DISCOS
The Most Serene Republic
Underwater Cinematographer
· 09 Dez 2005 · 08:00 ·
The Most Serene Republic
Underwater Cinematographer
2005
Arts & Crafts


Sítios oficiais:
- The Most Serene Republic
- Arts & Crafts
The Most Serene Republic
Underwater Cinematographer
2005
Arts & Crafts


Sítios oficiais:
- The Most Serene Republic
- Arts & Crafts
O oceano Atlântico não conhece descanso, tal é a quantidade de informação que sobre ele transita nos dois sentidos. Existem realidades e fórmulas que a Europa adopta à América do Norte na esperança de que a adaptação não resulte num esboço tosco da matéria autêntica. O inverso também acontece, desde o tempo em que os Beatles representavam fasquia a transpor por representantes equivalentes nos Estados Unidos. Por aproximação, procura-se anular o defeito. A margem de erro da tradução passa a servir de pretexto à criatividade. Que o diga a pop colectiva de génese académica, à qual tão bem assenta a despretensiosa aura do encaixe equitativo que uma voz ou instrumento adicional representa nesses casos. Não se reconhece ego ao murmurinho terno de uma pop permanentemente militante (o twee, se preferirem) que navega pelo Atlântico há quase um quarto de século e atracou desde há algum tempo no Canadá.

Underwater Republic tem como peculiaridade o facto de ter sido o primeiro lançamento da label Arts & Crafts – pertença dos compatriotas Broken Social Scene - a não contar com a intervenção directa dos proprietários. Os laços entre os dois colectivos são de tal forma sólidos, que debatê-los seria o mesmo que aproximar uma lupa de um elefante para lhe descobrir a cor. Já a associação aos Arcade Fire resume-se à nacionalidade e grandiosidade de alguns cumes sonoros (a proximidade do Árctico contribui para isso). É legítimo inserir The Most Serene Republic numa linhagem canadiana se excluirmos o espreitar oportunista que isso eventualmente possa implicar (até porque o atropelamento de camadas em Underwater Cinematographer leva a crer que terá sido produto de uma gestação espontânea e não programada). O cenário mantém-se sereno e o ouro límpido, enquanto a cena canadiana não se transformar no circo rotativo em que, a certa altura, a Brit Pop se tornou e que, desde aí, tantos nomes tem atirado para a fogueira onde arde a eterna chama da trilogia “OK KID AMNESIAC”. Daí que ninguém estranhe que Kid A seja consensualmente admitido como uma referência entre os membros da Most Serene Republic. Assim como Kid A garantiu estabilidade ao arrojo encetado pelos Radiohead em OK Computer, também Underwater Cinematographer vem estabelecer a pop numerosamente insuflada (alô, Architecture in Helsinki) como ponto assente e perdurável. Ambos condensam os movimentos cometidos por uma transição – à escala da actualidade musical – com o mesmo desapego alienígena pelos códigos terrenos. Os dois projectam para uma órbita de indefinição onde é agradável flutuar.

Na vida de um aspirante a licenciatura, a fase universitária é quase sempre a mais propícia a descobertas pautadas pela excentricidade (ao segundo ano, comecei a coleccionar PEZ e a viver nas lojas de discos em segunda mão). Várias são as bifurcações determinantes para a formação de personalidade. Por vezes, basta uma companheira de quarto para separar alguém de um doutoramento e afundá-lo nos prazeres do Bondage. Tudo depende da república (sim, esse tipo de disposição estudantil é comum no centro de Lisboa) em que alguém é inserido, para determinar se o tempo útil de fulano conhecerá maior despesa na passerelle do Parque das Nações ou no micro-universo do Fórum Sons. A mais serena das repúblicas optou por dedicar o seu tempo a refinar a melhor nata pop para, com isso, produzir uma delícia monumental chamada Underwater Cinematographer. Disco esse que actua sob camadas ondulantes de shoegaze corcunda (na medida em que abusa das suas capacidades), drum n’ bass de primeira, emo coral (escutar para crer) e um piano que pode salvar um Inverno. E porque a primazia a ninguém pertence nesta estranha república (e, com isso, se dissipa a compostura), “Proposition 61” pode até ser a belíssima falsa bossa nova que Jobim nunca chegou a escrever em parceria com Panda Bear do Animal Collective. O magma é o limite. Underwater Cinematographer filma, ao fundo do oceano de despojos melódicos, pornografia para satisfazer os caprichos de Pandora.

De que serve lamentar a brevidade das estrelas cadentes quando mesmo ao lado brilha a Lua? Pouco importa se os Get Up Kids deixaram de o ser, tal como a partir de agora não será tão preocupante o indeterminado hiato a que os lendários Superchunk se decidiram após o premonitório Here’s to Shutting Up. As generosas dimensões desta república acolhem órfãos à procura de repatriamento. Assim ordena a indulgente lei twee, que, afinal, resultou de uma leitura anárquica das sagradas escrituras da pop. Ocean Cinematographer é uma daquelas primeiras obras triunfantes que, discreta entre os gigantes, nem sequer chegou a constar das tabelas de apostas. Consegue a dobradinha, ao arrebatar os Óscares para Melhor Argumento Adaptado e para Melhor Cinematografia Pop. Um dos grandes debutes do ano, lá está.
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com

Parceiros