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Houdini Blues
Pop anti-tuning


“Há quem vá ao ginásio, há quem faça tuning”, dizem os irmãos Frota, dois quintos dos Houdini Blues. É que eles preferem ocupar o tempo livre a fazer música. E nos últimos tempos, quando o decidiram fazer, deram origem a F de Falso, sério contendor a aparecer em muitas listas de melhores discos portugueses do ano. Ainda para mais, falamos de um álbum que é acima de tudo genuíno, musicalmente directo, aquilo que a banda quis de facto fazer, sem recurso a neons ou ponteiras de escape: a pop é tratada de forma abrangente, há pedaços de quase tudo o que é linguagem musical moderna, mas sem preocupações de vanguardismo ou modernidade estética de qualquer ordem. O produtor, Armando Teixeira, apenas se limitou a limpar alguma poeira, nada de cromados… Mais de dois meses depois do lançamento de F de Falso, tempo para olhar um pouco para trás e falar da passagem para o palco destas canções liricamente matreiras (é aí que está o F de falso). Gonçalo e Hugo Frota em resposta conjunta, por via digital.

Agora que estão passados mais ou menos dois meses sobre a edição de F de Falso, como é que caracterizam a recepção crítica de que o trabalho foi alvo? Foi mais positiva do que aquilo que julgavam?

A recepção da crítica tem sido bastante positiva e tem sido na devida proporção da qualidade que sabíamos ter entre mãos. Por muito que a opinião alheia seja sempre uma incógnita, a verdade é que a experiência nos vai dando a suficiente clarividência para que a questão não se transforme num completo tiro no escuro.

Depois de lerem e de ouvirem tantos comentários produzidos sobre o disco a vossa visão sobre ele alterou-se de alguma forma?


Altera-se sempre pois as visões exteriores relançam novas perspectivas que na feitura do disco não estavam presentes ou não eram tão óbvias. É sempre um exercício muito salutar que nos “obriga”, inevitavelmente, a reflectir sobre os porquês de decisões ou tomadas de rumo que, na altura, podem ter parecido meramente instintivas. E, com alguma surpresa, levou-nos a pensar no que poderá ser o futuro criativo da banda – tínhamos estado tão embrenhados no presente que até nos esquecemos que já poderíamos ter delineado minimamente o futuro. Essa “descoberta” tornou-se extremamente excitante.

Também já apresentaram algumas vezes o disco em concerto, em Faro, Évora, Portalegre e finalmente em Lisboa, no Clube Mercado. Foi difícil adaptar as composições para o formato ao vivo?

Não foi muito difícil, até porque são temas muito vocacionados para o palco. A partir de agora é que as canções começam a descolar para novas “vidas” que não têm em disco, uma vez que, no nosso entender, nunca um tema está realmente acabado. O seu espernear pela sobrevivência implica uma mutação constante. Será um exercício curioso comparar cada um dos temas gravados com a sua versão de concerto daqui por um ano.

Sentem-se uma banda de palco ou consideram ainda necessitar de alguma rodagem? Um dos vossos objectivos, segundo sei, é “dar a volta a Portugal”, pela primeira vez…

A um novo disco sucede-se, sempre, como que um novo começo. A cada concerto nós e os temas crescemos cada vez mais. É natural que assim seja. Uma banda só faz sentido se o for também em palco, por isso somos inevitavelmente uma banda de palco. A volta a Portugal é uma casmurrice nossa que sabemos que vai ser dura mas que vamos levar a cabo dê lá por onde der. Se há quem o faça em cima de uma bicicleta, por que não com um amplificador ou um bombo às costas?

Consta que “Bailare” tem uma história interessante e nasceu duma ideia do João Cordeiro, pensada para outro projecto…

Exactamente. Foi um esboço de tema rejeitado por outro projecto, hip-hop, do João e que nós alegremente estupefactos não deixámos passar ao lado. No fundo, prova que há música em todo o lado e, por vezes, o que conta mesmo é a felicidade de conseguir perceber o potencial de algo que ainda é somente um esqueleto.

Esse tema tem também um sample proeminente, que até serve de refrão, supostamente de um coro da Andaluzia. Já toda a gente vos deve ter perguntado sobre a sua origem, mas a verdade é que vocês não sabem mesmo a sua proveniência exacta, não é?

Até ao momento não sabíamos a sua origem e deu-nos gozo que assim fosse pois queríamos trabalhar sobre essa incógnita, que nos lançava pistas muito mais criativas e livres. A Andaluzia é-nos muito mais familiar e atraente que outra realidade hispânica, e como tal trabalhámos sobre esse imaginário e decidimos criar o nosso próprio “dialecto” e iconografia de uma latinidade inventada e fantástica. A partir de certo momento não queríamos mais saber qual era a sua origem, já não interessava muito, já eram as nossas “señoritas”. Mas inevitavelmente, com a grande exposição que o tema teve, lá acabou por aparecer alguém que o identificou e afinal é um tema da Galiza. E realmente faz todo o sentido que assim seja. Acabámos por criar uma Cantiga de Amigo pós-moderna.

Isso acaba por encaixar-se naquele conceito de celebração da falsidade: não sabem de onde vem o sample, não sabem o que está a ser dito…

Exactamente. Tudo isso é acessório, o que interessa é o que é sugestionado. O que o sample te proporciona é a arte de saberes escolher. De retirar coisas de contexto e estas ganharem uma nova vida quando justapostas com novos cenários. Não é nada de novo, já o Duchamp o fazia.

Algo que é notório é que o disco não tenta seguir um rumo específico em termos de géneros ou agarrar as actuais estéticas dominantes. Há uma noção lata de pop, mas depois picam coisas ao rock, à electrónica, “Bailare” tem um flow hip-hop, “Duas Balas” lembra o tango…

Sim, basicamente somos nós. Gostamos de música e ponto final. Não somos filiados em nenhuma estética nem pertencemos a nenhuma tribo urbana. Somos pessoas livres. Esse “rumo específico” ou a adopção de um único género parece-nos, simplesmente, um desperdício atroz. Limitar o nosso leque de escolhas quando há tanta música por aí a pedir para ser resgatada não faz qualquer sentido. Por muito que não haja qualquer atitude consciente neste processo. É uma simples defesa contra o nosso próprio enfado de nos estarmos a repetir.

Apesar dessa diversidade, o disco não soa como uma compilação de temas dispersos, parece uno. Foi esse o principal papel do Armando Teixeira na produção?

Também. Mas esse aspecto tem mais a ver com todas essas músicas viverem em nós sem nenhum conflito. O papel superiormente desempenhado pelo Armando foi o de limar arestas, proceder a pequenas afinações e sugerir novas nuances que fortaleceram todos os momentos da gravação. Foi tão bom para ti quanto foi para nós, Armando?

© Rita Carmo

Optaram pela expressão em português, quando em álbuns anteriores eram poliglotas. Não será uma ironia fazê-lo quando construíram um álbum que tem como fio condutor a falsidade? Não é mais fácil fingir em inglês, por exemplo?

É precisamente uma ironia. É, de facto, bizarro, mas tornou-se um exotismo, uma cena “fake” cantar em português para as novas gerações. Não sei se é mais fácil fingir em inglês, o que é certo é que esta geração anda toda a fingir que é inglesa/americana. Das roupas à música às cheerleaders, andamos todos a brincar aos estrangeiros. É algo muito estranho mesmo. É a perversão da aldeia global: em vez de apenas nos aproximarmos enquanto povos, tendemos a tornar-nos num só povo, descaracterizando-nos pelo caminho. É o regresso da Pangeia. Pela nossa parte, acreditamos nas músicas/culturas locais.

Dizem que a opção pelo português começou a fazer mais sentido até pelo facto de o vosso imaginário ser muito pouco anglo-saxónico. Que imaginário é esse, de onde retiraram todo este cinismo?

Esse imaginário é o que está à nossa volta, na rua, nas nossas vivências, nas nossas famílias e seus rituais, nas ruas de Alfama, nas planícies alentejanas, nas pontes do Douro. Está à nossa volta todos os dias e no entanto parece que se tornou mais natural cantar sobre a Califórnia e sobre Camden Town. A arte tem muito de reactiva e o facto de sentirmos que todo este fascínio pelo exterior implica, até certo, ponto uma recusa daquilo que nos é natural, faz com que nos agarremos mais a um imaginário que ainda não está esgotado e que, novamente, não passa pela alfândega. Com este panorama às avessas não é muito complicado tornarmo-nos cínicos

Deixem-me tentar apanhar mais algumas das vossas influências: em “Tudo”, qual é o filme francês que se ouve em fundo?

É o filme Domicílio Conjugal, do François Truffaut. O tema “Tudo” acaba por ser a voz interior de alguém que é uma espécie de Antoine Doinel, um anti-herói complicado nas relações amorosas, mas que é enternecedor no seu lado desastroso. E que acaba por merecer a nossa compaixão mais do que qualquer raiva.

O cinema foi (ou é) de alguma forma inspirador? “Duas Balas” parece poder enquadrar-se perfeitamente num spaghetti western…

O cinema como todas as formas de arte são inspiradoras, é uma espécie de intertextualidade. “Duas Balas” pode realmente situar-se nesse imaginário, um western spaghetti entre o Alentejo e as Pampas. Como bom western spaghetti não pode haver género cinematográfico mais falso do que italianos a filmarem pradarias americanas no sul de Espanha. E Morricone nunca tinha posto os pés na América.

Para além disso há outras referências: Marcel Duchamp e Marguerite Duras, pelo menos, de forma directa.

Sim Duchamp é o símbolo da inteligência na desconstrução do mundo circundante, um iconoclasta que punha a nu quem se leva muito a sério, coisa que nós também não suportamos. A Marguerite Duras faz parte desse puzzle desconstrutivista em que pegamos num nome de um cânone literário e o transformamos num refrão pop, ainda por cima pronunciado com um sotaque entre o inglesado e o aportuguesado, e não francês como deveria ser.

A nível lírico há uma ironia sempre muito mordaz. As letras foram um trabalho conjunto ou de algum membro da banda em específico?


As letras são da responsabilidade de quem canta [Hugo Frota], sendo, no entanto, creditadas ao colectivo, pois cultivamos um espírito de irmandade à mosqueteiros, “Um por todos e todos por um”.

O conceito unificador, da falsidade, surgiu depois de terem juntado as ideias dispersas para o álbum, de forma mais ou menos ocasional, ou foi pensado a priori?

Foi a primeira situação, depois de olharmos para o que tínhamos feito é que percebemos que havia uma espécie de ideia maior que os atravessava. Mas devemos lembrar que também esta resposta poderá ser falsa...

Já admitiram que ver o espectáculo Müller no Hotel Hessischer Hof, dos Mão Morta, vos inspirou a seguir o caminho do cantar em português. Têm mais algumas bandas ou músicos que admirem e que sirvam de “modelo” na escrita de canções em português?

Felizmente são muitos os músicos e artistas portugueses que admiramos. Quanto a servir de modelo, não é uma coisa muito consciente, do género “vamos lá retirar algo deste modelo”, ouvimos pelo prazer e se depois nos influencia é algo que nos ultrapassa, pois não temos noção do grau de assimilação. Quando fazemos as coisas temos sempre a noção que as fazemos à nossa maneira e nunca à maneira de outros.

Decerto que todos os membros da banda têm outros compromissos profissionais. Como é que encaram isso face ao previsível crescimento do grupo com este disco e face à vontade de dar bastantes concertos?

Vamos conciliando. Não pensamos muito nisso, é primeiro que tudo um prazer e só depois um compromisso. Há quem vá ao ginásio, há quem faça tuning. Nós fazemos música sempre que podemos.


João Pedro Barros
joaopedrobarros@bodyspace.net
08/08/2006