phoebus tocou no meu festival o ano passado porque a Cristina deu-me o disco, conhecia a editora e eu ouvi e gostei e telefonei para ele e disse, aliás o Pedro já me conhecia, vi-o na ZDB a tocar mas não sei se foi antes ou depois de ouvir o disco, as coisas dele, e pronto, foi assim que ele foi para o festival…

Terá sido a abrir para Dead Texan na ZDB…

Pá, não me lembro, já o vi lá várias vezes.

Tanto quanto sei tens um discurso muito crítico em relação ao estado da cultura em Portugal… Que espaço pretende o festival EME ocupar em Portugal? Foi fácil instalar inicialmente o certame em Setúbal e em Palmela?

Não foi nada nem está a ser nada fácil. Porque, é assim… Palmela apoia o festival, e apoia de uma maneira que eu já acho que é muito grande, muito mais do que a Câmara de Lisboa tem apoiado até hoje qualquer coisa dentro da área. E portanto nesse ponto de vista já é fantástico. O problema é que para se fazer qualquer coisa bem dá trabalho e custa dinheiro, custa dinheiro a fazer bem. E foi, este ano felizmente já há verba para poder pagar às pessoas envolvidas minimamente, mas este ano é uma excepção, até agora tem sido muito difícil todos os anos. Eu gasto uma conta telefónica brutal, todos os anos eu gasto dinheiro do meu bolso, todos os anos tiro das minhas férias para revolver coisas para os EME. Parte da minhas férias são mesmo os EME, ou seja, aquela semana ali eu meto férias no trabalho para poder fazer. Ou seja, eu ofereço o meu tempo, eu ofereço o meu dinheiro. E pronto, já não posso oferecer mais. Tem sido difícil. Mas é assim, eu também acho que nós estamos cá é para fazer coisas que nos agradem. Depois vou gastar o dinheiro onde? À noite a beber cervejas em algum sítio? Quer dizer, há pessoas que gastam mas eu não… tem sido difícil mas é muito agradável ver, e gratificante, de repente entrar numa sala como a Igreja de Santiago em Palmela, em Setúbal não temos tido muita sorte porque nem há salas muito boas, nem a Câmara Municipal é muito sensível. Antes era PS, agora é PC. A direita é o que é, mas a esquerda também é o que é. Toda a gente quer é votos. Se não é um grupo é o outro. Não são os Santos & Pecadores com o PS é os Xutos & Pontapés com o PP. Não é o não sei quem com o PSD… é sempre aí que eles acham que devem investir, naqueles grupos grandes e depois chega a altura de investir nestas coisas… a Câmara de Lisboa é mais um exemplo. Palmela tem sido muito favorável, claro, não apoia como apoia outras coisas, mas tem apoiado com dinheiro e com um tratamento excepcional. Setúbal não tem tido essa sensibilidade, mas Palmela sim. É muito interessante depois entrar na sala e ouvir o som, o apoio da Lourisom, que tem uma pessoa à frente que é o Miguel Lourtie que é uma pessoa excepcional. Houve um ano que eu estava mesmo a agonizar a pensar que não ia conseguir fazer o festival e o Miguel…. Disse-lhe “pá, não tenho dinheiro” e ele disse “mas então qual é o teu problema?”. “Pá, não tenho dinheiro Miguel”, “Mas qual é o teu problema?”. “Pá, não tenho dinheiro para meter o som, não tenho dinheiro para”. “Pá, o som eu controlo o som, não precisas de pagar nada”. E durante três anos ele pôs-me lá o som sem pagar um centavo. Como ele tem de deslocar uma carrinha com equipamento, tem de levar os técnicos dele, ele tem que patrocinar. Ele, Miguel Lourtie, Lourisom, empresa privada, te feito o papel que os organismos públicos não fazem. Mais, as pessoas estão a descontar, deviam ter feedback e não têm. Pronto, este ano candidatei-me ao IA, tive apoios (já tinha tido apoios nos primeiros dois anos), tive um extra só para comunicação. Mas é muito gratificante veres as pessoas a entrarem no espaço e veres que o som está bom, os músicos estão super contentes, é fantástico para os músicos, é fantástico para as pessoas. Para mim o maior problema que tive até hoje, imagina, foi as pessoas que iam tocar naquela noite não poderem ir ao restaurante e terem de comer umas pizas brutais por lá, foi o maior problema que tive. Os músicos chegaram tarde, chegaram às sete e tal à sala quando o concerto era às 9 e meia, fazer o som, por isso já não havia tempo de ir ao restaurante.

Como está a ser preparada a edição de 2006? Ao almoço estavas a apontar alguns nomes… O que é que se sabe, o que é que se pode saber?

Portanto, os nomes confirmados são, portugueses, Micro Audio Waves, One Might Add, Húmus, Naja Orchestra, que é o meu projecto de processamento de sinal, que é samplar o som de um músico convidado, acústico. Nós todos temos um princípio de trabalho que tem sete regras que estão lá na net. O convidado é a pessoa mais importante, nós não temos som, mordemos o gajo, espalhamos o veneno. Vamos samplas a Colleen este ano, o ano passado fizemos com o Stephan Mathieu. Quem é que faz parte da orquestra este ano: o Pedro Tudela, há pessoas que tendem a repetir, mas varia, o Miguel Carvalhais, o Carlos Santos, o Carlos Zíngaro e eu. Projectos estrangeiros, por ordem, Harald Sack Ziegler no primeiro dia, um dos nomes incontornáveis da cena de Colónia, da cena musical de Colónia, um, muito bom mas hiper low-profile, a seguir Murcof, depois Oval e Colleen no ultimo dia. E ainda estou à espera da possibilidade de trazer mais um nome que não vale a pena dizer agora…

Mas Oval não tínhamos falado ao almoço…

Se acabar este ano acaba bem… [risos] Há uma possibilidade de outro nome que é capaz de ser talvez de todos estes o mais conhecido, mas está a terminar o disco algures, está a gravar o disco e está em fase de gravar o disco e começar a marcar a tournée por isso não estou a conseguir confirmar porque precisamente ele ainda não tem datas marcadas com ninguém, por isso… ainda não sei quando dinheiro vou ter de Palmela. Se tiver uma margem confortável ainda vou aguentar, se não vou partir já para o arranjo do dinheiro que tenho e tentar fixar a coisa.


André Gomes
andregomes@bodyspace.net
02/09/2006