Como entrou o fado na sua vida? Quando olha para o passado, qual foi o momento determinante para a sua escolha pelo fado, aquele que a fez ser aquilo que é hoje?
O fado entrou na minha vida através do pedido do Encenador/Realizador Jorge Silva Melo para que eu fizesse uma pré-entrevista a Beatriz da Conceição para um documentário que o Jorge pretendia realizar sobre o Fado de Beatriz da Conceição, Fernando Maurício e Celeste Rodrigues. Ouvi a um metro de distância Beatriz da Conceição e nunca mais deixei de ouvir e de querer saber mais sobre esta arte, mais tarde tive a tentação de o cantar. Criei um projecto com o Encenador João Mota e Paulo Anes no Teatro da Comuna onde fui convidada para cantar diariamente no Clube de Fado a convite de Mário Pacheco e, posteriormente, mudei-me para o Sr. Vinho de Maria da Fé onde canto até hoje, há 10 anos!
Quais foram as pessoas fundamentais ao longo da sua vida que lhe ensinaram aquilo que sabe hoje, em relação ao fado e à própria vida. Que conselhos guarda até ao dia de hoje?
As pessoas fundamentais na minha vida são a minha mãe, padrasto e irmãos, um grupo de amigos restrito que me ensinam a honestidade, a humildade e a capacidade de sonhar como fontes de coragem para fazer o meu caminho, enquanto pessoa e profissional… no fado, concretamente, Beatriz da Conceição e Camané, no começo, Maria da Fé e Carlos do Carmo, numa fase posterior e, acima de tudo, José Manuel Neto, Carlos Manuel Proença e João Monge que são meus cúmplices na criação dos meus discos. E, por fim, Jorge Silva Melo que foi quem me ajudou com o seu talento indizível a encontrar a confiança para estar num palco e poder assim chegar com o meu fado a um número maior de pessoas através dos meus concertos!
Como é que aconteceu a gravação do seu primeiro disco, Apenas o Amor? Como surgiram os músicos que a acompanharam nesse disco?
O meu primeiro disco foi um acontecimento que nasce da minha determinação e da generosidade do Francisco Leal, que para além de ser co-produtor é quem grava o Apenas o Amor, e que teve a ideia de o gravar no Sr. Vinho e na Sala estúdio do Teatro Nacional D. Maria, dos músicos com quem trabalhei nas casas de fado onde cantei e canto, Carlos Manuel Proença e José Manuel Neto, e com a colaboração de Carlos do Carmo na selecção do repertório, que escreveu um dos textos do livrete e inventou o título do disco!
Como surge Jorge Palma a escrever o texto que acompanhava o seu disco de estreia?
Sendo que sou uma admiradora incondicional da obra de Jorge Palma, David Ferreira, administrador da EMI-Portugal, a quem vendi o Apenas o Amor depois de gravado e com quem assinei contracto para futuros discos, ao saber da admiração recíproca que existia entre mim e Jorge Palma enviou-lhe um CD e pediu-lhe para escrever um texto.
Talvez já tenha respondido a esta pergunta vezes demais do que aquilo que deseja, mas… porquê “Crua”?
Também foi uma ideia de David Ferreira, a ideia do CD é Verdade Nua e Crua, mas como título era inadequado, portanto o David achou que a imagem gráfica e fotográfica do CD devia passar pelo preto e branco e eu deveria ser fotografada sem quaisquer acessórios para sugerir a nudez… “Crua” porque é sem artifícios e há uma linguagem muito directa na abordagem de temas como o prazer e a solidão, por exemplo.
Como foi o processo de escrita de Crua? O que é que quis manter ou modificar em relação aos seus trabalhos anteriores?
O João Monge depois de ter aceite o meu convite para escrever um disco inteiro para mim sobre músicas do fado tradicional decidiu, conversando comigo para nos conhecermos melhor, sendo que ele conhecia e gostava muito do meu primeiro disco, decidiu criar uma história em doze fados… a história dele será uma, trocámos muitas opiniões após ele me entregar cada letra e eu escolher a música para cantá-la, eu cá para mim, criei a minha própria história como se cada grupo de fados fossem capítulos dum livro… eu em relação ao CD anterior só quis que o Crua fosse o segundo volume da história iniciada no Apenas o Amor, acrescentando-lhe um novo “personagem” neste caso a visão do meu letrista de eleição da actualidade, João Monge, que vive o tempo em que vivo e com quem tive oportunidade de discutir criativamente muitas questões que eu penso que me enriqueceram como intérprete… o que eu mais quero é que os meus discos sejam a voz de quem não a tem, eu quero cantar as pessoas naquilo que naturalmente sinto no mais fundo de mim!
Mudou alguma coisa desde Apenas o Amor para este Crua além da autoria da escrita dos temas? Perdeu-se alguma inocência no processo?
A inocência perdeu-se na medida em que há um amadurecimento baseado na consciência da minha voz amplificada no estúdio, na possibilidade de refazer pormenores importantes, é preciso fazer escolhas e confiar criativa, técnica e humanamente em quem me ouve de fora, que é o produtor, João Monge e, neste caso particular, o Samuel Henriques que gravou e o Fernando Abrantes que misturou o disco… eu acho que crescer é bom! Guardo-me para no envelhecimento recuperar a inocência perdida!
Desta vez delegou então a escrita dos temas no letrista João Monge, o qual assume ainda os créditos da produção. Qual a importância do seu trabalho neste disco?
A importância é a de um “Pai”, quer pelo processo criativo pessoal quer pelo colectivo!
Assumindo a dificuldade da questão, quais são para si os melhores letristas portugueses?
João Monge, Sérgio Godinho, Carlos Tê, Jorge Palma e Manuela de Freitas…
Li na sua autobiografia que cantou já em Itália, Espanha, França e Holanda e que Amesterdão a cativou sobremaneira. O que encontrou na cidade assim de tão especial?
Liberdade, prazer, paz e beleza!
Uma das questões mais pertinentes do chamado novo fado é, como o próprio nome diz, a introdução de elementos novos no género, embora nunca pondo de parte o seu passado. No entanto, parece privilegiar a tradição no seu fado. Isso está directamente relacionado com a sua relação com o fado desde sempre?
É o caminho que os fadistas que mais admiro fizeram, criaram no começo das suas carreiras, e alguns escolheram este caminho até ao fim delas, um repertório com letras originais e temáticas próprias para se definirem e crescerem artisticamente, até hoje ainda não encontrei melodias originais que me fascinem mais que as dos fados tradicionais, que me desafiam constantemente do ponto de vista do improviso musical e além do mais é maravilhoso cantar letras feitas à medida dos nossos sentimentos e pensamentos sobre o mundo e a condição humana… claro que se algum dia me fizerem melodias originais que eu goste a sensação deve ser semelhante, julgo?
Ainda na questão da tradição, quando canta ao vivo, apraz-lhe manter aqueles rituais habituais no fado, tanto a nível de actuação como no aspecto digamos cénico?
Cenicamente recorro ao Xaile que é a minha condição primordial para cantar, é a minha protecção as minhas asas para cantar… depois gosto do silêncio e da penumbra com formas de recolhimento para um maior interiorização minha e de quem ouve… gosto particularmente de cantar sentada, o que acontece muitas vezes e já faz parte dos meus cenários de concerto, ou seja, a cenografia, o vestido, a iluminação, etc., tudo tem de servir os fados que canto, nada se pode sobrepor à palavra e à música, nem a minha própria voz!
Além de cantar esteve quase sempre envolvida na organização de ‘noites de Fado’ quer em teatros, quer em Casas de Fado. Aprecia estar também desse lado, do lado de quem convida outrem a cantar?
Tenho tanto prazer a cantar como a ouvir outros de quem gosto muito, músicos e/ou cantores, não saberia escolher entre uma coisa e a outra!
Li no outro dia uma entrevista onde dizia ouvir artistas ou bandas muito distintas do campo em que se move, o do fado. Quais são os últimos discos que escolheu ouvir nestes últimos tempos?
Ani Difranco; Chico Buarque; Clã; Jan Garbarek; Cat Power; P.J. Harvey; NERD; Zita Swoon; Erykah Badu; Arcade Fire; Jorge Palma; José Mário Branco; Joni Mitchell… e os clássicos em geral desde o Rock, passando pelo Jazz, até ao Fado, sempre!