DISCOS
Chris Abrahams
Thrown
· 20 Mar 2006 · 08:00 ·
Chris Abrahams
Thrown
2005
Room 40


Sítios oficiais:
- Room 40
Chris Abrahams
Thrown
2005
Room 40


Sítios oficiais:
- Room 40
É compreensível que, logo à partida, Thrown se revele como um exercício catártico, um ritual cuja combustão interna ameaça antecipadamente ser de difícil extinção. Enquanto vértice dos Necks, Chris Abrahams – figura proeminente dos últimos 25 anos de música australiana à esquerda dos INXS – submetia-se a uma impar contenção tântrica e foi nessa qualidade que suspendeu o evoluir do tempo em discos como Aether e Hanging Gardens (a vertigem florestal do épico dos Cure conservada em âmbar). Thrown rompe com ideias pré-concebidas do músico. Por força de colaborações frutíferas junto de gente como Ed Kuepper (líder dos Saints) e Midnight Oil, composições em nome próprio e um invejável currículo enquanto produtor (cargo que aqui volta a assumir), Abrahams goza de uma respeitabilidade que muito facilmente lhe valeria a fama permanente se adoptasse por exercer de forma convencional a abordagem ao piano (por outras palavras, adoptando a via Michal Nyman pós-Piano). Nada por aqui indicia acomodação por parte do reputado teclista. Muito pelo contrário: a cada sintoma que se diagnostica a Thrown sucedem-se uma mão cheia de lascas sónicas de indigesta assimilação. Apetece espalmar as mãos sobre o rosto e expressar horror à medida que a ameba ganha volume.

Ao jeito discreto de um predador que cobre de feno o espaço onde degustará a presa, Throw acumula volume através da sobreposição visceral de instrumentos de teclas – a variedade vai do piano forte ao DX7, sintetizador digital que teve em meados de 80 o seu período áureo. A progressão é comparável à que lança o protagonista de Apocalypse Now ao encontro do coração das trevas, o comportamento assumido em tudo semelhante ao de um combatente colonial perdido numa ego trip (Vítor Norte em Monsanto) que, por nenhum motivo plausível, o obriga a adaptar as munições de que dispõe a um armamento de recurso. Até porque, combinados, nunca chegam os instrumentos à disposição de Abrahams a soar ao que deles esperamos. Antes se alternam à medida que conferem espessura à camada lodosa que Abrahams torna orgânica com o recurso a uma variedade pouco ortodoxa de teclados, passam a ocupar o espectro de uma mesma entidade fantasmagórica assim que se deixa de ser perceptível onde termina um e começa o outro.

"Horsenel", por exemplo, evolui como um exercício de tortura e, se escutado inadvertidamente, chega a pregar uns valentes cagaços quando atinge os seus tons mais estridentes. Alturas há em que Thrown assume a aparência de um provocatório cortejo de sons que suplicam por um coto no lugar da cauda, a marcha rastejante de texturas cujo véu parece predestinado a ser castrado à moda Pasoliniana. Quando Abrahams extrai silvos aos tubos metálicos de um órgão, quase parece estar a purificá-lo das maldições que rogou enquanto esteve esquecido ao pó. Através da sobreposição dessas camadas sibilantes projecta sobre carris locomotivas que – só por milagre - nunca chegam a colidir. Sem acusar réstia que seja de pretensiosismo balofo, Thrown é um disco visionário, embora turvo.

E porque o termo "thrown" também pode significar "atirar tudo às urtigas", Chris Abrahams manda à fava o preconceito, sem sequer exibir qualquer sinal de culpa por ter elaborado estranho enigma que, involuntariamente, quase se assemelha a um manifesto pós-traumático. Marlow e Kurtz, os personagens de Joseph Conrad, passaram a ser um só. Esse encontra-se nu de formalidades e, demente, vai fertilizando o território que julga ser seu. Mesmo que a seguinte afirmação corra o risco de mais se parecer com a tentativa de criar um longo título para um disco de Holocausto Canibal, há que assinalar Thrown como uma espécie de recusa menstrual por parte de um pântano onde fracassa à partida toda a tentativa de semear melodia ou comodidade. O coito suspensamente ininterrupto dos Necks conheceu finalmente interrupção.
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com

Parceiros